A Maçã e o Toca-fitas

Uma menina viciada em drogas foi morta em 1995 ao tentar furtar um toca-fitas de um carro, provavelmente para dar sustento à sua dependência. O matador desferiu 10 tiros de uma sacada no 12o andar de um prédio em frente ao testemunhar a tentativa de furto. Um dos tiros a atingiu nas costas, matando-se na hora. Essa fatalidade voltou a ser debatida nos jornais e uma matéria surgiu no UOL.

A estupidez maniqueísta que atinge boa parte da classe média – e de boa parte do judiciário – não leva em conta algo que seria até simples de entender, não fosse o emburrecimento determinado pelo punitivismo tacanho da mentes mais atrasadas: um sujeito pode ser vítima e algoz ao mesmo tempo, na mesma ação, no mesmo momento.

Cristiane Gaidies, Maçãzinha – a menina que foi morta – era vítima de sua doença (a drogadição) e de uma condição social brutalizante e desumana (pessoa em situação rua). Não há dúvida sobre essas condições, onde ambos os condicionantes surgem de uma situação econômica e social perversa, que produz “sujeitos-lixo”, descartáveis e inúteis. Maçãzinha era uma das milhões de vítimas do capitalismo que, para gerar opulência, luxo e conforto para uma parcela diminuta do mundo precisa manter uma gigantesca massa de deserdados date que a sustenta. Por outro lado, Maçãzinha estava realmente cometendo um crime de furto, provavelmente para sustentar seu vício. Não é difícil entender que ela era vítima e ladra, ao MESMO tempo.

Por seu turno, o sujeito que desferiu os tiros também foi vítima e carrasco na mesma ação. No caso, foi vítima de roubo, mas foi um carrasco brutal em sua ação de retaliação e/ou proteção da propriedade, agindo de forma absolutamente desproporcional e desumana. Da mesma maneira os policiais que mataram Genivaldo – por estar sem capacete, uma contravenção de trânsito – também usaram de força desmedida combinada com uma crueldade acima de qualquer dúvida. Genivaldo foi sacrificado pelo delito banal de não usar capacete.

O assassino de Maçãzinha hoje é advogado em SP

Existe um preceito claro nos sistemas jurídicos de todo o mundo que nos diz que “a pena não pode suplantar o delito”. Uma vida não pode ser perdida ou descartada por um toca-fitas, um prato de comida, um saco de batatas ou um automóvel. Coisas são passíveis de reposição, vidas jamais. Aceitar que uma jovem seja morta porque “afinal, estava furtando”, é deixar-se submeter a uma lógica da vingança, do vale-tudo, do “olho-por-olho” e uma regressão medieval, que só pode surgir em sociedades doentes.

Sem que possamos entender este dilema não haverá possibilidade de evoluir enquanto sociedade. Ela nos divide entre os que não têm e os que têm, e estes últimos teriam o direito até de matar para garantir suas “coisas”, suas propriedades, até porque nessa lógica desumana as coisas se sobrepõem às vidas, e sobre elas tem precedência. Um sistema assim construído leva ao desastre. Com o tempo, despojados do valor intrínseco de sermos humanos, o ódio nos fará reagir, bastando para isso uma faísca que detone a pólvora da indignação e das humilhações silenciosas.

Indignar-se com crimes absurdos como esses – de Maçãzinha e Genivaldo – não é suficiente, mas banalizá-lo é o roteiro para uma convulsão social.

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Arquivado em Causa Operária, Violência

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