Minha experiência com a ayahuasca ocorreu há exatos 20 anos, na Bahia. Estávamos com minha amiga Robbie fazendo um “tour” sobre humanização do nascimento quando recebemos o convite de uma querida amiga, Maria Helena, para uma sessão especial na “União do Vegetal”. Tanto eu quanto Robbie – antropóloga americana e ativista da humanização do nascimento – atravessávamos os vales sombrios de nossos profundos e dolorosos dramas pessoais e foi elaborada para nós uma sessão especial de “cura”, ou de “saúde” – não recordo o termo exato utilizado.
Fomos em uma turma de vários colegas até o templo, um lugar esplendoroso e cercado de natureza. No interior do amplo salão havia dezenas de cadeiras de praia espalhadas e uma música de viola que tocava ininterruptamente. Lembro do intérprete das canções: Elomar.
Ficamos escutando aquela música por muito tempo, talvez por mais de uma ou duas horas. O silêncio, a música e o local produziam uma sensação inebriante e cristalina de paz.
Num determinado momento entraram os mestres, com suas características camisas verdes e muita pompa. Depois disso começou uma pregação doutrinária. A União do Vegetal é um sincretismo curioso de lendas amazônicas com partes da Bíblia, em especial o velho testamento e o rei Salomão. É uma “religião cristã reencarnacionista” que reconhece Cristo como o Salvador da Humanidade e foi criada em 1961 em plena Floresta Amazônica pelo seringueiro José Gabriel da Costa – “Mestre Gabriel” – um baiano nascido no município de Coração de Maria, região de Feira de Santana. O conteúdo da pregação pareceu seguir o roteiro padrão das igrejas cristãs, com exaltação dos valores morais, conservadorismo, padrões de comportamento determinados pelo gênero, etc, mas com uma liturgia muito interessante.
Num dado momento, após a pregação inicial e a evocação dos objetivos daquela sessão, um visitante novato levantou a mão e tentou explicar a razão de sua presença na reunião, pedindo para fazer alguns questionamentos. Foi imediatamente interrompido, bem no meio da sua manifestação e de forma um tanto rude, e lhe foi explicado que essas questões exigem um protocolo especial. Primeiro levanta-se a mão e se pede ao Mestre a permissão para fazer a pergunta; caso o Mestre autorize o sujeito continua e a faz. Ele concordou e levantou a mão, dizendo logo após: “Mestre, posso fazer uma pergunta?”, ao que o Mestre prontamente respondeu… “Não”.
Eu ri, mas não devia.
Depois passou-se à sessão com a ayahuasca propriamente dita. Foi colocada à frente do público em uma jarra transparente que continha a substância, cuja cor me pareceu semelhante ao “suco verde” que me acostumei a tomar pela manhã.
Essa substância é preparada a partir de duas plantas amazônicas, o cipó Mariri (Banisteriopsis caapi), e as folhas da árvore Chacrona (Psicotria viridis). O Chá Ayahuasca (ou Hoasca) é também chamado de Vegetal e seus discípulos o bebem durante as sessões, para efeito de concentração mental.
Feito o convite nos levantamos e entramos na fila. Quando levei o copo à boca senti gosto de “grama amarga”. Tomei o equivalente a meio copo de Vegetal e voltei a me sentar. Em alguns minutos todos haviam tomado e estavam de volta aos seus lugares, aguardando em silêncio e escutando os cânticos.
Algum tempo se passou até que um mestre se acercou de mim e perguntou se eu havia sentido a “burracheira”, que se define como a alteração sensorial produzida pela mistura das plantas. Eu respondi (talvez para agradá-lo) dizendo “creio que sim”. Ele deu uma gargalhada que foi acompanhada por vários dos presentes. “Quem sente a burracheira não acha e muito menos tem dúvida”.
Alguns minutos mais tarde outro mestre avisou que se alguém quisesse tomar mais uma dose poderia fazê-lo pois ele iria encerrar a oferta do Vegetal. Minha amiga Maria Helena me cutucou e eu prontamente levantei. Só no dia seguinte ela me contou que a “cutucada” era uma pergunta (se eu desejava tomar mais) e não um convite para mais uma dose. De qualquer maneira foi esse estímulo que me fez tomar a segunda – e fatídica – dose. Levantei, dirigi-me ao pote de vidro transparente, servi meio copo de ayahuasca e voltei a sentar.
Nesse momento eu já havia percebido que muitas pessoas levantavam de seus assentos em direção ao banheiro para vomitar. O vômito é descrito como uma boa reação ao Vegetal, produzindo um efeito exonerativo, semelhante às terapêuticas vomitivas da idade média ou dos enemas necessários na Grécia antiga como preâmbulo ao encontro com os Oráculos.
Em poucos minutos ficou claro que eu não ia escapar de chamar o “hugo”. Senti que estava ficando tonto e nauseado, e com uma espécie de aceleração mental. Aos poucos, mas de forma crescente, imagens multicoloridas se multiplicavam à minha frente, como um filme visto numa velocidade tão absurda que suas formas e cores se tornavam misturadas e confusas. O estranhamento foi ficando paulatinamente mais forte, e a náusea mais intensa, até o momento em que achei prudente me levantar para não passar vexame à vista de todos.
Saí da sala cambaleando e caminhei poucos passou na grama aparada que circundava o templo. Veio então a primeira golfada de vômito, cuja cor se confundiu com o gramado aos meus pés. Caí desfalecido ao solo logo após.
Acordei com o rosto colado ao chão espetado pela fina grama. Tentei entender o que havia acontecido e me dei conta que havia desmaiado após ter vomitado o Vegetal. Apesar do pequeno alívio que se seguiu, a minha mente não freava sua alta rotação e a náusea se mantinha. De onde estava consegui ver os banheiros que ficavam em uma construção contígua ao templo. Achei que um pouco de água fria no rosto me ajudaria e me esforcei para caminhar até lá.
Sim, era a “burracheira” e, sim, não havia como confundir.
Venci a distância de uns 15 metros com enorme dificuldade. As cores, as luzes, as imagens, a velocidade, a náusea insuportável, a angústia dobravam de intensidade a cada passo dado. Quando eu estava a dois metros da porta do banheiro verguei os joelhos vencido pela fraqueza, senti meu corpo dobrar em dois e meu rosto tocar o solo, me deixando na vexatória posição na qual “Napoleão perdeu a guerra”.
Apaguei totalmente, pela segunda vez. Lembro de ver uma luz se esvaindo, minguando como nas velhas televisões à válvula, que apagavam sua imagem de fora para dentro até restar apenas um minúsculo ponto brilhante no centro da tela. O universo se fechava à minha volta.
Meu despertar foi igualmente especial. Senti uma pequena lâmpada se acender e, em seguida, a reinicialização do “sistema”. Lembro de me perguntar primeiro quem eu era, depois onde estava e o que fazia ali. Recordo também de pensar nos meus filhos, talvez o que de mais valioso nos prende a esse mundo. Durante alguns segundos (minutos?) fiquei nesse estado de semi consciência até que senti uma mão tocar o ombro e uma voz me perguntando: “Você está bem?”
Era um grupo de Mestres que havia me seguido até ali, suspeitando que minha reação havia sido demasiado forte.
Fui ajudado por eles a me levantar e entrei no banheiro, onde a água fria de uma torneira me ajudou a respirar melhor e desembaralhar um pouco os pensamentos. Passados alguns instantes eu já suportava abrir os olhos e responder aos mestres. Em poucos minutos eu já estava sentado no auditório com os demais participantes.
Da experiência não tive nenhum insight consciente, nenhuma “abertura sensorial”, e nenhuma “entrada em um portal de luz”, mas é verdade que ninguém havia me prometido tal resultado. Também não houve uma ideia especial que tenha me ocorrido e sequer senti o desatar de algum nó emocional ou espiritual. Foi uma viagem pelos sentidos, porém muito mais forte do que eu supunha.
Guardei da passagem um entendimento um pouco mais rebuscado da origem do fenômeno religioso assim como do significado ancestral dos rituais de beberagem ritualística. Percebi o quanto essas celebrações possuem um potente papel agregador nas comunidades, e também a semelhança dos seus conteúdos litúrgicos com as diversas religiões com as quais já tive contato.
Depois da experiência no templo ainda tive dois dias de alteração, em especial a vontade de falar muito e sobre diversos assuntos, mas depois voltei ao meu característico caráter reservado. Fiquei muito impactado com os efeitos físicos e mentais da ayahuasca, mas não ao ponto de me submeter à ideologia claramente conservadora que a envolve. Contínuo até hoje um “agnóstico espírita” com profundo respeito pelas religiões, mas sem nenhum interesse em seguir qualquer uma delas.
Guardo essa experiência principalmente pelos amigos que me acompanharam e pela sensação de suporte que tive quando do meu segundo desmaio. Muitas vezes – em especial quem é da área da saúde – somos quem ampara aqueles que estão diante de um grande e profundo drama, e o melhor que podemos oferecer é nossa companhia, nosso silêncio e uma firme, porém delicada, mão no ombro.