O futebol é pródigo em criar vilões e heróis, em especial na copa do mundo onde as emoções e projeções que lançamos em direção aos ídolos se misturam com sentimentos de nacionalismo e fervor patriótico. Isto é natural. O que me parece necessário é que estas paixões guardem alguma relação com a realidade, e não sejamos presa fácil das fantasias de “capa e espada”, criando mocinhos e bandidos, onde o Mau é vil e perverso, e o Bem é simples, humilde e puro, sem matizes e sem contradições.
Na busca de construir o vilão perfeito obscurecemos suas qualidades e priorizamos seus defeitos e falhas, enquanto exaltamos apenas as virtudes do herói, para produzirmos a imagem mais perfeita e acabada dos nossos ídolos. Por isso mostramos a imagem da esquerda, e suprimimos a foto da direita. Afinal, o Neymar companheiro, solidário e que compartilha a alegria com seus parceiros não cabe nessa narrativa.
O problema é que estas imagens são construções midiáticas que nem sempre se adaptam à vida real. Servem tão somente ao nosso desejo de criar projeções e espantalhos, mas com isso inevitavelmente produzimos injustiças. Existe muita maldade no bem, e muita bondade no mal aparente. Ou, como diria Caetano, “O mau é bom e o bem cruel“. Acreditar que aquele é um anjo de braços abertos enquanto este é um demônio frio e insensível é falso. A vida é um pouco mais complexa do que as novelas mexicanas nos fazem crer. Não se deixar capturar pela armadilha da imagética é uma forma de se proteger dos maus julgamentos.
Vou explicar da seguinte maneira: se o Brasil HOJE fosse invadido pela Argentina do “esquerdista” Fernandes, ou pelos Estados Unidos do Biden, eu estaria ao lado de Bolsonaro defendendo o ESTADO brasileiro, mesmo sendo crítico ao seu governo. É uma hierarquia de valores. Não gosto do Neymar, mas ele está com a camiseta do Brasil, e não vou torcer contra os interesses do meu país.
A discussão é entre “autor e obra”, mas também entre “governo e Estado”. O único problema é que esse tipo de lógica só é usada para alguns, e não para todos. Se vocês cancelassem TODOS que tem este tipo de falha moral a sociedade ocidental teria que eliminar todos os livros do racista Fernando Pessoa, ou de Simone de Beauvoir por seu comportamento e algumas teses que sustentou. E a lista seria imensa; em verdade duvido que sobre alguém. Mas as pessoas escolhem alguns alvos enquanto passam pano para outros. É uma “lei de cancelamentos” que ora é aplicada, ora desconsiderada. A postura política de Neymar agora nos serve como falha moral, mas no passado já foi seu comportamento sexual. A verdade é que Neymar gera esse tipo de sentimento e a gente fica escolhendo coisas que se encaixem no “index cancelatorium” para poder atacá-lo.
Aliás, a propósito da Argentina, eu tenho uma dúvida. A sociedade Argentina também é dividida entre posições à direita e à esquerda. Seu maior ídolo no futebol, quase uma divindade do ludopédio, foi Diego Armando Maradona. Pergunto: será que a direita Argentina cancelou e torceu contra sua seleção quando ele tatuou a imagem de Che Guevara, um comunista e guerrilheiro argentino, em seu braço? Ou os hermanos conservadores perceberam que, apesar das diferenças políticas, ele continuava a ser o maior representante da história e da glória da sua seleção?
Só curiosidade mesmo….
A culpa, como sempre, é da Globo. Não fossem por suas novelas e hoje não estaríamos tratando a seleção e seus jogadores como personagem de um folhetim de Gilberto Braga. Richarlison é o formoso galã, o rapaz que exala virtudes e humildade por onde passa. Neymar é nossa Odete Roitman, o vilão para quem Vale Tudo, cuja queda será o gozo mórbido para uma parte da nação.