Acredito que essa é mais uma daquelas perguntas que enseja uma resposta fácil. Entretanto, toda pergunta complexa recebe dos incautos uma resposta imediata e simples… e invariavelmente errada.
Este é um tema que agitou as mentes de diversos “pensadores do parto”, uma casta de profissionais que investiram seu tempo no estudo da arqueologia do nascimento, as origens profundas de sua arquitetura. Se é verdade, como dizia um deles – Michel Odent – que “Parto faz parte da vida sexual normal de uma mulher”, então a forma como os fenômenos relacionados ao parto operam devem ser semelhantes àqueles que agem sobre a sexualidade humana, em especial a feminina. Desta forma, sobre uma base instintual, que compartilhamos com todas as formas de vida sexuada desse planeta, é acrescida em nossa espécie uma fina camada de razão, um tênue verniz de massa cinzenta aplicado sobre as construções milenares do nosso cérebro. Entretanto, a despeito de sua singela espessura, ele foi capaz de nos oferecer o grande diferencial entre todas as criaturas que compartilham conosco desta biosfera.
A razão associada à carga instintual – agora chamada de pulsão – nos mostra fenômenos híbridos em sua manifestação. Tanto o sexo quanto o parto ocorrem de forma espontânea, mas seguros pelos finos cordéis da razão. Nem racional, pois que seria insípido, nem “natural” ou instintivo, pois que seria brutal. Os fenômenos sexuais, entre eles o parto, carregam desta forma elementos complexos e únicos, pois que demonstram de uma forma inequívoca a constituição última de nossa alma. Daí surge, no que diz respeito à “Humanização do Nascimento”, um ponto de tensão. Se aceitarmos a dualidade entre pulsão e razão na sua construção, devemos aceitar que o parto há muito deixou de ser “natural”, ou seja, afeito às leis da natureza e subordinado aos seus condicionantes. Portanto, “partos naturais” são vedados à nossa espécie, prisioneira que está da linguagem e dos elementos simbólicos que daí decorrem. Por outro lado, mesmo que tenham deixado sua naturalidade ao adentrar à linguagem, ainda são fortemente determinados pelas forças violentas que, em última análise, procuram de todas as formas perpetuar a vida. Pois, “mesmo o padre eterno, que nunca foi lá, olhando aquele inferno vai abençoar”.
Assim, o que observamos no parto é um espetáculo único, onde a disputa entre estes dois aspectos da alma humana digladiam para exercer seu domínio. De um, lado milhões de anos de construção de processos, reprodutivos automáticos e irracionais, que culminam com a expulsão da cria. Do outro lado, milhares de anos de trânsito na hominalidade nos oferecem pensamentos lógicos e racionais, experiências pregressas, memórias e traumas a condicionar nosso pensamento na busca por proteção contra o medo inexorável que nos acompanha nestes momentos. Essa disputa terrível, que ocorre na mente da mulher que está parindo, produz necessidades de ordem afetiva que se expressam em sua atitude e nas suas palavras.
Para ilustrar estas perspectivas prefiro contar duas histórias que me ocorreram. Na primeira delas, fomos atender uma paciente em sua casa, com uma gestação à termo, por causa das contrações desconfortáveis que ela relatava, mas logo ao chegarmos percebemos que elas não eram fortes e sequer muito frequentes. Todavia, quando examinei a paciente me assustei ao ver que ela já tinha alcançado 8 cm de dilatação. Teoricamente, pouco faltava para a expulsão. Por esta razão, ficamos várias horas na sua casa aguardando as contrações finais, mas percebemos que as contrações se mantiveram fracas e infrequentes. Foi nesse momento que tive uma espécie de insight: “As contrações não deviam ocorrer de acordo com as minhas expectativas, mas a partir de uma ordenação que não deve estar sob meu controle. Não é a minha presença ou o meu olhar que determina a força contrátil do útero.” Eu estava certo: com o tempo as contrações foram escasseando e resolvemos voltar para casa e aguardar que o processo ocorresse por sua própria determinação. Durante uma semana fizemos avaliações diárias de bem estar fetal e, finalmente, o bebê nasceu 8 dias depois em um trabalho de parto de alguns poucos minutos.
Diante disso passei a enxergar o fenômeno sob outra perspectiva. Não apenas a minha vontade (e a angústia que se produzia a partir dela) não ajudava as contrações como minha presença provavelmente tinha um efeito inibidor. “É forçoso reconhecer que, em muitas vezes, sou eu quem atrapalha o processo com minha presença”, pensei. Sempre que uma paciente procura oferecer seu parto e sua “eficiência” a um olhar alheio ela deixa de aceitar que ele se forma a partir de uma produção autógena e própria.
O segundo relato é também sobre os olhares alheios e o quanto eles modificam o evento que observam. Robbie Davis-Floyd, antropóloga do parto e reprodução, tem uma história bonita sobre o nascimento do seu segundo filho, que ocorreu em casa depois de uma experiência traumática de uma cesariana anterior. Quando foi ter seu segundo filho decidiu que o teria em casa, para fugir das rotinas insensatas que, segundo ela, levaram seu parto a se transformar em uma cesariana. Durante muitas horas do seu trabalho de parto ela esteve acompanhada por várias pessoas em seu quarto: uma fotógrafa, duas parteiras, seu marido, a melhor amiga e as entradas ocasionais de sua filha pequena. O trabalho de parto foi árduo e doloroso, e por várias vezes pensou em desistir. Pela cesariana prévia, havia também um temor silente que percorria a consciência das parteiras, mas que, apesar disso, se mantinham confiantes.
Num determinado momento foi sugerido que ela poderia estar com a bexiga cheia, e foi pedido que tentasse aliviar a pressão. Diante da sugestão das parteiras foi até o banheiro e ficou sentada no vaso, com a torneira aberta, esperando que surgisse o desejo de urinar. Antes mesmo que isso viesse a acontecer teve uma contração forte, talvez mais forte do que todas as anteriores. Gemeu silenciosamente durante sua dor, e nesse momento teve uma “revelação”.
“As contrações aconteciam mesmo quando eu estava sozinha. Descobri que elas independem da plateia que as assiste. Esse sempre foi um assunto só meu; não é algo que devo oferecer a eles; só eu posso dar conta desse parto”. Para ela esta foi a chave que a fez “destravar” o processo: a permissão para que o nascimento ocorresse no seu próprio tempo e labor, e não pelo impressão que causa nos outros, pela expectativa de quem o observa de fora. A partir daquele momento as contrações se modificaram, sua atitude se transformou e pouco tempo depois conseguiu parir seu bebê.
“Parto é algo que as mulheres fazem”, já dizia Michel Odent respondendo a pergunta inicial, mas o fazem por uma construção inconsciente, por um motor que tanto está em si quanto fora de sua vontade. “É a mulher quem o faz, mas este controle está para além dela, e se expressa através dela”. Esta é a magia inerente de cada nascimento: a submissão a uma ordenação superior, maior do que nossos próprios desejos de controle. Essa mistura entre as forças eróticas poderosas e a razão que nos aprisiona contém os segredos mais profundos do nascimento humano. Para nós que buscamos auxiliar, saber que somos pequenos diante desse espetáculo é peça fundamental para compreendê-lo, mesmo quando tal compreensão apenas arranha a superfície de seu mistério. Entender que nossa participação enquanto cuidadores deve ser silenciosa, atenta e respeitosa, é aceitar humildemente o que nos cabe no grande concerto da vida.