Ela talvez coubesse no estereótipo mais comum das professoras da escola secundária. Velha, por certo, mas para um garoto de 14 anos esse conceito começa nos 40 anos e segue em diante. Portanto, não há como saber com exatidão. Lembro apenas do seu rosto redondo, cabelos curtos, saia comprida, óculos, sempre rodeada por uma pilha de pastas com a chamada das várias turmas. Naquela manhã sua imagem não estava tão diferente do que eu havia me acostumado a ver, mas algo no seu caminhar mais lento que o normal denunciava algo. Chegou na nossa sala enquanto a resenha ainda corria solta. Colocou os cadernos de chamadas sobre a mesa à frente e ficou olhando por alguns instantes para a parede ao fundo da sala, sem dizer nada.
Ela era professora de psicologia, uma cadeira inusitada no segundo grau. Foi através dessa professora que encontrei os conceitos de eu, supereu e id pela primeira vez. Foi com ela que a turma debateu as motivações inconscientes de nossas atitudes, o mal estar na sociedade e as fases iniciais do desenvolvimento psíquico das crianças. Talvez ela tenha desempenhado um papel importante no despertar das crianças para os mistérios e os segredos da mente, mas jamais teve a oportunidade de comprovar. Talvez essa seja a sina dos professores: nunca saber o quanto impactaram o futuro daqueles a quem ensinaram. Continuou a olhar por um longo tempo em silêncio para um ponto invisível do infinito cósmico, enquanto aguardávamos a chamada. Depois de alguns minutos olhou para os papéis empilhados e delicadamente abriu a primeira pasta. Antes de dizer o primeiro nome, suspirou fundo e falou com a voz embargada.
– Vocês desculpem a professora. Eu não deveria ter vindo dar aulas hoje, mas percebi que ficar em casa sozinha seria muito pior. Não sei o que eu faria olhando para as paredes. É muita tristeza, mas não sei como lidar com isso. Desculpem, desculpem.
Ficou mais alguns segundos imóvel e com os olhos marejados. Depois deixou sair uma frase que mais parecia um gemido do fundo da alma.
– Ontem à noite meu filho morreu.
A sala, repleta de adolescentes barulhentos e cheios de vida, congelou. Ninguém disse palavra alguma. Era possível ouvir a respiração entrecortada da professora. Dos seus olhos brotou uma lágrima e eu senti no peito uma dor estranha que só conheceria décadas mais tarde. A dor surda da perda, da inevitabilidade da morte, o vazio a preencher cada espaço da vida. O som escuro e abafado do silêncio mordaz. Uma porta que se fecha, ou como diria Chico:
“Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais”
Não havia o que dizer. Olhei para o lado e vi meus colegas paralisados. Não era comum para nós vermos adultos chorarem. Ninguém ali poderia acudir aquela alma sofrendo a mais tormentosa das dores. Éramos crianças diante de uma realidade de adultos. O silêncio foi quebrado apenas após a professora retirar da sua bolsa um lenço delicado e secar as lágrimas e o óculos. Olhou para a turma, sorriu timidamente, pediu desculpas mais uma vez e falou…
– Amanda?
E seguiu dizendo em ordem alfabética o nome de todas as testemunhas de sua dor.

