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Congressos Médicos

Li com atenção e cuidado o texto do psicólogo Alexandre Coimbra do Amaral (veja aqui) sobre um congresso de Medicina de Família que ele havia participado alguns dias antes. Seu relato é de vívido encantamento com a convivência entre médicos e agentes de saúde, o respeito à amamentação, o contato com outros discursos, a abordagem corajosa e respeitosa da questão de gênero e a quebra do paradigma do “palestrante como dono de um saber”, rompendo sua verticalidade e propondo um ambiente de trocas horizontais, onde a plateia era constantemente convidada a participar do debate e questionar as ideias propostas.

O texto emocional, sensível e otimista escrito pelo Alexandre desnuda dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar aponta para a esperança de uma medicina mais integrada com os outros saberes e menos encastelada no Olimpo das castas superiores. Em segundo lugar a dura realidade de reconhecer que este tipo de congresso é uma ínfima amostragem, um grão de areia perdido na praia dos congressos médicos. Arrisco afirmar que 99% dos médicos nunca ouviram falar de um ambiente de saudável encontro profissional como este e suspeito que a imensa maioria, ao ler este relato, sentirá desconforto com a promiscuidade descrita em suas poucas linhas.

A Medicina não é apenas um saber construído pelos milênios de contato com a dor e o sofrimento, onde a ciência é tão somente a ferramenta mais nova; ela é principalmente um sistema de poder – o biopoder – que age para moldar a sociedade de acordo com os valores vigentes. De uma certa forma ela é uma potente mantenedora e disseminadora dos valores do patriarcado. A Medicina é conservadora e “careta”, e não por acaso seus próceres são assim escolhidos. Basta olhar uma foto dos representantes da corporação – quase a totalidade de homens, brancos e de classe média alta – para adivinhar quais valores impregnam seu entendimento da arte de curar.

Congressos de Medicina de Família (já palestrei em alguns) e de humanização do nascimento (algumas centenas) são fatalmente marginais; situam-se à margem do poder e surgem como sua sombra. Onde quer que o autoritarismo e o dogmatismo médico prevaleçam lá estarão aqueles que discordam dessa visão de mundo e que ousam apresentar sua alternativa. Entretanto, o moedor de carnes da escola médica – como ritual transformativo – vai moldar os médicos para o que desejamos que se tornem: legítimos defensores dos nossos valores a quem, em troca, daremos um assento especial no Olimpo das castas. Somente uns poucos corajosos ousarão questionar as normas e códigos que regem sua prática. São eles os hereges e párias, a quem a corporação olhará com desdém e tratará como ameaças.

Para mudar os médicos é necessário mudar a sociedade e os valores nela inseridos, pois que aqueles são o reflexo desta cultura, e a ela respondem. Em um futuro distante, a Medicina ainda vai existir, pois que ela também se expressa como “fraternidade instrumentalizada”, porém os encontros daqueles que se preocupam com seus resultados e seus rumos estarão muito mais próximos da descrição do Alexandre do que os festivais de vaidade e mercantilismo que testemunhamos hoje em dia.

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Mais ecografias

Sobre o abuso cada vez mais descarado de ultrassonografias na gravidez:

Não existe NENHUMA base científica para justificar essa barbárie ultrassônica. Isso é uma mistura de capitalismo abusivo com ignorância ancorada na insegurança. Esta insegurança, por sua vez, é produzida pela cultura e amplificada pelo discurso médico, porque os médicos se fortalecem e empoderam quanto mais alienada e assustada estiver uma gestante.

Todos ganham: médicos, clínicas, especialistas, enfermeiras, hospitais, indústria farmacêutica e de equipamentos (a que mais lucra) e a medicina como biopoder. Só perdem mães, bebês e a sociedade. Justo, não lhes parece?

É um absurdo. Cada vez que um médico chefe ou um gestor estabelece esse protocolo insensato e sem embasamento o seu Toshiba e o seu Siemens abrem uma garrafa de Champagne Moet Chandon e caem na gargalhada.

Quando uma mulher chora ao ver seu bebê no aparelho de ultrassom ela quase sempre chora de alívio, e não de emoção. O trabalho de destruir sua autoconfiança como mulher e gestante a leva a depender das máquinas para construir uma segurança que a medicina e a cultura retiram dela.

Peço licença para fazer uma analogia: Se houvesse um leite que fosse absolutamente igual ao leite materno sem NENHUMA diferença entre as composições, acreditas que não faria diferença alguma entre essa variedade e a natural?

Existe muito mais do que um exame em qualquer exame. Um exame, assim como o ato de amamentar carregam significados que extrapolam sua operacionalidade. Eles agem no simbólico, ultrapassando os limites de sua ação física e funcional. Dar uma mamadeira e fazer ecografias simbolizam a defectividade essencial da mulher, que precisará dos recursos outros (a tecnologia) para dar conta de suas questões fisiológicas de gestar e maternar. Esses símbolos REFORÇAM a imagem diminutiva da mulher na cultura por colocá-la como essencialmente incompetente para dar contas, por si mesma, dos seus desafios de mulher.

Não se trata de permitir ou não a realização de um exame. Nesse aspecto é igual ao abuso de cesarianas. É óbvio que existem malefícios nesses abusos e que precisam ser criticados à exaustão, mas ainda prefiro mulheres livres para tomar decisões erradas e tolas (na minha perspectiva e na da ciência). O texto não tangencia a questão de cercear escolhas, mas infere que essa “escolha” NUNCA é totalmente livre e sofre condicionamento da cultura e do médico enquanto significante. E este médico tem muito a lucrar com isso, por esta razão estas opções tem aspectos éticos relevantes.

Uma ultrassonografia expropria simbolicamente a gestação de uma mulher ao colocar esta relação intermediada por uma máquina. Tudo o que ocorre depois disso é marcado por essa intervenção invasiva, em maior ou menor grau.

O discurso médico é a tradução da visão de mundo da medicina ocidental contemporânea com a qual convivemos. Mesmo sendo diverso e plural não é difícil traçar uma linha que nos conduz à fala da Medicina na cultura. O mesmo e pode dizer do discurso jurídico ou político.

Dizer que não existe um discurso médico dominante – que é iatrocêntrico, etiocêntrico e tecnocrático – porque existem médicos que “respeitam pacientes e evidências” é o mesmo que negar a supremacia da visão alopática porque conhece alguns homeopatas; é o mesmo que negar o machismo porque alguns amigos lavam a louça…

Na obstetrícia a existência de hospitais com 90% de cesarianas sepulta essa discussão. Houvesse respeito pelos pacientes como DISCURSO HEGEMÔNICO e isso jamais seria admitido ou tolerado.

Eu entendo o cuidado para não afastar os bons médicos com essa perspectiva e esse conceito mas na minha opinião os bons profissionais são capazes de fazer mea culpa e exercitam a autocrítica. Nenhum bom médico que conheço nega a crise ética da medicina, que nada mais é do que um dos milhares de braços da crise do capitalismo mundial.

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Partos e Barbas

“Se o parto ocorresse nos homens ninguém ousaria questionar a decisão sobre onde ele ocorreria. Por outro lado, se a barba crescesse nas mulheres, ela seria tratada como um crescimento anômalo e perigoso de pelos faciais, que demandaria tratamento e intervenção médica.”

A análise do parto – e seus riscos – como um fenômeno meramente biológico, que ocorre sobre corpos reais, sem linguagem e sem alma, é o que mais me espanta nos debates sobre local de parto. A interface que se cria entre questões de gênero e poderes corporativos fazem desse tema um prato cheio para as discussões contemporâneas sobre liberdade e autonomia para as mulheres. O crescimento dessa modalidade, na Europa, nos Estados Unidos e mesmo no Brasil, vem na esteira de questionamentos cada vez mais intensos sobre a interferência do biopoder sobre as decisões soberanas de mulheres sobre seus corpos e seus destinos. Esta tendência crescerá de forma muito intensa nos próximos anos, pois que não há como retroceder quando se trata de liberdades conquistadas.

Cada vez que eu vejo colegas publicando trabalhos enviesados sobre local de parto, negando-se a olhar para trabalhos PROSPECTIVOS de partos PLANEJADOS, embasando POLÍTICAS de saúde – como na Holanda ou Inglaterra, que inserem o parto domiciliar como alternativa válida e recomendável – eu percebo que “risco” e “segurança” são palavras usadas por estes debatedores para encobrir os verdadeiros valores ameaçados: Poder e Controle.

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Muro

Muro Berlim

Quando escrevo que percebe-se ao longe uma luz no fim do túnel sou – com frequência – metralhado virtualmente. Sei que é uma luzinha tênue, como uma lâmpada de árvore de Natal. Mesmo assim, algo aos poucos está acontecendo. A truculência típica da corporação está lentamente cedendo espaço para a aceitação de postulados mais modernos e alinhados aos direitos humanos reprodutivos e sexuais. Acredito que, com o tempo, os “caciques” fixados no biopoder e na manutenção de privilégios se sintam cada dia mais constrangidos e isolados.

Todavia, eu também acho difícil poder testemunhar uma verdadeira revolução no sentido da plena humanização do nascimento ainda em vida. Sei que as transformações que tratam de valores profundamente inseridos na rocha das culturas só produzem efeito após uma lenta erosão. Por outro lado, quando eu era residente no hospital escola da universidade no final dos anos 80, um colega me disse:

Ricardo, essa sua história de parto de cócoras, parto fisiológico, parto humanizado – apesar de estar absolutamente correta por qualquer ponto de vista – jamais vai “colar” pois está ligada ao poder. O poder é o motor do mundo e fazemos qualquer coisa para, depois de conquistado, mantê-lo conosco. E ninguém abre mão do poder sem luta ferrenha. Olhe ao redor e veja o mundo em que estamos. Os poderosos vencedores da segunda guerra mundial ergueram um muro separando a Alemanha há 40 anos que ainda está de pé. E eu te afirmo que ele jamais cairá“.

Nunca esqueci de suas palavras “proféticas”…

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Crise

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Como todo movimento social que ameaça poderes instituídos – em especial o biopoder – a humanização do nascimento cresce de forma lenta, consistente e continuada. Em muito lugares, apesar do recrudescimento de posturas autoritárias por parte de alguns profissionais, a proposta de rever criticamente o modelo de atenção ao parto mostra-se cada vez mais atual e forte. Novas doulas estão surgindo e novos profissionais – mais preparados para a “nova obstetrícia” – começam a tomar o lugar ocupado até então pelo velho paradigma.

Para atender o contingente cada vez maior de mulheres bem informadas sobre o tema a autoridade inquestionável do profissional já não é mais suficiente. Empatia, gentileza, respeito e atualização tornam-se, a partir de agora, elementos indispensáveis, ferramentas fundamentais na atuação profissional, junto com a parceria necessária com os outros profissionais que participam no parto.

Por outro lado, é constrangedor ver o que escrevem alguns representantes da categoria obstétrica. Ao invés de continuarmos afirmando absurdos – como a cesariana não causa mal – e se colocar de costas para o RESTO DO MUNDO que se preocupa com o excesso de cesarianas, melhor faríamos se tivéssemos uma postura crítica, dura e profunda, aproveitando o momento de crise que estamos vivendo na atualidade. Estas circunstâncias históricas nos proporcionam oportunidade de refletir sobre os rumos que a tecnocracia aplicada ao parto nos levou, e estamos perdendo tempo tentando tapar o sol com a peneira, caindo no ridículo e atrasando o progresso do debate.

Sim, cesarianas multiplicam a morbi-mortalidade de mães e bebês, e para isso temos boa ciência para confirmar acessível facilmente na Internet. Os próprios pacientes já sabem disso. Tentar usar refrões como “o direito de decidir” das pacientes apenas esconde o desejo de que as coisas se mantenham como estão, e que as pacientes continuem a realizar cesarianas (principalmente no setor da medicina suplementar) pela forte pressão psicológica que sofrem de todos os lados, inclusive dos profissionais.

O momento é ideal para a reavaliação dos rumos da assistência ao parto, exatamente pela crise de valores e pelo crescimento de uma postura mais consciente por parte dos pacientes. Não há mais como atender gestantes e acreditar que elas são ignorantes do significado amplo – psicológico, fisiológico, mecânico e espiritual – de um parto e de uma cesariana. Os novos médicos vão encontrar as “novas mulheres” que já cresceram com a Internet na ponta dos dedos e que sabem exatamente do que trata a medicina baseada em evidências e o que são direitos reprodutivos e sexuais.

Espero que estejam preparados.

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