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Conservadores e Progressistas

Eu sempre me defini como um progressista, de esquerda, comunista e com uma postura aberta e franca sobre a minha posição política. Jamais achei que esta é uma questão moral, a qual me tornaria melhor do que os outros por estar do “lado certo” do espectro político. Não acredito nisso. Conheço pessoas de direita que são anjos, gente caridosa, amável, inteligente, culta e espiritualizada. Contrário senso, conheço esquerdistas toscos, violentos, agressivos, preconceituosos, sexistas e vingativos. As qualidades morais não se estabelecem entre progressistas e conservadores; elas são produzidas em camadas muito mais basilares de nossa estrutura psíquica.

Digo isso porque entendo que as posições políticas estão profundamente sedimentadas na nossa especial visão de mundo – e de nós mesmos. São valores adquiridos numa fase muito inicial da vida. Um conservador é alguém que tenta manter o que foi conquistado. Sua missão é não perder as conquistas, garantir o caminho percorrido e não permitir aventuras que possam colocá-las em risco. Já os progressistas querem ver adiante, romper barreiras, atravessar os limites, arriscar novos caminhos e questionar valores. Um tem os pés no chão e o outro as mãos apontadas para o céu.

Não existe erro em nenhuma dessas posturas; ambas são válidas e necessárias. Não há nenhum problema moral em exigir que as mudanças sejam lentas e cuidadosas, assim como não há equívoco em desejar lançar-se ao espaço e experimentar a novidade do mundo. Ambas são posições subjetivas naturais e moralmente válidas, e pessoas más e boas ocorrem em ambos os lados desse embate.

Quando no inicio desse século resolvemos intensificar os debates sobre as definições da “humanização do nascimento” enquanto movimento, ideologia, filosofia e prática eu deixei claro que havia uma série de princípios dos quais não poderíamos abrir mão, sob pena de perdermos a base ideológica que nos conectava. Por esta razão, sempre me posicionei de forma muito forte contra a ideia de “cesarianas humanizadas” na medida em que o protagonismo é um fator essencial nessa definição e, estando ausente num procedimento cirúrgico, não poderia ser tratado como tal. Da mesma forma, sempre me mantive fiel à proposta revolucionária da obstetrícia – o modelo de parteria – não aceitando as propostas reformistas que muitos ainda perseguem e defendem com fervor.

Nesse aspecto específico, eu sempre me comportei como um “conservador”, e acredito que posso até parecer um “reacionário” aos olhos dos que acreditam que “o importante é o resultado, não a via de parto”. Por isso eu posso entender quando conservadores em várias áreas me falam de suas preocupação em relação à sexualidade, gênero, costumes, economia, pedagogia, educação dos filhos etc, mesmo não concordando com sua visão de mundo. E também entendo visceralmente a perspectiva daqueles que, como eu, lutam por mudanças.

A idade nos garante esse tipo de vantagem. Podemos enxergar esses conflitos e atritos com menos apaixonamento, de forma mais compreensiva e situando-se de maneira mais racional diante desses dilemas. Isso não significa “frouxidão”, mas “flexibilidade”; não é “fragilidade”, é “paralaxe”.

Como eu dizia ao meu pai, ao ouvir muitos de seus conselhos cheios de sabedoria: “são as benesses da senectude”.

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Cesarianas “humanizadas”

A respeito de uma cena de cesariana realizada de forma delicada – com nascimento empelicado – e o debate que se seguiu, onde alguns participantes afirmavam que se tratava de uma “cesariana humanizada”, uma discussão que acompanho há mais de 20 anos.

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“Uma cesariana pode ser delicada, humana e respeitosa, mas jamais “humanizada”.

Vejamos porque não aceito essa definição para estas cirurgias. Faço, já há muitos anos, esta diferença porque o conceito que utilizamos é de que a humanização do nascimento se apoia em três elementos constitutivos:

  1. a atenção baseada em evidências
  2. o enfoque interdisciplinar
  3. o protagonismo do evento garantido à mulher

Não é difícil de entender que em uma cesariana o protagonista do evento é o médico e suas habilidades cirúrgicas. Portanto, uma cesariana – mesmo escolhida pela mulher ou com indicações médicas claras – não pode ser “humanizada” por não possuir um dos elementos basilares da humanização: o protagonismo garantido à gestante. Na cesariana, como em qualquer cirurgia, o paciente será sempre objeto da arte médica e não sujeito do processo.

Não se trata de um julgamento de mérito, mas uma questão semântica, de conceito. Como eu defino a humanização como sendo uma estrutura suportada por três pontas (protagonismo, Saúde Baseada em Evidencias e a interdisciplina) eu não posso considerar uma cesariana como humanizada – mesmo quando ela for útil, delicada, humana, bem indicada e até salvadora – pela falta de um dos elementos estruturantes.

Além disso, sabemos que existe uma questão semiótica neste rótulo reivindicado pelos propagadores das “cesarianas humanizadas”. Essa demanda serve para criar confusão entre uma cesariana – que é uma intervenção cruenta e artificial – e os mecanismos fisiológicos e naturais do corpo, chamando ambos os procedimentos de “humanizados”. Assim, para muitos fica a mensagem de que “tanto faz a via de nascimento se ambas as formas de nascer forem humanizadas“, certo?

Não, cesariana é cirurgia, parto é parto, assim como fórmula láctea é uma coisa e leite materno é outra. A superioridade em termos de riscos diminuídos e promoção da saúde do leite materno e do parto normal sobre suas variantes artificiais sequer precisa ser discutida.

Todo nascimento tem sua beleza. Mesmo a cesariana, que é uma cirurgia de grande porte, pode ser realizada com delicadeza e respeito, fazendo do nascimento pela via cirúrgica um evento igualmente belo e significativo. Não se trata de desmerecer esta cirurgia e muito menos quem porventura precisou se submeter a ela, mas é um cuidado para resguardar o conceito de humanização para os processos naturais e fisiológicos, onde a própria mulher mantém o controle dos tempos, das presenças, das posições e dos ambientes.”

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Cesarianas humanizadas

Não…. eu não acredito em “cesarianas humanizadas”. Esse é um termo historicamente utilizado para trazer a cesariana para próximo da seara da humanização. É uma mensagem para o inconsciente: “Tanto faz se for cesariana ou parto normal, o importante é ser humanizado”. O objetivo é retirar o peso da cesariana e equalizar as experiências humanas de dois processos absolutamente diferentes e que só tem como ponto em comum o nascimento de uma criança. Para justificar minha recusa ao termo apresento meu conceito de humanização, que consiste de 3 pontos fundamentais:

1- Garantir o pleno protagonismo à mulher
2- Visão interdisciplinar (o parto não é um evento médico, mas humano)
3- Conexão com a SBE – Saúde Baseada em Evidências

Como se pode ver uma cesariana retira o protagonismo da mulher e o coloca nas mãos do profissional. Ela não tem o controle do parto; mais ainda, ele deixa de existir sendo transformado em um evento cirúrgico. Assim a expressão “cesariana humanizada” carece do elemento fundamental que sustenta as propostas de humanização: o protagonismo garantido à mulher em suas escolhas.

No meu modesto ver as pacientes submetidas a uma cesariana serão sempre objetos do procedimento, jamais sujeitos. Podem ser sujeitos da escolha, mas não do ato cirúrgico, que é médico. Não vejo, porém, erro algum em ser objeto de intervenção médica quando necessário, desde que haja boas razões para que esse protagonismo seja confiscado. Repetindo: cesarianas salvam vidas, mas seu abuso as retira. Não é demérito algum para uma mulher que precisa de uma cirurgia, mas uma perda enorme para aquelas que, sem verdadeiramente precisar, acabam sendo a ela submetidas.

Uma cesariana pode ser “humana” no sentido de gentil, cuidadosa, adequada e justa. Deve ser, acima de tudo, bem indicada, apenas como última alternativa a um parto fisiológico – quando todas as outras alternativas para o sucesso de um parto vaginal falharam. Entretanto, não pode ser “humanizada” por não oferecer a característica mais essencial da humanização, qual seja, o protagonismo feminino no processo.

Sei que debatemos semântica, mas sei também o que existe por trás dessa confusão. O mesmo truque de palavras se usa com a “amamentação artificial”, cuja propaganda procura produzir confusão com o verdadeiro leite, aquele de quem usa a “mama”. Assim como a indústria do “leite artificial”, a indústria da cesariana usa o termo “humanizada” para qualificá-la e aproximá-la do parto normal, com o mesmo objetivo de dissimular a diferença brutal entre o processo fisiológico e o artificial que observamos em todos os aspectos envolvidos: segurança, (re)adaptação, conexão com o bebê, fisiologia respeitada, perda sanguínea, amamentação, etc.

É exatamente para fugir desde tipo de confusão linguística proposital que procuramos alertar sempre que tal expressão aparece.

Protagonismo é uma palavra grega que se compõe de dois elementos: proto (primeiro) e agonistes (ator, lutador). O protagonista é o ator primeiro, principal. Em uma cesariana este ator é o médico, não mais a paciente. Protagonismo é ter autonomia para tomar decisões. Numa cesariana a paciente não pode mais “fazer seu parto”; o médico é quem tem essa tarefa. Portanto, se brigamos tanto pelo protagonismo – sem o qual teremos apenas sofisticação da tutela – a cesariana jamais será algo de pleno protagonismo, já que a paciente é objeto da arte do profissional que a opera, e não o sujeito de suas ações.

Mas, por favor, percebam o que se esconde por detrás do meramente manifesto. Ao dizermos “cesariana humanizada” existe um conceito escondido que não se atreve a aparecer. É dessa dissimulação que falo. Nada disso impede que ela faça escolhas conscientes. Pode até escolher, sem nenhuma justificativa médica, fazer uma cesariana. Considero essa uma opção válida, mesmo que mais arriscada para a mulher e seu bebê. Só não pode – no meu modesto ver – qualificá-la como humanizada.

Cesarianas, por serem atos médicos, não podem ser protagonizadas pelas mulheres. Assim sendo, e se acreditamos que o protagonismo está na essência da humanização, uma cesariana será sempre uma cirurgia que, mesmo quando justa e delicada, não pude ser “humanizada”. Estou debatendo o TERMO e não a qualidade de partos e cesarianas. Não posso admitir a utilização equivocada e oportunista de um termo que nos é muito caro.

Recordem apenas que esse termo era ODIADO pelo stablishment médico até poucos anos, com a tosca argumentação de que era redundante, já que o parto era feito em humanos e, portanto, era impossível não ser “humanizado”. Argumentação chula de quem nunca entendeu que a expressão se relacionava ao movimento humanista do século XVIII, e não ao fato de sermos do gênero humano. Pois agora, passada a rejeição, advém a “apropriação indébita” da expressão por nós construída, para confundir as intervenções (mesmo justificadas) com o processo fisiológico em que a paciente é a protagonista. Isso eu não vou aceitar.

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