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Vítimas

“As universitárias de Bauru que debocharam de colega de 44 anos abandonam faculdade. A Unisagrado afirmou que abriu processo disciplinar contra as estudantes, mas elas “solicitaram a desistência do curso de Biomedicina” durante a apuração do caso.”

Muita gente feliz com o desfecho do caso…

Eu pessoalmente creio que as verdadeiras vítimas dessa história foram as três meninas que fizeram um comentário inadequado para uma colega mais velha. Elas foram vitimadas pela fúria das redes sociais, de forma inexorável, brutal e cruel. Já a senhora, colega de turma, recebeu tão somente uma crítica, de forma jocosa e infantil. Se a gente acredita que as pessoas não podem suportar piadas desse tipo, que tipo de sociedade estamos criando??? Eu não tenho empatia alguma por pessoas (presumidamente, porque não ouvi nada dela) que se desmancham como castelos de areia diante das mais leves críticas.

Curiosamente, fazemos críticas, memes, gozações, ataques e até acusações de todo tipo – inclusive falsas – contra pessoas de outro viés politico, como a família Bolsonaro. Colocamos apelidos demeritórios em personagens da direita (Nikolas “chupetinha”, por exemplo) sem nenhum pudor e sem nos preocuparmos que isso possa lhes causar danos. Acaso temos empatia pela crueldade feita contra estes inimigos? Não, por certo, e ainda exigimos que essas pessoas atacadas por nós tenham fibra e suportem as críticas e piadas porque, afinal, faz parte do jogo. Pois eu digo que voltar a estudar na maturidade e escutar risadinhas de colegas adolescentes faz parte do jogo também. Não é aceitável uma cultura em que é valorizado ser frágil, um floco de neve que se esfarela diante de adversidades.

O principal problema de tratar adultos como se fossem crianças (ou velhos senis), que precisam ser protegidos de quaisquer ataques, é que isso rouba deles o protagonismo. Tornam-se objetos do nosso cuidado. Protegemos essa estudante mais velha porque acreditamos ser ela incapaz de se defender, sem condições de responder diretamente às meninas e tratar desse assunto na hora do recreio. Pela nossa ação esta senhora ficou esmagada entre o ataque infantil e tolo das coleguinhas e a defesa exagerada e alienante que as redes sociais fizeram. A voz dela – como a voz de uma criança – sequer foi considerada. Ela foi tratada por todos como uma incompetente.

A proteção exagerada só se justifica quando temos certeza da incapacidade de quem protegemos. É assim que fazemos com nossos filhos, que se mantém sob nossa redoma protetora. Todavia, chega um momento que a gente olha para o filho e diz: “Voce já está bem crescidinho. Isso você mesmo terá que resolver, diretamente com seu colega. E para de chamar a professora por qualquer coisinha que aconteça. Ela só deve resolver coisas muito graves. Se ele lhe chamou de “bobo, chato ou feio” lembre que você não é. Você é uma ótima pessoa e a opinião dele não pode lhe afetar dessa forma”.

Ou seja, estimule o protagonismo, a autonomia e a autoestima do seu filho. Digo mais: se um dia eu fosse ofendido (como fui a vida toda, chamado de gordinho, burro, maconheiro, etc) e minha mãe (ou a diretora) viesse me defender creio que jamais voltaria à escola, porque não suportaria a extrema humilhação de não conseguir “resolver meus B.O.s” por conta própria e ter que aceitar a intervenção da mãe ou da escola. O mesmo ocorre na vida adulta, pelo Estado, através da justiça burguesa.

Já existe um razoável consenso de como devemos educar os pequenos neste aspecto. Sabemos não ser possível evitar os ataques incessantes do mundo, mas temos a chance de fortalecer suas personalidades a ponto de que uma simples ofensa tola não os faça ruir. O tempo da judicialização e dos sujeitos frágeis, de gente que se ofende por literalmente qualquer coisa – aplicando sempre a desculpa “só eu sei o que sofri, você não pode julgar” – acaba jogando a análise da ofensa para a absoluta subjetividade, impossibilitando um julgamento de valores pessoais. Este tempo está, finalmente, acabando. Esse tipo de sociedade é insuportável e cínica, e sabemos que não se muda a sociedade pelos tribunais, mas através de lentas mudanças estruturais em seus valores.

O que mais me chocou esse caso é que, no afã de proteger uma senhora de 44 anos (!!!) que foi considerada como uma débil mental e incapaz de suportar esta crítica, tratamos de forma brutal e destrutiva três meninas que fizeram algo que todos nós um dia fizemos – uma simples troça inadequada. A barbárie usada contra elas não causou nenhum arrependimento e sequer o fato de terem desistido do sonho de fazer o curso – pelas ameaças feitas pelos colegas – foi levado em consideração. Mais ainda: vejo gente comemorando, com a mesma excitação dos bolsonaristas que gozam ao dizer “bandido bom é bandido morto”. Neste caso “menina que faz piada com coroa é menina expulsa da faculdade”

Se você enxerga muita diferença entre estes gozos punitivistas, eu não vejo. Para mim são faces da mesma moeda, de gente que acredita que uma sociedade é capaz de melhorar com cadeias, punições, expulsões e linchamentos em redes sociais. Eu não creio nessa perspectiva de sociedade, e tenho pena de quem se alegra com a desgraça alheia. Estes, de dedos em riste, ainda não se deram conta que o massacre às meninas pelo crime hediondo de fazer uma piada sem noção diz muito mais dos acusadores do que do delito inafiançável das garotas. Mas, tudo bem; do ponto de vista da justiça popular elas já foram executadas.

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Humanização do nascimento, o que é mesmo?

O parto humanizado congrega em suas ideias um evento humano, um movimento social, uma expressão da sexualidade e uma luta política.

Muitos ainda hoje perguntam a definição de “parto humanizado” e acredito que sua definição é fundamental para que as pessoas compreendam a verdadeira amplitude desse termo. É notável que existe confusão com a ideia de “parto gentil”, “parto livre”, parto adequado”, “parto sem violência”, etc. Muitos também confundem parto humanizado com “parto normal”ou parto “vaginal”, mas é preciso entender que o fato de uma criança nascer pela via “vaginal” não significa que o parto tenha sido conduzido com normalidade. Em verdade, muitas das violências obstétricas que testemunhamos em nossa sociedade são fruto da má condução de partos vaginais. É igualmente verdadeira a noção de que realizar cesarianas em benefício de médicos, instituições, escalas, feriados ou pela falta de capacidade de lidar com a intrincada dinâmica do parto normal são atos violentos. A via de parto, por si só, não determina a característica de um atendimento “humanizado”.

É forçoso lembrar que este nome está relacionado com o humanismo, herdeiro do Iluminismo do século XVIII. O Humanismo é a filosofia moral que estabelece o humano como elemento primordial na cultura; é uma perspectiva que se encontra em uma grande variedade de posturas éticas que atribuem a maior importância à dignidade, aspirações e capacidades humanas, particularmente a racionalidade. A “humanização” nasceu na Europa, originada no Renascimento que se opunha à escolástica, valorizando uma postura intelectual crítica e colocando no humano – mais do que na figura de Deus – o foco de todos os nossos interesses, nossa admiração, as diretrizes e o destino da humanidade. Esta corrente de pensamento, em que Erasmus de Roterdã tem um papel de destaque, vem se contrapor ao teocentrismo da idade média, que desprezava as capacidades humanas de adaptação e transcendência. Portanto, a ideia de que “parto humanizado” seria um pleonasmo, pois “se todos somos humanos o parto só poderia ser humanizado” é equivocada e oportunista, pois o termo aponta para um pensamento que coloca nossas ações a serviço da humanidade, contrapondo-se à tecnocracia que nos torna escravizados àqueles que detém o poder tecnológico de controle dos corpos.

Em função disso há muitos anos eu elaborei uma definição que fosse acima de tudo prática, mas que também fosse simples, didática, concisa e que contivesse em seu bojo os aspectos principais dessa ideia.

Assim, na minha perspectiva o parto humanizado pode ser entendido como um projeto sustentado por um tripé conceitual:

  • Protagonismo garantido à mulher;
  • Visão interdisciplinar (o parto não é um ato médico);
  • Atenção baseada em evidências.

Esta definição foi criada há alguns anos para tentar dar a este tema uma delimitação, e assim diminuir as inevitáveis confusões como, por exemplo, confundir parto humanizado com “parto domiciliar”, “parto na água”, ou “analgesia de parto”. Sim, muitos ainda hoje acreditam que oferecer analgesia peridural para as mulheres, retirando do parto seu componente de “dor e sofrimento”, seria oferecer às mulheres uma vivência mais plena do parto, sem os componentes “selvagens” que nos afastam da “alma” enquanto nos aproximam inexoravelmente do “corpo”. Esta confusão do parto humanizado com o “parto indolor” é ainda muito prevalente entre os homens, para quem as dores do parto carecem de sentido.

Protagonismo garantido à mulher significa que esse evento está sob o controle das mulheres – ou daquela especifica mulher que o está atravessando, ou sendo atravessada por ele – seus valores, suas expectativas, suas perspectivas e seus desejos, e não a partir de protocolos que mais visam garantir segurança para médicos e instituições do que o bem estar para a mãe e o bebê. Significa colocar o elemento humano – a futura mãe – como o centro das nossas atenções, fazendo com que todas as ações realizadas sobre o processo de nascimento tenham como objetivo precípuo o bem estar das mulheres e não o fortalecimento de sistemas médicos e institucionais de controle sobre seus corpos. “Humanizar o nascimento é garantir o protagonismo à mulher, sem isso teremos apenas a sofisticação da tutela milenar instituída pelo patriarcado”. Assim, o protagonismo feminino no parto é a viga central que sustenta a estrutura do movimento de humanização. Sem ele qualquer outra medida será apenas enganosa ou parcial.

Interdisciplinar porque envolve todo o pensamento humano que se dedica a descrever, compreender ou decifrar o nascimento humano em suas múltiplas formas de abordagem e todas as maneiras de oferecer cuidado. Psicologia, psicanálise, medicina, enfermagem, sociologia, antropologia, fisioterapia são correntes do pensamento que se ocupam da compreensão desse evento. É importante compreender que o parto não é um evento médico, não pode ser controlado pelos pressupostos ideológicos intervencionistas da medicina – a não ser em casos de patologia – e que deve ser entendido como um ciclo normal da vida de uma mulher, como parte da expressão da sua sexualidade, e que por esta razão merece uma abordagem interdisciplinar que contemple todas estas perspectivas. A medicina e suas intervenções jamais melhoraram o processo de parto em sua estrutura milenar, apenas garantiram que os desequilíbrios associados a ele tivessem o cuidado tecnológico adequado – o que é sua justa função.

Atenção Baseada em Evidências serve para se contrapor à milenar tendência de atuar no parto baseando-se em mitos, crenças, crendices, ações perigosas e até violentas. Kristeller (pressão sobre o fundo uterino), tricotomia (corte dos pelos pubianos), decúbito dorsal (deitada de costas na mesa de parto) e episiotomias (corte vaginal) são exemplos clássicos de rituais violentos (inclusive mutilatórios) realizados pela medicina ocidental sem que quaisquer estudos e pesquisas tenham comprovado seu benefício para as mulheres. Em função disso podem ser entendidos como “rituais”, pois possuem seus três elementos definidores: são repetitivos, padronizados e simbólicos, e sua simbologia nos leva aos valores mais profundos de nossa sociedade: o capitalismo, o imperialismo e o patriarcado. Sem a contraposição de estudos, análises e evidências oferecidas pela ciência o parto se mantém um campo aberto e convidativo para a aplicação de rituais que relacionados aos valores mais profundos de uma sociedade, onde impera a violência de gênero deles derivada.

Essa é uma definição simples, prática e útil, mas por certo que não é definitiva. Podemos criar outras, mais complexas e mais abrangentes, mas as definições servem às tarefas de seu tempo e, portanto, acredito que esta ainda seja adequada para a época em que vivemos. Como diria o pensador francês Michel Odent, “para mudar a humanidade é preciso mudar a forma de nascer“. Para isso precisamos garantir às mulheres a plena autonomia para seus corpos e o total protagonismo para a construção de seu destino.

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Dê a eles brioches

Uma história curtinha contada pela Ana Cris, mas que encerra bons ensinamentos sobre como funciona o pensamento biomédico.

“Diálogos surreais – esse entre uma obstetra humanista e um anestesista do plantão.

O que é esse negócio de balão?

Estou induzindo um parto, mas ela tem cesárea prévia, por isso usei esse balão que ajuda a preparar o colo.

Ué, e por que não pode fazer uma cesárea?”

Já eu acho que seria possível fazer uma tese de doutorado baseando-se na pergunta inocente deste anestesista. Em verdade, toda uma cosmologia se encerra neste questionamento que deixa explícita a incapacidade do médico em questão de enxergar do que estamos falando. Não à toa a pergunta veio de um anestesista, o profissional responsável por obliterar os sentidos e cujos pacientes são absolutamente passivos e inertes. Seria, por óbvio, o último a entender o que seja protagonismo e porque tanto o valorizamos.

Essa cena lembra duas outras. A primeira, Maria Antonieta ao responder um seu ministro que desse ao povo brioches, quando avisada que lhes faltava o pão e a fome destruía as famílias francesas. Não era desdém, era a incapacidade de enxergar para além da bolha palaciana.

A outra cena aconteceu comigo ha 25 anos no hospital da Brigada Militar numa reunião privada com o diretor do hospital, um pediatra de carreira. Dizia-lhe eu da importância de manter a equipe de enfermeiras obstetras no plantão como estratégia para diminuir o exagero nas indicações de cesariana. Ao ouvir minha inconformidade com as taxas elevadas de cirurgias ele exclamou:

Nao entendo o que chamas de “exagero”. Digo-lhe que em 26 anos atendendo salas de parto nunca vi uma cesariana ser mal indicada.

Duvido que essa frase, como a da Rainha francesa, tenha sido pronunciada com escárnio ou deboche. Nada disdo; era mesmo pura ignorância, mas uma falta de conhecimento que se assentava sobre o pilar fundamental que sustenta a prática da maioria dos profissionais que atendem o nascimento: a crença na incapacidade da mulher de parir com segurança e a aposta na suprema fragilidade dos recém-nascidos. Ambas, erros da natureza madrasta, só podem ser corrigidas pela intervenção fálica da tecnologia, mesmo que o preço seja a expropriação do parto de quem sempre o teve como seu.

Claro é que estas são construções que se fazem durante o “rito de passagem” do treinamento médico que ocorre desde o primeiro dia de aula até os últimos instantes da residência. Um saber subliminar, pervasivo, não expresso mas que contamina todo o olhar profissional. Algo de tamanha intensidade que coordena as ações, atitudes e o próprio entendimento sobre os pacientes.

Ao dizer “por que não faz uma cesariana” o profissional expressa de forma holofrástica todo um conceito relacionado não apenas à superioridade da tecnologia sobre a natureza, mas também a questão de gênero – pulsante e onipresente – que permeia toda a decisão médica sobre o corpo das mulheres.

A mesma incapacidade de responder ao pediatra do hospital da brigada eu tive nas vezes em que anestesistas me perguntavam (em suas infinitas variedades) a questão “o que está esperando para operar?”

Sem entender a transcendência de um nascimento e a imponderabilidade dos afetos e significados envolvidos não há como explicar a importância de garantir à mulher o direito de parir por suas próprias forças. É exatamente nesses espaço, neste vão de olhares, que se insere a humanização do nascimento, que vai mostrar sentido onde muitos enxergam apenas capricho.

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O Fim das listas

O Yahooo anuncia que as listas de discussão serão apagadas no dia 14 de dezembro, enterrando as memórias do surgimento de um dos mais importantes movimentos sociais ocorridos na virada do século, no bojo dos debates de gênero e sexualidade.

Não é justo dizer que a humanização do nascimento “nasceu” com os grupos de discussão da Internet. Afinal, a inconformidade já existia, os “encontros da Fadynha” todos os anos no Rio de Janeiro também e a ReHuNa havia sido criada em 1993, em Campinas. Porém, foi com a cumplicidade compartilhada via internet que essa grande massa de pessoas da classe média conseguiu um canal para o escoamento de ideias, propostas, indignações, reclamações, sonhos e projetos. Deixo claro meu reconhecimento de que os grupos de discussão foram, mesmo, um fenômeno burguês. Mulheres – em sua imensa maioria – que dispunham de tempo e recursos (no final do século passado um computador era uma pequena fortuna) começaram a debater sobre suas frustrações com os partos e com o que elas imaginavam ser um futuro possível. Eu sempre tive essa certeza das limitações de nosso discurso, mas antevia que essa narrativa um dia tomaria uma mudança radical. Certa feita, durante uma palestra na Bahia, fui confrontado educadamente por uma negra ativista e feminista que, diante do meu entusiasmo com as possibilidades oferecidas pela Internet na sedimentação do nosso ideário de humanização, me contestou, com um sorriso emoldurado por um cabelo cheio de contas multicoloridas: “Muito bonita sua proposta, doutor, mas quando isto será realidade para as mulheres pobres e faveladas da periferia de Salvador?

Minha resposta foi curta e simples: “Se essa proposta se revelar uma modinha para mulheres de classe média, que dispõem de um computador para desaguar suas insatisfações, será bom que termine rápido, como são as cores e roupas de verão. Entretanto, se for um projeto para destituir “podres poderes” que abusam da autonomia e da liberdade de escolha das mulheres sobre seus corpos, deverá atingir a todas as mulheres, em especial as destituídas e esquecidas de quaisquer periferias“.

Eu fui arrastado para este universo por desenvolver duas paixões – pelos computadores e pelo parto humanizado. Imediatamente me envolvi nos debates das listas que surgiram, sendo as mais expressivas a Partonatural, a Amigasdoparto e a sua sucedânea, a Partonosso. Foi neste espaço virtual que se solidificaram lideranças, amizades e – impossível evitar – algumas grandes inimizades. Como eu sempre disse, os espaços entre os dígitos de uma tela são preenchidos da mesma forma que os versículos da Bíblia, onde mais inserimos nossos valores, medos, frustrações, ressentimentos e (pre)conceitos do que retiramos ensinamentos. De qualquer modo, se não foi a semente da humanização, as listas de discussão rapidamente se tornaram o grande adubo para o crescimento desse movimento que, a cada dia que passa, se torna uma ameaça mais vívida aos poderes patriarcais estabelecidos sobre o controle dos corpos e sobre a expropriação espúria dos nascimentos.

Com os debates das listas de discussão do Yahoo serão enterradas as lembranças mais cálidas dos momentos de heroísmo de um movimento nascente. O que hoje é um consenso – por exemplo, o direito ao parto domiciliar planejado – naquela época era cercado de dúvidas e incertezas. Debatíamos questões hoje soterradas pelas evidências, como episiotomias e direito a acompanhante. Foi lá onde, pela primeira vez, houve um debate aberto e extensivo sobre um personagem que aos poucos se tornou o epicentro dos ressentimentos da classe médica: as doulas, mas que hoje são quase uma unanimidade entre os pesquisadores do bem-estar materno.

É triste ver uma parte da nossa história ser enterrada, mas também temos que comemorar o que esta etapa significou em nossas vidas. Sem estas listas talvez não houvesse SIAPARTO (Ana Cris seria uma mega-empresária no ramo de flores), não haveria um movimento nacional de doulas, não teríamos amigos de quase duas décadas morando a milhares de km e muitos contatos que hoje fazem parte dos nossos amigos mais presentes e calorosos estariam ainda distantes, guardando para si mesmos e seus parceiros ideias que, por este veículo, hoje encantam a todos.

Para todos os “herois da resistência” que enfrentaram os leões do patriarcado obstétrico, meu abraço e meu reconhecimento pela história que ajudaram a escrever. Para as pessoas com quem briguei, espero que me perdoem. Afinal, não se faz uma revolução como fizemos com tapinhas nas costas; algum nível de atrito sempre haverá. Para todos aqueles que aprendi a amar e admirar através das nossas listas, digo apenas que foi uma grande honra poder compartilhar essa aventura com vocês.

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Invasões Bárbaras

As manifestações de médicos atacando os avanços do protagonismo feminino – em especial planos de parto – são parte do velho modelo anacrônico, carcomido, ultrapassado e embolorado da obstetrícia misógina brasileira. Tais profissionais usam a retórica oportunista de se vitimizar, colocando-se como perseguidos e injustiçados por uma horda de mulheres enfurecidas e cheias de “sangue nos olhos”. Posso garantir que mulheres que fazem planos de parto não são movidas por ódio, mas são as pontas de lança da idéia de “gestação participativa”

As acusações contra as mulheres que se informam e reivindicam são pura balela. Quem já passou 5 minutos dentro de um centro obstétrico de hospital privado sabe como acontecem as pressões e os constrangimentos a elas impostos. Estes sequer se iniciam ali; em verdade são o corolário de um processo que começa no primeiro comentário sobre a “bacia pequena”, a pouca (ou muita) idade, os riscos de sofrer todo o processo e não “ter passagem”, a segurança da medicina “moderna” (tecnológica), a crueldade dos partos “animais” e os riscos de ocorrer algo muito grave num parto pela vagina. Sem falar no “estrago” que uma criança é capaz de fazer ao “parquinho de diversões” do marido.

O discurso da obstetrícia nacional ainda é uma expressão de poder que, em cada detalhe – do excesso de exames à forma depreciativa como se descreve o processo de parir – traduz a visão diminutiva que ela (a obstetricia) cultiva sobre a mulher e sua fisiologia. É o que chamo de “misoginia estrutural”

A fala desses sujeitos apenas reproduz o que se escuta na Escola Médica e nos corredores e cafezinhos do hospital. Os médicos são descritos por si mesmos como vítimas de pacientes obcecadas e transtornadas, sem que possam entender de onde vem tanta ingratidão. Não raro culpam a Internet e as “ativistas loucas”.

Ingratas….

Sim, porque para eles cada mulher que vai parir não deve ao seu obstetra menos de que a mais absoluta gratidão por salvá-la de uma natureza má e cruel, que ofereceu como veículo de sua alma nada mais do que uma “máquina defeituosa e ineficiente”.

É contra essa imagem deturpada do corpo das mulheres e o questionamento radical de quem verdadeiramente o controla que se faz um Plano de Parto. É para que os médicos saibam que seu conhecimento tem valor e merece respeito, mas que não está acima da soberania que todos nós temos sobre nossos corpos e almas.

A história lembrará desse tempo como a invasão bárbara sobre o território dos corpos femininos. Lembraremos dessas falas reacionárias como os estertores do domínio espúrio sobre a sexualidade das mulheres. A partir daí um novo tempo surgirá, onde as parcerias serão feitas de forma mais livre e justa, garantindo o respeito pela autonomia, que se manterá pairando impávida sobre todas as palavras e gestos.

E que assim seja.

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Cesarianas humanizadas

Não…. eu não acredito em “cesarianas humanizadas”. Esse é um termo historicamente utilizado para trazer a cesariana para próximo da seara da humanização. É uma mensagem para o inconsciente: “Tanto faz se for cesariana ou parto normal, o importante é ser humanizado”. O objetivo é retirar o peso da cesariana e equalizar as experiências humanas de dois processos absolutamente diferentes e que só tem como ponto em comum o nascimento de uma criança. Para justificar minha recusa ao termo apresento meu conceito de humanização, que consiste de 3 pontos fundamentais:

1- Garantir o pleno protagonismo à mulher
2- Visão interdisciplinar (o parto não é um evento médico, mas humano)
3- Conexão com a SBE – Saúde Baseada em Evidências

Como se pode ver uma cesariana retira o protagonismo da mulher e o coloca nas mãos do profissional. Ela não tem o controle do parto; mais ainda, ele deixa de existir sendo transformado em um evento cirúrgico. Assim a expressão “cesariana humanizada” carece do elemento fundamental que sustenta as propostas de humanização: o protagonismo garantido à mulher em suas escolhas.

No meu modesto ver as pacientes submetidas a uma cesariana serão sempre objetos do procedimento, jamais sujeitos. Podem ser sujeitos da escolha, mas não do ato cirúrgico, que é médico. Não vejo, porém, erro algum em ser objeto de intervenção médica quando necessário, desde que haja boas razões para que esse protagonismo seja confiscado. Repetindo: cesarianas salvam vidas, mas seu abuso as retira. Não é demérito algum para uma mulher que precisa de uma cirurgia, mas uma perda enorme para aquelas que, sem verdadeiramente precisar, acabam sendo a ela submetidas.

Uma cesariana pode ser “humana” no sentido de gentil, cuidadosa, adequada e justa. Deve ser, acima de tudo, bem indicada, apenas como última alternativa a um parto fisiológico – quando todas as outras alternativas para o sucesso de um parto vaginal falharam. Entretanto, não pode ser “humanizada” por não oferecer a característica mais essencial da humanização, qual seja, o protagonismo feminino no processo.

Sei que debatemos semântica, mas sei também o que existe por trás dessa confusão. O mesmo truque de palavras se usa com a “amamentação artificial”, cuja propaganda procura produzir confusão com o verdadeiro leite, aquele de quem usa a “mama”. Assim como a indústria do “leite artificial”, a indústria da cesariana usa o termo “humanizada” para qualificá-la e aproximá-la do parto normal, com o mesmo objetivo de dissimular a diferença brutal entre o processo fisiológico e o artificial que observamos em todos os aspectos envolvidos: segurança, (re)adaptação, conexão com o bebê, fisiologia respeitada, perda sanguínea, amamentação, etc.

É exatamente para fugir desde tipo de confusão linguística proposital que procuramos alertar sempre que tal expressão aparece.

Protagonismo é uma palavra grega que se compõe de dois elementos: proto (primeiro) e agonistes (ator, lutador). O protagonista é o ator primeiro, principal. Em uma cesariana este ator é o médico, não mais a paciente. Protagonismo é ter autonomia para tomar decisões. Numa cesariana a paciente não pode mais “fazer seu parto”; o médico é quem tem essa tarefa. Portanto, se brigamos tanto pelo protagonismo – sem o qual teremos apenas sofisticação da tutela – a cesariana jamais será algo de pleno protagonismo, já que a paciente é objeto da arte do profissional que a opera, e não o sujeito de suas ações.

Mas, por favor, percebam o que se esconde por detrás do meramente manifesto. Ao dizermos “cesariana humanizada” existe um conceito escondido que não se atreve a aparecer. É dessa dissimulação que falo. Nada disso impede que ela faça escolhas conscientes. Pode até escolher, sem nenhuma justificativa médica, fazer uma cesariana. Considero essa uma opção válida, mesmo que mais arriscada para a mulher e seu bebê. Só não pode – no meu modesto ver – qualificá-la como humanizada.

Cesarianas, por serem atos médicos, não podem ser protagonizadas pelas mulheres. Assim sendo, e se acreditamos que o protagonismo está na essência da humanização, uma cesariana será sempre uma cirurgia que, mesmo quando justa e delicada, não pude ser “humanizada”. Estou debatendo o TERMO e não a qualidade de partos e cesarianas. Não posso admitir a utilização equivocada e oportunista de um termo que nos é muito caro.

Recordem apenas que esse termo era ODIADO pelo stablishment médico até poucos anos, com a tosca argumentação de que era redundante, já que o parto era feito em humanos e, portanto, era impossível não ser “humanizado”. Argumentação chula de quem nunca entendeu que a expressão se relacionava ao movimento humanista do século XVIII, e não ao fato de sermos do gênero humano. Pois agora, passada a rejeição, advém a “apropriação indébita” da expressão por nós construída, para confundir as intervenções (mesmo justificadas) com o processo fisiológico em que a paciente é a protagonista. Isso eu não vou aceitar.

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Pesos e Medidas

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“O responsável pelo procedimento é o médico xxxxxxx. Familiares de sete pacientes de xxxxxxx alegam que os parentes morreram em decorrência de complicações da cirurgia, e outras sete declaram ter ficado com sequelas graves. O MPF (Ministério Público Federal) e o CFM (Conselho Federal de Medicina) receberam as reclamações e pedem que a técnica seja proibida até que estudos científicos comprovem a eficácia e segurança do procedimento.” (www vejaagorabrasil. org)

Imaginem se esse médico, ao invés de fazer cirurgias bariátricas questionáveis (em termos de segurança), estivesse atendendo partos domiciliares em sua cidade da mesma forma como países democráticos estimulam e estabelecem como alternativa segura nos seus sistemas públicos de saúde. Como se comportaria o Conselho de Medicina? Sete pacientes já morreram e outros sete estão severamente incapacitados mas é ÓBVIO que este profissional tem TOTAL APOIO e suporte da corporação. Fazer cirurgias com fins fúteis, meramente estéticos, e colocar em risco a saúde dos pacientes NÃO desafia os poderes médicos. Pelo contrário, exalta a medicina como elemento social transformativo e curativo, e o médico como seu condutor por excelência.

Entretanto, o parto domiciliar, ao estabelecer a paciente como participante ativa e PROTAGONISTA do evento retira do médico sua importância capital e diminui sua relevância. Os médicos que dão suporte a estes partos sabem que sua função é outra, e se estabelece como uma vigilância silenciosa sobre os fatos que possam acarretar riscos acima do normal. Não se trata mais de “fazer partos” mas de os “acompanhar respeitosamente”. Essa nova postura dos profissionais ofende a velha guarda da corporação, que não aceita que médicos desafiem a hierarquia secular na atenção à saúde que os coloca acima de todas as outras considerações, inclusive os próprios desejos expressos do paciente.

As formas como a corporação julga estes casos NADA tem a ver com a segurança ou o bem-estar dos pacientes. O critério é sempre a proteção da categoria. Procedimentos que ameacem o valor profissional são atacados impiedosamente, enquanto aqueles que exaltam a sua posição na sociedade tem seus riscos desconsiderados ou despudoradamente negados.

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Conceito de humanização

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“Humanização do nascimento é uma atitude que emerge da mudança conceitual surgida nas últimas décadas sobre o verdadeiro papel da mulher na sociedade, considerando-se os seus direitos reprodutivos e sexuais e reconhecendo suas inatas capacidades de gestar e parir com segurança. Surge através do reconhecimento das inquestionáveis violências institucionais que as mulheres sofrem no período gravídico-puerperal e a responsabilidade que advém desse conhecimento para quem se ocupa da atenção a elas.

Humanizar o nascimento é garantir o protagonismo à mulher, tratá-la com dignidade, oferecendo uma visão integrativa – fugindo do modelo objetualizante e biologicista – e oferecendo um cuidado baseado em evidências atualizadas. É tarefa dessa geração de homens e mulheres que se interessam pela temática abrangente do nascimento mergulhar nesses conceitos e garantir às mulheres a atenção que elas merecem, para o bem de toda a humanidade.”

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Parto “autoral”

A respeito do debate sobre “Parto Autoral” surgido recentemente. Ao me ver este termo é uma tentativa de oferecer uma nova roupagem ao termo “protagonismo”, nosso velho conhecido. A “autoria” do parto é um aspecto de um conceito mais amplo de humanização do nascimento. Parto autoral não avança para além do sentido já debatido da garantia do protagonismo à mulher, algo que enfatizamos desde que o debate sobre uma “nova forma de nascer” começou a ganhar corpo no Brasil e no mundo. Por esta perspectiva a “autoria” é o eixo central a partir do qual os outros elementos da humanização vão se estabelecer. Isto é: sem plena “autoria” nunca teremos humanização, apenas ações parciais que não atingem o cerne da questão do parto: os direitos das mulheres sobre seus corpos. Ou, como diria Max, “sem o protagonismo só resta a sofisticação de tutela“.

protagonismo

Por outro lado, aprofundando-se no debate sobre o protagonismo, um parto pode ser “autoral” e NÃO SER humanizado, desde que para isso não se obedeçam os outros pilares que sustentam esse conceito, a saber: a visão interdisciplinar do evento (retirando dele as amarras de procedimento médico) e as evidências científicas (sem as quais somos presa fácil das mitologias, via de regra misóginas e potencialmente perigosas). Como exemplo podemos citar uma mulher situada no extremo do espectro do protagonismo: uma gestante diabética e hipertensa que resolve de forma autônoma ter seu filho em casa sem o auxílio de qualquer profissional ou tecnologia. É autoral, mas é uma decisão que não tem interdisciplinaridade ou evidências científicas que a sustentem. O mesmo pode ser dito das cesarianas sob demanda: são autorais, mas agridem as evidências científicas no que diz respeito à segurança para mães e bebês.

Por esta razão eu acho que vale a pena esclarecer esses termos novos que surgem no cenário da humanização do nascimento para que não causem confusão.

Resumindo: a Humanização contempla a autoria, pois ela é a parte central do modelo que preconizamos. Por outro lado, a autoria não necessariamente se abriga sob a proteção da humanização. Uma decisão “autoral” não precisa ser humanizada.

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Mônica

mônica

Nas histórias de Maurício de Sousa a personagem Mônica batia nos meninos da rua, e esta era a característica que fez sua fama e sua imortalidade. Ela era protagonista e poderosa, figura central da trama (era a “Turma da Monica”) mas sua forma de reação diante das contrariedades era através da violência física explícita.

Seria ela a personagem a anunciar uma nova mulher que abandonava os estereótipos femininos (candura, docilidade e submissão) desde a mais tenra infância, mas para isso tendo de mimetizar as estratégias de dominação violentas masculinas? Seria Mônica o protótipo da nova mulher que – assim como Batman anunciara o homoerotismo na cultura – nos trazia a nova postura feminina para o século XXI? Ou podemos achar que se trata de uma coincidência, apenas histórias sem um objetivo e sem ter uma conexão com o campo simbólico por onde circulavam?

No creo en coincidéncias. ..

Monica era uma personagem baseada na filha de Maurício de Souza, inclusive nas suas principais características. Hoje a filha é executiva das empresas. Mas se é baseada ou não na realidade é o menos importante, até porque ele poderia escolher outras qualidades dela como exemplares e definidoras, mas preferiu destacar sua força bruta e violência.

Batman também. O criador disse que jamais pensou em Batman como um personagem gay, mas aqui cabe a pergunta: por que a solteirice, a amizade com Robin, a criação especial (sendo mimado pela tia), a figura paterna frágil de Alfred e o sofrimento brutal, cuja indignação o leva a ser o “paladino da justiça“, sublimando sua dor (a constrição sexual) através da luta contra o crime?

Mas a Mônica era violenta. Espancava os meninos. Não era apenas protagonista das histórias, mas além disso usava os recursos masculinos de subjugar através da violência, os quais são naturalmente masculinos, por isso tão universais. Isso existe antes mesmo da cultura: tem a ver com a testosterona, a estatura, a configuração muscular e a fragilidade imposta pela gravidez às fêmeas da espécie.

Mas aqui me refiro, evidentemente, à violência explicitamente física. A violência moral é igual para ambos (apesar de eu achar que é maior nas mulheres, pela supressão da sua vertente física). A escolha da estratégia de fazer Monica FISICAMENTE violenta é que me fez pensar na questão.

Para subjugar, por certo, não é necessário utilizar violência física. Ela pode ser moral, e essa capacidade os homens a tem tanto quanto as mulheres. Muitas mulheres más subjugaram pessoas e nações sem jamais terem cometido uma mínima ação fisicamente violenta.

E não é vergonhoso reconhecer que os homens são fisicamente mais fortes e rápidos que as mulheres.  A”virilidade” é mesmo um atributo masculino, e essa palavra vem de “viril”, “varão”, etc. Força é outra coisa. Mônica batia com e sem coelho. Ela usava seus músculos e sua força para maltratar e subjugar. Por isso mesmo a pergunta: por que Mônica foi mostrada como uma menina que imitava os homens em suas características mais masculinas (pelo menos no que a cultura assim definiu) como a violência física? Por que não reclamamos que Monica usa seus atributos “para dominar quem não os possui.

Fosse Cebolinha um “macho alfa” da história e teríamos um escândalo. Ele seria o opressor, o sujeito que comete bullying, que maltrata, que destrói e que humilha seus amigos através da força. Mas de Mônica suportamos sua violência contra os amigos, e Mônica é perdoada… por ser mulher. Fazemos vista grossa à sua prepotência e à sua violência. Nas histórias acabamos convencidos que as surras que Cascão e o Cebolinha recebiam era, no fundo, “merecidas”.

Não é curioso? Quando as “vítimas” cometem os mesmos erros e pecados dos algozes sempre temos boas desculpas a dar.

E é exatamente por essa razão que eu julgo essa personagem rica e interessante. Ela parece demarcar a virada de uma consciência feminina. Na época em que ela surgiu o feminismo tinha essa cara: “vamos fazer o mesmo que eles“.

Monica era MUITO mais forte que eles, por isso eles apanhavam. Mas era menina, e por isso estava perdoada. A condescendência com a Monica é que me parece o novo. Ela batia, espancava, maltratava os amigos, mas era a protagonista e nós a víamos com bons olhos. Nunca havia pensado muito nessa questão e sempre gostei das histórias, mas Zeza me falou hoje que ficou espantada com a quantidade de violências que ela pratica contra seus “amigos”. Zeza não conseguiu ler uma história até o fim para o meu neto Oliver, pois teria que pular os espancamentos. Não lhe pareceu adequado ou pedagógico contar essas partes.

As pessoas davam MUITA bola para as surras que ela dava nos meninos, pois essa era sua MAIOR característica, lembrada por TODOS. Ela era uma espancadora. Usava a violência como arma e como estratégia de dominação. Entretanto, era perdoada por ser mulher, pois naquele período da cultura era isso que as mulheres ensaiavam: a revanche contra as violências historicamente sofridas. Neste tipo de retruque os excessos são perdoados, as surras têm sua dimensão diminuída, porque é como a tentativa “justa” de equilibrar um placar de abusos francamente desequilibrado.

Cebolinha era esperto e malévolo, pois tentava sempre ludibriar sua opressora. Como todo oprimido usava a fofoca, a maledicência e a dissimulação como armas. Cascão as vezes o ajudava em seus planos, mas era o “sujo”, o que sofria para tomar banho. Mas a característica mais chamativa era o poder superior de Mônica conquistado através da força. Ela não era esperta, ladina, curiosa, vivaz ou bonita. Era forte e, por isso, poderosa. Os meninos apanhavam e a gente sempre tinha a impressão que eles haviam merecido; a surra havia sido bem dada. Por isso é interessante: como julgamos as mulheres que apanham AINDA hoje? “Ah, vai ver que mereceu, que pediu para isso, que usou roupas curtas“. Parece que Maurício fazia uma crítica reversa, mostrando a forma como a sociedade enxerga os …. homens!!! Mas no corpo de uma menina abusadora.

Creio que Mônica é anacrônica hoje, com sua violência explícita, tanto quanto as belas adormecidas o são quando retratam a mulher que é beijada sem autorização, ou que fica em um castelo esperando seu “salvador” para lhe resgatar de uma vida encarcerada. Por outro lado, eu ainda gostaria de ver um filme – ou animação – que fizesse uma releitura de Monica a exemplo que fizeram com “Malévola”, que faz a releitura da “Bela Adormecida”. Queria mesmo ver Mônica se ferrar, sofrer, perder os amigos, ser abandonada e ficar solitária agarrada com seu coelho, enquanto os meninos teriam vidas produtivas apesar das marcas dos abusos que receberam durante toda a infância. Não acredito que o criador de Mônica agiu através de um “radicalismo”, porque sequer acredito que tenha sido consciente (assim como o homoerotismo implícito em Batman), mas suas histórias hoje me parecem o retrato fiel (mas codificado) de um momento de mudança importante na cultura.

Sim, pode ser essa uma boa leitura da obra de Maurício de Souza. Cebolinha e Cascão eram as mulheres da trama, sempre apanhando e tratadas de forma inferiorizada.

É essa a leitura que fiz.

A Mônica agredia porque era agredida” (mas não fisicamente, que fique claro) pelos seus amigos. Bem, há um problema aqui. Tal “explicação” pode justificar todas as guerras e todas as matanças. Todavia, como eu mesmo já falei, Mônica continua sendo perdoada por ser… mulher. No contexto histórico em que ela surgiu essa vingança brutal por parte das mulheres era tolerada e até valorizada. Tínhamos que empatar o jogo da violência. Chega de só o “nosso lado” apanhar. Nessa época uma imigrante latina cortou o pênis do seu marido (supostamente) agressor e não apenas foi absolvida, mas exaltada como heroína por algumas feministas radicais dos Estados Unidos. Não se tratava de uma luta contra a violência aplicada às mulheres, mas uma luta contra os homens violentos, e nessa luta a violência era apenas mais uma arma (O marido tinha o curioso nome de John Wayne).

O problema de justificar a violência física de Mônica é que muitos maridos descrevem EXATAMENTE assim as pancadas que dão em suas mulheres. Vejam que Cebolinha e Cascão agiam como “mulheres” que menosprezavam, humilharam, desmereciam, agrediam verbalmente o “marido” e acabavam sendo espancadas(os). Os homens (Dado Dolabella) que assim se comportam chamamos violentos e espancadores. Para pessoas assim agimos com dureza, punimos com a lei e fazemos doer no bolso, o que para mim está ABSOLUTAMENTE correto. Homem que espanca, em especial as mulheres, merece o rigor da lei, e para isso não há desculpa. Cadeia e multa.

Mas para Mônica, bem, ela sofria na mão deles, era vítima de bullying, era debochada, era humilhada (numa intensidade parecida com a humilhação de um homem enganado), era maltratada por ser dentuça. Nada mais JUSTO que espancar, maltratar, agredir, desmontar e fazer valer seus argumentos através da força superior e da violência.

Pesos e medidas cujas diferenças só podem ser entendidas (mas não justificadas) pela cultura dos anos 70 e 80. Para entender Mônica há que se mergulhar nos valores e no próprio feminismo de décadas passadas. Foi pelo choque de novos valores que Zeza ficou impedida de ler a história até o final, e foi pela sua surpresa que resolvi interpretar o universo de valores que se escondiam por detrás dos desenhos de Maurício, numa exegese obviamente superficial, mas que pode levar a um entendimento mais criativo do fenômeno.

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