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Derrota e dor

Nossa dificuldade de aceitar os reveses e o caótico da vida nos leva a eleger culpados, esquartejá-los e expor suas partes dispersas em praça pública, para o deleite dos corvos sempre à espreita. Nossa necessidade de colocar todos os eventos humanos em uma linha de causalidade já nos faz acreditar que o “gato” expulso da coletiva mostrou a “índole do grupo”, causa essencial de nossa derrota. Ontem mesmo o preço do relógio do Militão foi colocado como elemento que colaborou para o fracasso da seleção nacional. Não foram esquecidos o “bife folheado a ouro”, a fortuna dos jogadores e até suas opções partidárias.

Lógico que a culpa recai com peso maior nos ídolos, como Neymar, o principal responsável pela nossa saída prematura. Tite também foi levado à fogueira pois, afinal, havia uma regra (que eu desconhecia) e ela determina que os mais capacitados batem pênalti primeiro. Além disso, armou mal o time, foi “covarde”, e só ontem li uns 30 esquemas táticos alternativos melhores que o dele, feitos por experts anônimos na prática do ludopédio. Sem falar da ausência de Gabigol, Fulano e Beltrano. Outras razões foram os jogadores descompromissados que só pensam em dinheiro, mulheres e carros importados. Além disso, a seleção tinha que ter apenas (ou majoritariamente) jogadores que jogam no Brasil.

Apesar de não concordar com estas teorias eu as aceito – são a expressão mais explícita do “jus esperniandis“, o sagrado direito a chorar e se indignar com as derrotas. Todavia, eu prefiro entender que estes fracassos são a prova maior da grandeza do Futebol, e são o nosso quinhão de sofrimento para que a mística persista. Já testemunhei vitórias do meu time contra equipes muito superiores, sucessos movidos apenas pela aplicação tática, raça, determinação e pura sorte da minha equipe. E enquanto eu comemorava as vitórias inesquecíveis contra as equipes do eixo, achava ridículas as explicações deles que colocavam a culpa da derrota nas suas falhas, e não em nossas poucas, mas decisivas, virtudes.

Mesmo reconhecendo a superioridade imensa da seleção brasileira sobre seu adversário – inclusive dentro da partida – eu creio que o jogo que nos eliminou mais uma vez da Copa do Mundo mostrou a imensa aplicação tática da Croácia, seu preparo físico superior e a qualidade de um jogador extra classe: Luka Modrić. Prefiro explicar as derrotas pela qualidade de quem nos venceu do que colocar nossos jogadores no pelotão de fuzilamento.

O sonho do hexa foi mais uma vez adiado. Podemos chorar à vontade, mas que nosso pranto seja breve. Afinal, há um país a ser reconstruído.

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Os rios de Brecht

No envelope amassado entregue pelo guarda, Zdenka consegue de imediato reconhecer a letra rude e a firmeza dos traços que ferem o papel produzidos pela caligrafia de Vladimir. Ao alto ele escreveu entre aspas:

“Dos rios dizemos violentos, mas não dizemos violentas as margens que o oprimem.” (Bertold Brecht)

Veja, minha amada Zdenka, esta é uma das mais belas frases e concepções que conheço, querida Zdenka. Vemos com facilidade a violência no assaltante frio, mas não enxergamos as amarras sociais invisíveis que o atam à bandidagem. Dizemos brutal o roubo da propriedade mas não dizemos desumana a privação de quem nunca a teve. Percebemos com clareza a brutalidade de um assalto, mas não saltam aos nossos olhos a injustiça de quem nada tem para perder. Por fim, acreditamos justa a punição de quem de nós algo subtrai, mas esquecemos de punir quem de todos expropria.

Theodor Luděk Novotný, “Řeky a jejich banky” (Os rios e suas margens), Ed Palmear, pag 135

Theodor Novotný é um escritor nascido em Praga, na República Tcheca em 1974, após a primavera de Praga e durante a dominação soviética. Toda a sua infância for marcada pela intromissão soviética no seu país e seus trabalhos iniciais – como “Flores para Vaklav” – se inseriam no retorno da autoestima do povo checo. A partir daí, e muito influenciado pela literatura de Milan Kundera, passou a se dedicar aos dramas psicológicos mais profundos, mas sempre com o pano de fundo das transformações produzidas pela Guerra Fria, pela queda do muro de Berlim e pela a implosão do “comunismo real”. Em “Os Rios e suas Margens” ele centra a ação em Zdenka, uma militante de esquerda acusada de conspirar contra os governos alinhados com o totalitarismo. Nos interrogatórios a que foi submetida ela encontra o prisioneiro Vladimir, um velho comunista ressentido que sofre pela desilusão e a derrocada de seus sonhos. Desse encontro surge uma amizade que perdura através de missivas, entregues pelos guardas de ambos os setores da prisão. No final, uma mistura de drama e comédia, ocorre o reencontro de ambos e brota uma mensagem de esperança surgida das cinzas de vidas esmagadas pela fidelidade aos ideais.

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Evolução das Consciências

Multidao

Eu ainda acho que a atenção adequada, feita por profissionais bem preparados, é o MELHOR CUIDADO possível para uma mulher que dá à luz. Entretanto, é importante perceber o quanto a “industrialização do parto”, e a visão fria e mecânica do evento, podem prejudicá-lo. A pergunta que fica é: por que não podemos ter o melhor de dois mundos? Por que insistimos num modelo tecnocrático e desrespeitoso, autoritário e cruel com as gestantes?

Bem, não existe resposta fácil para esta pergunta, mas também é ingênuo e injusto acreditar que esse é um problema dos médicos. Mesmo que entendamos que eles tem uma importância central no processo (porque detém e concentram poder) também é importante notar que médicos são representantes de um modelo construído por TODOS, numa geleia cultural onde a sociedade como um todo participa, acrescentando práticas que representam seus valores mais profundos.

Médicos também são reféns deste paradigma, vítimas da visão objetualizante que a cultura lança sobre as mulheres e suas gestações. Assim sendo, mais do que procurar culpados, é importante EDUCAR a população para que esta mude a cultura através de uma visão mais positiva sobre a mulher e o feminino. Depois disso, a mudança das práticas médicas ocorrerá por consequência. É exatamente o que estamos vendo agora: a evolução das consciências levando a uma transformação lenta – porém perceptível – nas práticas.

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