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O Surto

O Brasil se enche de medo diante do surgimento de mais um modismo americano importado pelas ações irresponsáveis do governo Bolsonaro: as chacinas em escolas. Recentemente houve uma na cidade de Blumenau – uma das regiões onde proliferam grupos nazistas – em que um sujeito matou várias crianças com golpes de machadinha. Imediatamente houve uma divisão entre aqueles que consideram a ação “maldade”, enquanto outros tratavam o fato como “surto”. Um surto psicótico pode ser entendido como um processo abrupto de desorganização psíquica e emocional, onde se observa principalmente a perda de noção da realidade, conjugado com um comportamento descompensado e psicótico (fora da realidade objetiva). Durante a emergência do surto psicótico a pessoa pode apresentar sinais como: confusão mental, delírios, alucinações, catatonia (paralisada, sem reação), discurso desorganizado ou incoerente, mudança de humor, perda da noção de tempo e outros.

É óbvio que, pela infinita variabilidade das respostas emocionais do ser humano, os surtos não são todos iguais, e não é justo nem adequado julgar o surto alheio. Se alguém dissesse “quando eu surto vou à luta, não fico chorando” todos concordaríamos que se trata de insensibilidade e falta de empatia com a maneira como reagimos aos nossos dramas. Portanto, dizer que existem “surtos aceitáveis” enquanto outros não o são é desprezar o próprio conceito de surto, qual seja, a emergência de conteúdos psíquicos incontroláveis pelos nossos processos internos de proteção e controle.

Eu não sei o que moveu o rapaz que cometeu a barbárie de Blumenau mas acredito que este tipo de ação dificilmente poderia ser explicada pela neurose. Desta forma, acredito que é lícito chamar esta ação de surto, até porque ela não cabe na nossa compreensão; ela atinge de forma brutal a concepção mais básica de respeito à vida. Em verdade, estes atos brutais que nos agridem de forma coletiva, são produzidos por mentes deformadas e enfermas, sem o que não haveria possibilidade de enfrentar os freios mentais que nos constituem e impedem a “passagem ao ato“. Entretanto, para que este tipo de manifestação possa aflorar na sociedade é também necessário que exista um ambiente cultural propício, produzido por um campo simbólico onde estas palavras circulem sem a devida interdição.

Aqui é que entra o Bolsonarismo com seu culto à morte e à destruição. Sem a “arminha”, as palavras de ordem, os slogans fascistas, o punitivismo, a divisão moral da sociedade – vagabundos x cidadãos de bem – as motociatas mussolinistas, a pulsão de morte pulsante e vigorosa, as bravatas e a corrupção pequena, gatuna e sorrateira, não haveria o caldo adequado para o aparecimento destas aberrações. O mesmo elemento se vê no acréscimo da violência doméstica machista ou nos crimes políticos, onde os agressores são quase todos aliados da extrema direita fascista. Agente e terreno propício produzem os resultados que testemunhamos, na construção dialética complexa que nos caracteriza.

Portanto, se é verdadeiro que a alma deteriorada do sujeito é a semente que faz germinar a brutalidade de suas ações, também é certo que o terreno fértil de uma sociedade doente pelo fascismo é fundamental para que a erva daninha dos crimes absurdos e inaceitáveis possa crescer e se espalhar. De nada adianta eliminar estas sementes sem cuidar do terreno; além disso, arrancar o inço não resolve o problema, já que a sociedade desequilibrada e perversa os produz de forma incessante. A perspectiva punitivista serve apenas para fomentar a sensação de vingança, mas em nada modifica a estrutura social viciosa que estimula e promove o crime.

Resumindo, para deixar bem clara a minha posição: a frase “não chamem de surto o que é pura maldade” está no mesmo nível de “não chame de doente quem é bêbado, nele existe apenas falta de caráter”. O preconceito com a doença mental continua vivo e forte, manifesto no discurso cotidiano, tanto o popular quanto aquele mais rebuscado. Todavia, também é verdade que a expressão dessas condições na cultura ocorre na vigência de contextos sociais que os incentivam ou reprimem. Se é adequado tratar o sujeito enfermo é igualmente justo e necessário cuidar da sociedade doente.

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Homo adaptabilis

Pode ser uma imagem de 1 pessoa e texto que diz "Segundo Séneca, nós sofremos mais na imaginação do que na realidade. FATOS"

Meu pai dizia que o que mais o assombrava na humanidade era sua capacidade de adaptação. Ele era um racionalista, um humanista que nutria uma enorme fé no ser humano, sua criatividade, sua incrível maleabilidade e – em especial – sua adaptabilidade. Ele me contou que, quando trabalhava nas centrais elétricas do Rio Grande do Sul – a CEEE – conheceu um engenheiro elétrico, imigrante húngaro, que chegou ao Brasil fugindo dos horrores da segunda guerra mundial. Meu pai o descrevia como um homem fechado, bruto, profundamente anticomunista, marcado por tristezas profundas, ressentimentos e dores da alma. Hoje seria, por certo, um bolsonarista ressentido, se ainda fosse vivo.

Todavia, apesar de se sentir muito distante de sua visão política, meu pai tinha por este sujeito uma profunda admiração, em especial por sua impressionante resiliência. Certa feita, durante um momento de maior descontração, o engenheiro sisudo e calado lhe contou alguns detalhes da sua dramática história na Europa, o que levou meu pai quase às lágrimas. Durante a 2a grande guerra ele havia perdido a mulher e os filhos pequenos, vítimas dos bombardeios alemães em sua cidade. Se isso não fosse o suficiente, viu sua casa ser destruída, e com ela tudo o que possuía. Não lhe sobrou nada, nem recursos ou afetos. A guerra lhe roubou tudo o que havia construído.

Na miséria e sem futuro, colocou seu diploma de engenharia elétrica numa pequena mala junto com as poucas peças de roupa que conseguiu salvar e entrou em um navio que o levasse a para longe. Seu destino era “outro lugar”, qualquer um que fosse distante o suficiente de suas tragédias e do vazio que lhe restou como lembrança.

Sim, Deus é um cara gozador e adora brincadeiras, e na barriga da miséria ele virou brasileiro. Chegou ao sul do Brasil ainda com juventude no corpo, e teve tempo de reconstruir sua história, sua profissão e sua vida. Casou de novo e teve filhos – que hoje devem ser velhos como eu a contar para os netos as histórias tristes do avô na guerra absurda e fratricida da qual participou.

Lembro dessa história sempre que penso nas pequenas e grandes tragédias que se abatem sobre mim – ou sobre todos nós. Creio que, se o velho húngaro foi capaz de refazer sua história movido apenas pela ânsia de viver, agarrado à pulsão de vida como tábua de sobrevivência, por que haveríamos de desistir diante de dores tão menores? Talvez, se lhe fosse perguntado na juventude se suportaria todas estas perdas, diria que “não”, que não haveria como superar a perda da mulher, dos filhos, de suas coisas e até do seu país. Ele, como muitos de nós, não acreditaria em sua capacidade de se reconstruir a partir dos escombros a que foi reduzido. Pois, a despeito de sua própria descrença, foi lá e teimosamente sobreviveu. Mais do que isso; ainda teve a ousadia de ser – ao seu jeito – pleno e feliz.

Meu pai sempre falava deste homem quando desejava apaziguar as dores lancinantes que a vida muitas vezes nos obriga a sofrer. E depois, com um sorriso afável, sempre dizia: “Por pior que pareça, vai passar”.

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