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O Desprezo pelo Povo

Quando me submeti à entrevista para residência médica, há 35 anos passados, havia na sala de reuniões médicos contratados, professores e, representando os discentes, uma residente R3. Esta médica sempre foi para mim o paradigma das residentes do hospital: branca, loira, rica, de família de médicos, altiva, “chique” e uma típica representante da burguesia local. Estava terminando seu tempo no serviço e já tinha seu consultório montado na zona mais rica da cidade. Eu sempre achei bizarro graduar médicos pela Universidade pública que, logo após formados, nunca mais atendiam a população carente. Estes profissionais centram seu trabalho nas classes mais abastadas, deixando os proletários nas mãos do serviço público, cada vez mais escasso em recursos. Sempre acreditei que deveria haver um sistema de reciprocidade obrigatório, que determinasse aos formados em universidades públicas o trabalho compulsório para a comunidade. Como um “serviço médico obrigatório”, a exemplo do serviço militar. Nunca vi nenhum projeto nesse sentido.

Minha entrevista foi protocolar e sem qualquer sobressalto. Perguntas óbvias e manjadas (o que faria se uma paciente solicitasse um aborto?) ou “pega ratões” tolos (estetoscópio ou esfigmo?) além de perguntas sobre banalidades obstétricas. Lembro apenas que me perguntaram se eu seria “ginecologista ou obstetra” e qual meu hobbie (respondi que era “cinéfilo”). A entrevista estava terminando quando a colega residente perguntou algo sobre a assistência no serviço público. Não lembro exatamente o que era, e minha resposta hoje seria considerada banal. Ora, eu estava entrando no serviço público, em um hospital público e para atender pacientes do INAMPS – precursor do SUS. Como poderia falar mal de um hospital que me receberia de braços abertos e dos pacientes cujos corpos seriam a mim oferecidos para aprendizado?

Sim, eu sei, fui enfático em demasia nessa defesa. Expus com entusiasmo a honra de atender o povo, pois foi o povo que pagou meus professores, minha universidade, minha formação inteira e eu deveria, de alguma forma, devolver tamanho investimento na atenção aos que tanto se sacrificaram para a minha educação. Não só na Universidade, mas desde muito cedo, quando entrei na escola pública aos 6 anos de idade. Logo percebi que a minha colega se incomodou com a resposta. Talvez porque ela mostrava o contraponto à postura que ela estava prestes a tomar: esquecer o povo mais pobre e se voltar às elites e à classe média alta. Olhou para mim e respondeu no limite da rispidez:

– Quem sabe então você deveria ser assistente social.

Fiquei em silêncio, pois sabia que não havia espaço para a resposta que gostaria de dar. Todos nós candidatos estávamos nas mãos daqueles julgadores e suas avaliações subjetivas. Há poucos anos havia escutado – pela voz do próprio professor – que ele havia dado “zero” para um candidato à residência de clínica médica por ser “demasiadamente efeminado”. Eu não queria ser mais uma vítima da crueldade de um julgador preconceituoso. A entrevista se encerrou e alguns dias depois veio o resultado. Fui aprovado em 5o lugar, e três semanas depois fazia meu primeiro plantão como residente de GO naquele mesmo hospital. Mas nunca esqueci o desprezo daquela colega – a quem nunca mais vi – pelo simples fato de que reconheci uma dívida que nós, estudantes das escolas públicas, tínhamos para com o povo – povo este cujo esforço conjunto foi o suporte essencial para a nossa formação.

Quando vejo os velhos representantes da corporação se manifestando de forma tão cruel sobre a população mais necessitada – e contra o SUS – eu penso que eles são egressos dessa geração, onde o trabalho assalariado no serviço público era visto como fracasso. Mas ainda acho que para mudar a prática da Medicina é preciso revolucionar o ingresso nas Escolas Médicas. Para saber mais sobre o tema, veja esta outra crônica escrita há alguns anos aqui

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Cotas

Agora a ideia dos liberais é privatizar o ensino com a tese de que assim ele seria mais “democrático”. Não tem como apoiar isso. Chile e a Alemanha acabaram com a universidade paga por perceberem o mal que o capitalismo fez à educação.

Por que haveríamos nós de retroceder?

Quanto ao dilema com os filhos brancos – pobres “prejudicados” pelas cotas – isso não passa de pura fantasia. Esses meninos e meninas da classe média recebem educação diferenciada – se comparada aos pobres – e vão competir em desigualdade de condições com pretos e pobres do Brasil que – fossem dadas condições iguais – teriam a mesma possibilidade de ingressar na universidade.

As cotas são para isso. São para estancar essa hemorragia racista e classista. São para evitar esse embranquecimento nojento da magistratura, do MP, da engenharia e da medicina e tantos outros cursos. Diga aí o nome de um juiz preto, um professor seu ou um médico afrodescendente. Diga o nome de um engenheiro negro. Os filhos brancos desse país são criados no privilégio que esta sociedade determina (tanto quanto eu e os meus filhos). Esse privilégio injusto e imoral é o foco das cotas e elas precisam existir enquanto ele persistir.

Quer uma equação mais justa para o seu dilema entre matricular na escola pública (para ter “vantagem”) ou na particular (e ser “prejudicado” pelas cotas)?

Tenho uma proposta: saia de casa, desapareça, pare de pagar pensão, mas antes disso bata neles com vontade para que a sua imagem paterna vire poeira. Não mande dinheiro algum para comprarem roupas, comida, cadernos e livros escolares. Coloque-os para morar num barraco com zinco furado. Mande-nos para a escola com fome e depois diga pro PSDB roubar a merenda. Faça tudo isso por vários anos escolares… e depois inscreva-os para o vestibular em “igualdade de condições” com os branquinhos classe média  Iphone-Disney que nunca pegaram ônibus na vida.

Se os seus filhos se classificarem depois desse “teste de sobrevivência na selva” poderemos falar em meritocracia.

Ser contra as cotas é viver tão dentro da bolha de privilégios que o próprio mundo de verdade desaparece diante dessa fantasia.

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