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Scribo

Escrever significa marcar com um cinzel, “traçar uma linha, marcar, assinalar, gravar, marcar com cunho”. Toda escrita fere, marca, risca, separa. Escrever significa deixar no mundo um pedaço de si, um sinal de sua passagem. Por outro lado, também faz todo o sentido olhar para a escrita como um abraço que se abre em direção ao outro. Para quem escreve, usando as letras como um lenitivo manuscrito de suas dores, a leitura por outra alma solidária e atenta é um acréscimo, mas igualmente um bálsamo que alivia o sofrimento de quem grita em solidão.

Entretanto, a escrita é uma forma de expressão que suplanta a necessidade de ser lido. Mais do que uma forma de comunicação, ela é um modo de expressão, distinto da voz, do cinema, da música ou do teatro. Escrever extrai do sujeito o sumo mais refinado de seus lamentos, aquilo que oferece sentido e direção à sua luta. Desta forma, os cadernos de poesia da velha senhora, os diários da adolescente, os contos eróticos do senhor ranzinza são válvulas de escape para sua verdadeira essência. Não são peças para simples leitura, mas para o autoconhecimento. Não importa que tenham sido por tantos anos escondidos no fundo de uma gaveta, infensos ao olhar de qualquer curioso; eles ainda representam o que de mais verdadeiro sempre habitou os escrevinhadores.

A partir de um vídeo da atriz Denise Fraga e uma conversa com Giane Flora

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Menas patrulha…

Existe algo recorrente na Internet, desde que a escrita se popularizou nas mídias sociais, que é a crítica – mordaz e preconceituosa – com os erros cometidos por quem se expressa em português. Hoje mesmo uma senhora perguntava “Por que está geração tem tanta dificuldade de se expressar em português?” criticando as falhas gramaticais das mensagens recebidas em um debate.

Bem, em verdade eu creio que as pessoas não tem dificuldade para se expressar em língua portuguesa, tanto é que não é difícil – via de regra – entender o que está escrito. O que as pessoas não conseguem – ou não desejam – é se expressar através daquilo que denominamos “norma culta”, o português “clássico”, que adota a rigidez das construções gramaticais e ortográficas e obedece as suas regras de concordância verbal e nominal. A questão é que, escrever de forma “não culta” não é “errado”, pois este é um conceito equivocado quando tratamos de organismos vivos e mutantes – como as línguas. Veja, não seria justo dizer que “uma cobra é um animal errado por não ter pernas”, porque apesar de não ter pernas as cobras são adaptadas perfeitamente ao seu meio ambiente. E essa adaptação é o que conta…

Desta forma, ao falar ou escrever não existe “erro”, mas pode existir “inadequação”, pois este conceito tem a ver com os contextos e as circunstâncias. Como exemplo, não cabe escrever em uma dissertação de mestrado “quando tu vim aqui“, mas é aceitável falar assim em uma conversa de boteco. O sentido da língua é a conexão entre os sujeitos, que precisa de um mensageiro (quem fala), um receptor (quem ouve ou lê) e um meio comum a ambos (o idioma). Se estas etapas são respeitadas a vinculação à norma culta é secundária, e por vezes desnecessária.

A questão é que esta adesão à linguagem mais sofisticada produz a exposição da divisão de classes. Se você falar “a gente fomos na praia” fica evidente que sua classe social é mais baixa e é exatamente isso que produz rejeição, e não o bom ou mau uso da língua. O modo como falamos funciona como os dentes incisivos: se você não os têm demonstra onde se situa na hierarquia das castas sociais; se você não fala como a burguesia expõe a todos que não se insere nela, e está relacionado(a) ao proletariado.

Na internet esta correção ostensiva da forma de escrever é reservada aos “grammar nazis”. Se querem um conselho, não se juntem a eles. Não é um lugar legal.

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Escrita

Tenho plena consciência da mediocridade da minha escrita. Não vejo nela nenhuma qualidade ou virtude. Quando leio crônicas, textos ou excertos de obras famosas sempre tenho a impressão que, se o que faço se diz escrita, deveria haver um nome diferente para o que leio. Existe um abismo entre intenção e ato… eppur, scribo.

Comecei a escrever há uns 30 anos. Escrevi um texto cômico chamado “O Círculo do Gelo”, que na época me parecia hilário, mas que hoje seria apenas constrangedor. Depois escrevi, a pedido de uma jornalista, um texto chamado “Pelo direito de nascer direito” que foi publicado em um jornal local, no dia de Natal de 1994. Alguns anos depois surgiram a internet, as listas de discussão e a minha compulsão por escrever tomou corpo e desabrochou.

“Onde falta qualidade que sobre a vontade”, pensava eu. Mas eu nunca escrevi pensando em escrever bem, e sempre achei que fazer isso seria um caminho fácil para o desastre. Como o amor, ele só está “onde não está”. Quem encontra alguém com o objetivo de amar, nada encontrará. O amor é sempre um subproduto; a boa escrita só pode ser o subproduto de escrever muito.

Eu me relaciono com a escrita de forma diferente: escrevo para registrar. Penso numa história e sei que preciso contá-la. Expurgo as ideias porque sei que tenho pouco tempo de vida e não quero levar estas lembranças para o túmulo.

Antes de morrer meu pai disse que gostava de ler o que eu e meu irmão escrevíamos. “Menos política”, dizia ele, que quase nada deixou escrito em vida. Talvez ele visse nos meus escritos algo que nem eu via.

Para mim, escrever é uma necessidade. Hoje, enquanto fazia minha caminhada diária na Comuna, percebi que muitas vezes penso escrevendo. Isto é: meus pensamentos são ordenados no formato de uma escrita, como se eles apenas temporariamente pudessem ficar restritos à minha mente. Terminada a caminhada eu os transbordo para a tela e o mundo.

Se pudesse voltar atrás começaria a escrever desde a infância. Registrar o mundo é uma tarefa edificante e um exercício fabuloso.

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Fumacinhas

Meu pai era o mestre das palavras, um grande conversador e contador de histórias. Todavia, tinha preguiça de escrever. Para ele a escrita era um exercício muito difícil; enfadonho e até torturante. Culpou sempre seu perfeccionismo virginiano por sua aversão em colocar sua visão de mundo em livros.

Como Cristo e Sócrates, o que sabemos dele – e de suas ideias – vem através dos contatos diretos. Conversas, encontros, bate-papos, palestras e pequenas intervenções. Apesar disso, suas posições e ideias ficaram conhecidas em diversas partes do país e até fora dele. Tinha um tal magnetismo ao falar que todos lembram até dos pequenos detalhes dessas conversas.

Eu sou o oposto disso. Por saber que não tenho a doçura, a simpatia e o encanto do meu pai, eu escrevo tudo. Acordo de madrugada e escrevo o sonho que tive. Lembro de um fato engraçado que aconteceu há muitos anos no consultório e coloco tudo no papel. Se recordo de um acontecimento – no qual percebo um significado escondido que só agora me ocorreu – tenho de cair imediatamente de cabeça no texto.

Escrevo em todos os lugares. Filas de supermercado, no banheiro, olhando futebol na TV, na cama, na hora do almoço. Qualquer hora. E não tem nada a ver com qualidade, só o desejo compulsivo de transformar fatos e ideias em texto…

Tenho medo de esquecer uma história. Como elas só existem pela minha perspectiva, vivem solitárias em minha mente. Escrever sobre elas é libertá-las, deixar que ganhem vida. Meu pânico é ver a morte que se aproxima e pensar que algumas histórias morrerão comigo. Como um velho que vem a falecer sem revelar onde escondeu o dinheiro que guardou…

No final da vida, como é comum aos velhos, meu pai contava, como se fossem novas, histórias bem antigas e que eu já ouvira dezenas de vezes. Eu dava risadas e me mostrava interessado, como se fosse a primeira vez a escutá-las. Sei que eu também, em pouco tempo, me surpreenderei escrevendo de novo sobre fatos que já coloquei no papel, mas será apenas por medo de que algo se perca.

Desenvolvi essa compulsão há 20 anos, mas hoje fico pensando que deveria ter começado aos 7 anos de idade. Triste saber que, por certo, nesse tempo todo muitas histórias enjauladas na minha mente já definharam e jamais puderam ver a luz do dia, o que é lamentável.

Pelo menos esta aqui coloquei para fora antes que virasse fumacinha.

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Sobre o escrever

“Meu pai dizia: leia qualquer coisa, tudo que puder e sem preconceitos; até rótulo de shampoo. Sempre será um exercício com as palavras e como elas se encaixam nas linhas, nas frases e nos conceitos. Eu digo hoje: escreva qualquer coisa e divirta-se com o “lego das letras”. Dê voz à sua angústia; não é o mesmo que falar dela, mas permitir que ela fale por si. Escreva sempre, transforme sua fala em um discurso escrito e verá um novo tipo de expressão brotar com os signos que se formam à sua frente. É como ter um sonho na lembrança e trazê-lo à superfície da palavra: ao contá-lo ele se transmuta, ganha um novo corpo e passa a adquirir significados que não possuía quando ainda dormitava na matéria bruta do pensamento.”

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