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Aborto

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Li a extensa resposta de um rapaz dizendo-se contrário à descriminalização do aborto usando os argumentos que escuto desde a minha juventude, tempo em que até eu militava contra a descriminalização. Entretanto, essa parte do discurso do rapaz me pareceu interessante:

“Eu defendo que o Estado não deve interferir nas liberdades individuais, mas…”

A gente sabe o que vem depois de um “mas” (sou contra o racismo, mas… sou contra o machismo, mas… sou contra homofobia, mas…). No entanto, é tempo de, finalmente, deixar as escolhas da esfera sexual para serem tomadas exclusivamente pelas mulheres. Cada uma que decida sobre seu corpo. Não vamos nos meter mais. Chega. Estamos de acordo no foco central – a não ingerência do estado no corpo da mulher – vamos, então, celebrar essa inédita concordância sobre direitos humanos reprodutivos e sexuais.

Chega de fazer do corpo da mulher um campo de disputas falocráticas. Se o aborto for condenado por algum Deus no juízo final que ELAS se responsabilizem pela condenação ou pelo perdão que receberão d’Ele.

É hora de tirarmos a mão dos ventres alheios.

Por outro lado, não é curioso que dos mesmos grupos que defendem embriões com unhas e dentes surja a expressão “bandido bom é bandido morto”? Pois o fundamentalismo é o traço que une estes posicionamentos. É uma postura que conecta Bolsonaro, Feliciano, Malafaia e outros. E não é coincidência; o fundamentalismo produz este tipo de associação pois é de sua natureza essencializar o mal tirando-lhe o contexto e dominar o corpo das mulheres, tornando-o objeto.

Sair de cima do muro significa pular para um dos lados, e nenhum deles é limpinho. É uma decisão horrível. Minha posição é de que, por questões morais e por crenças pessoais – distantes demais da racionalidade para serem julgadas pela razão – EU jamais faria um aborto ou estimularia um. Mas isso é uma decisão subjetiva, sobre minha prática médica de 34 anos ou sobre as pessoas a quem se poderia porventura influenciar (mulher, namorada, amante, filha, nora, etc). De resto, já que preciso me “sujar” de alguma forma, prefiro sacrificar embriões do que mulheres já feitas, e prefiro apostar que o gozo da autonomia plena terá como consequência uma postura, por parte das mulheres (mas também dos homens), crescentemente responsável sobre seus corpos e sua sexualidade.

Se isso serve de ajuda para quem pensa sobre o tema do aborto ainda lembro como se fosse ontem do discurso inflamado que fiz durante a faculdade de Medicina para companheiros do Projeto Rondon (lembram dele?) contra qualquer lei que liberasse a prática do aborto. Recordo vividamente de todos os argumentos que usei, utilizados com paixão e fervor, para proteger fetos de “mãos assassinas”. Ainda estão claros em meus tímpanos os vazios, a surdez e a incapacidade de reconhecer ou… aceitar os argumentos contrários, em especial os que falavam do sacrifício de vidas maternas. Afinal, para mim elas “apenas pagavam pelo seu egoísmo”.

Foi necessário envelhecer, tornar-me pai, estudar os índices de morte materna e conhecer a vida de verdade que cada uma dessas mulheres tinha antes de enfrentar essa decisão. Só assim pude abrir o coração e mudar para o outro lado. Essa mudança não foi abrupta; foi lenta, gradual, ponderada e serena.

Todavia, enganam-se todos aqueles que pensam que ficar deste lado do muro significa desreconhecer as implicações emocionais e psicológicos desta escolha. Ela continua sendo terrível e dolorosa, mas ainda não vi nenhuma saída mais justa e decente do que oferecer o pleno protagonismo dessas decisões para as próprias mulheres.

Se eu estiver errado em tomar partido dessa forma que seja julgado adequadamente, mas ainda exijo que – por coerência – meus erros sejam apenas meus.

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Arquivado em Ativismo, Histórias Pessoais, Medicina

Corpo Fechado

terra seca

Sou a favor do pleno protagonismo – em especial das mulheres – e isso inclui aceitar escolhas que me parecem tolas ou inadequadas, mesmo sabendo que minha ideia pessoal sobre essas determinações de nada interessa a quem se responsabiliza por elas. Sem essa possibilidade de decidir nunca haverá liberdade plena. Por outro lado, e com as mesmas justificativas, reconheço para os médicos a “objeção de consciência“. Uma mulher pode se esterilizar aos 25 anos, mas não pode obrigar um profissional a produzir um dano físico em seu corpo. Isso significa que o pleno protagonismo feminino não implica no completo desempoderamento do profissional.

Mas nem sempre vemos os profissionais de saúde respeitando as decisões soberanas das mulheres sobre seus corpos. Em verdade, o que norteia a postura dos profissionais da assistência é a bússola do patriarcado. Sua visão a respeito delas é sempre colocada sobre o pano de fundo da defectividade essencial e do corpo servil que possuem. Nunca uma mulher pode tomar decisões sobre si mesma sem que estas sejam controladas pelo ordenamento falocrático. Mas, tão entranhada está tal configuração nas relações sociais que sequer é percebida pelos médicos, que escamoteiam seu machismo com um discurso cientificista ou higienista. “Acredite em nós, é pelo seu próprio bem“.

Para ser franco, eu defendo até cesarianas banalizadas. Não acredito que vamos oferecer maturidade tratando eternamente as mulheres como crianças. Escolham a cesariana e depois percebam o erro que cometeram; proibi-las de fazer más escolhas não as tornará maduras ou adultas.

Quanto ao consentimento do parceiro isso me parece uma “excrescência cultural que apenas permanece pela inércia dos preconceitos”, a qual precisa ser abolida. O desejo reprodutivo precisa ser investigado antes da formação da parceria. Se a mulher (ou o homem) não deseja filhos, não case com ela (ele). Não faz sentido um homem (ou mulher) deliberar sobre ou corpo de sua (seu) parceira(o).

Concluindo, uma mulher que deseja exterminar sua capacidade reprodutiva precisa ter garantido esse direito, por mais que isso nos cause dor. Se a um homem é permitido emascular-se para se tornar mulher, por que seriam as mulheres impedidas de tornarem-se estéreis, para dar conta de seus desejos e limites subjetivos?

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