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Partos, fases e luas

Em meados dos anos 80, um pouco antes da minha formatura e o início da residência em ginecologia e obstetrícia, decidi fazer uma análise da relação entre as fases da lua com dois fenômenos conhecidos: o inicio do trabalho de parto e o parto propriamente dito. Meu objetivo era bem simples: esclarecer a influência das fases da lua com o nascimento humano, já que popularmente esta relação era feita, mas sem uma metodologia adequada para sua avaliação. Era muito comum encontrar, inclusive entre os médicos, comentários ao estilo: “plantão passado foi terrivel, mas é compreensivel: era lua cheia”. Entretanto, eu sempre achei que este era um viés de observação. Ou seja: por ter sido um dia com excesso de atendimentos o observador se preocupava em saber a fase da lua; fosse um dia sem partos ele sequer se importaria com isso.

Diante disso, resolvi tabelar todos os nascimentos e as internações em trabalho de parto de 1⁰ de janeiro a 31 de dezembro de um ano especifico do hospital escola onde eu havia estudado e estava prestes a cursar a residência. Fui aos arquivos do hospital e dividi essas ocorrências entre as fases da lua para ver se alguma correlação poderia ser encontrada entre estes dois fenômenos: a posição do nosso satélite em relação sol e a emergência dos sinais que iniciam a expulsão fetal. Feito isso, era necessário tabular e usar fórmulas matemáticas de bioestatística para encontrar – ou não – uma relação de causalidade.

Nesse interim eu me formei e comecei a fazer plantões no centro obstétrico do hospital. Num desses plantões eu recebi na emergência uma paciente com queixa de contrações. Era mais de meia-noite e o plantão estava bem calmo. A gestante chegou acompanhada do marido e ambos pareciam muito ansiosos. Mostrou seu cartão do pré-natal e os exames protocolares. Primeiro filho, 39 semanas de gestação, pressão ok, batimentos fetais idem. Sem intercorrências na gestação. Fiquei avaliando os exames com uma demora proposital, esperando testemunhar uma contração. Nos 15 minutos em que ficou na sala, ao lado do companheiro, nenhuma contração foi relatada. Pedi que a atendente a ajeitasse na mesa de exames, e só quando se ergueu da cadeira relatou que estava sentindo uma cólica no útero, que foi rápida e sem muita intensidade. Ao fazer o exame vi que ela tinha não mais do que 2 centímetros de dilatação, contrações frágeis e somente duas cada 10 minutos. No jargão obstétrico, “pródromos” (pró – dromo, precursor, aquele que corre na frente). Recomendei que voltassem mais tarde. Diante da minha indicação o marido me encarou de forma preocupada dizendo:

– Doutor, não há condições. Já é madrugada e moramos na Restinga (bairro afastado da cidade). Não temos dinheiro para pagar um taxi de novo. Para nós é muito caro; somos pobres e esse gasto seria impossível. Como o senhor mesmo disse, ela pode iniciar as dores fortes dentro de 1 ou 2 horas, talvez até antes. Ou depois, mas como saber? Não tem como ela ficar aqui aguardando?

Senti a angústia do casal e entendi a preocupação. Resolvi conversar com o contratado de plantão, o qual aceitou a ideia de deixá-los no hospital esperando as contrações, já que o centro obstétrico estava vazio e, para eles, um retorno mais tarde seria por demais dispendioso. Era o que chamávamos de “baixa social”, uma internação determinada por fatores não médicos, mas relevantes. Essa é uma prática muito comum, que existe em qualquer lugar até hoje. O casal agradeceu, ficaram a noite toda dormindo, as contrações desaparceram e apenas voltaram ao amanhecer. Passei o caso para o novo plantonista que estava assumindo o plantão e este resolveu induzir, usando soro com oxitocina. Sim, precisavam fazer aquele bebê nascer, “já que a paciente havia ficado a noite inteira sem desenvolver um franco trabalho de parto e ocupando um leito que poderia ser necessário mais tarde”. Foi instaurada a indução e eu fui para casa.

Ao sair do plantão ainda estava escuro e percebi que aquela noite havia sido de lua cheia, mas o plantão tinha sido monótono e com poucos casos. Cheguei em casa, peguei todas as minhas anotações sobre partos e fases da lua e guardei em uma pasta, onde então até hoje. Nunca mais me interessei por este estudo. Aquele caso corriqueiro me havia feito perceber que, no mundo ocidental e nas sociedades complexas, é impossível observar a relação dos fenômenos da natureza com as gestantes e o parto. As influências externas são tantas e tão mais intensas que seria impossível depurar os casos de suas interferências de ordem social. A paciente daquela noite internou sem necessidade médica real e recebeu um soro pela manhã igualmente sem ser preciso, apenas porque seu parto tinha que se enquadrar na ideologia obstétrica de nossa época e na grade dos tempos de seus assistentes. Nada naquele nascimento foi natural; inobstante a fase da lua, e se ela poderia ter alguma influência no parto, tudo foi atropelado por fatores sociais e por crenças médicas, impedindo que qualquer correlação pudesse ser observada.

Lacan deixou claro que a “palavra matou o real”. Não existem mais “partos naturais”, pois que estes ficaram perdidos num passado muito remoto, sobrevivendo apenas enquanto fantasia ou utopia. O parto, inserido na linguagem, é o que nossas mentes fazem dele; é um evento da cultura que ocorre no corpo das mulheres, carregando consigo o reflexo dos nossos valores e das nossas crenças. Envolto nesse contexto simbólico ele não pode ser mais avaliado pela suas características primitivas, fisiológicas e “naturais”. A mulher que poderia parir esse “bebê natural” já não existe mais; expulsos do paraíso, somos todos condenados a parir e nascer no contexto da palavra.

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As Fases da Lua

Certa feita estava em um evento social (isso soa quase como uma piada para um ermitão como eu) quando escutei uma voz conhecida me chamando alguns metros atrás de mim. Eu de imediato reconheci o timbre da voz, mas logo percebi que se tratava de alguém de um passado muito distante:

– Então Ric, as fases da lua realmente influenciam no parto?

Olhei para o lado e encontrei um colega de residência. Por alguns segundo fiquei tentando imaginar a razão de me fazer esta pergunta após algumas décadas sem nos vermos. Por que me perguntar da lua? Durante algumas frações de segundos eu busquei nos arquivos empoeirados da minha memória até conectar os pontos. A explicação para esta bizarra conexão me oportunizou refletir sobre padrões que utilizamos para valorar circunstâncias e personagens.

Durante a residência por diversas vezes eu fui confrontado com algumas informações a respeito do “gatilho do parto”, ou seja, quais os elementos internos e externos envolvidos na início do trabalho de parto. Hoje sabemos que o processo está relacionado à maturidade fetal, que é quem inicia este processo. Todavia, há mais de 3 décadas atrás, muito se discutia sobre fatores ambientais e circunstanciais – inclusive por aqueles que trabalhavam em maternidades – e era comum escutar que as fases da lua tinham um papel no desencadeamento de eventos que culminariam no nascimento de um bebê. Alguns colegas de outras especialidades me falavam que a lua, por sua gravidade, era capaz de mover extensas massas de água, no fenômeno conhecido como “marés”. Ora, se o ser humano é composto de 70% de água é natural imaginar que esta mesma água seria, de alguma forma, modulada pela força atrativa da lua. Lógico, não?

Essa pode ser até uma boa ideia, ou apenas mais uma fantasia colocada no catálogo interminável de crenças aplicadas sobre o evento do nascimento humano. Quando as pessoas me diziam sobre a experiência que tiveram com o plantão lotado em um dia de lua cheia eu perguntava se elas lembravam da luz cheia anterior, se também havia sido movimentado. A resposta era negativa, e eu argumentava que deveria se tratar apenas de “viés de confirmação” – a tendência de recordar, interpretar ou pesquisar por informações de maneira a confirmar crenças ou hipóteses iniciais – e não de uma correlação verdadeira entre eventos. Eu, particularmente, não acreditava nessa coincidência, mas também sabia que só poderia haver uma forma de comprovar seu acerto ou erro.

Sim, a aplicação de um método.

Desta forma resolvi analisar todos os partos do hospital escola ocorridos no ano anterior. Capturei as folhas da enfermagem do centro obstétrico e comecei a analisar os dados. O que primeiro me chamou a atenção foi o número enorme de internações fora do trabalho de parto, por indicações médicas variadas, além do uso de oxitocina, que poderia fazer um parto ocorrer antes do que estava programado para acontecer. Enquanto eu me ocupava com a elaboração de uma hipótese houve um encontro de residentes no hospital, e na oportunidade fui convidado a mostrar minha proposta de pesquisa. Afinal, muitos colegas ficaram vivamente entusiasmados em saber se, afinal, é verdade ou não esta suposta influência da lua sobre os nascimentos.

No dia da minha fala mostrei apenas alguns dados preliminares e expliquei que seria necessária uma depuração para que fosse possível ver a ação natural da lua sobre os eventos do parto. Porém, foi durante a breve apresentação que me dei conta da inutilidade da minha pesquisa solitária. Já naquela época eu estava me divorciando definitivamente da ideia do “parto natural”, um termo que desde então passei a combater. Não existe nada de “natural” no parto, se esta palavra for usada como contraposição às perspectivas culturais, portanto artificiais, e que não dizem respeito à pura ação biológica sobre o processo de expulsão fetal do claustro materno.

Para avaliar a influência da lua sobre os partos seria necessário realizar o isolamento das milhares de outras condicionantes socio-culturais-contextuais que agem sobre o parto, uma tarefa que eu percebi ser completamente impossível e inviável. Talvez há alguns séculos, em uma tribo de indígenas autóctones da Amazônia, seria possível retirar muitos destes condicionantes, mas nem assim seria o suficiente para retirar deles a linguagem – e como diria Lacan “a palavra matou o real”. O parto natural está restrito aos outros mamíferos, e mesmo para eles apenas quando estiverem em segurança, distantes do nosso olhar. A par deste meu desencanto, a influência da lua sobre partos acabou sendo desmentida por diversos estudos, e hoje resta pouca dúvida sobre a questão.

Eu me dei conta muito cedo que o real do corpo é inacessível para um universo simbólico, onde variáveis infinitas agem sobre o pensamento, e este sobre o corpo e suas funções. O desencadeamento de um parto pode até ocorrer pela lua mas é muito mais provável que hoje em dia seja mais condicionado pelo humor e pelas crenças do médico do que por qualquer alteração hormonal. Por esta razão a pesquisa logo se tornou absolutamente desinteressante, até porque a minha visão a partir de então estaria totalmente direcionada para as questões relacionadas ao protagonismo feminino no evento, o que consumiu praticamente toda a minha vida profissional. As influências da lua ficaram como uma curiosidade passageira da época do final da residência.

Entretanto, e aqui o ponto que eu achei interessante, a imagem do “jovem médico místico” preocupado com a influência das fases da lua ficou gravado na memória do meu colega, como se aquela imagem pudesse traduzir minha personalidade e os meus interesses. Nada poderia estar mais longe da verdade, como o resto da minha vida pode comprovar. Todavia, fiquei igualmente impactado ao me dar conta de que este tipo de comportamento é extremamente utilizado por todo mundo – inclusive por mim.

Comecei a lembrar de pessoas pelas quais tenho uma profunda antipatia por coisas feitas ou ditas em um passado distante e percebi que muitas vezes (quase todas) essa má impressão está ligada a pequenas coisas, posições que o sujeito teve no passado, e que podem estar completamente distantes de sua realidade atual. É possível que tenham abandonado por completo suas posturas, suas ideias, suas perspectivas de mundo e tenham se tornado bastante diferentes. Como a menina na praia de Copacabana que deu uma declaração preconceituosa e até racista para a extinta TV Manchete, mas que refez sua vida, estudou filosofia e hoje diz ter “horror de gente que pensa como ela pensava”.

Pessoas mudam, pessoas crescem, se modificam. Pessoas evoluem… o que era algo valioso no passado pode se tornar desinteressante em muito pouco tempo. Paixões se dissipam no ar sob a ação do sol, novos amores surgem, assim como novos interesses brotam da experiência cotidiana. É possível que, dentro de um tempo variável, todos sejamos compelidos a mudar o nosso foco, nossa visão da realidade, fazendo o interessante virar frugal, e o banal essencial.

Minha maior fantasia é ter um encontro com Jesus depois de morrer. Imagino encontrá-lo no plano espiritual, e, passado o susto por vê-lo, nossa conversa seria assim:

– Fala Nazareno!!! Feliz de te encontrar!! Meu, que honra…

– Obrigado, mas ninguém me chama mais de Nazareno há alguns séculos. Aqui acabei me dedicando a outras coisas, meu foco de atenção está em outros projetos. Nada contra aquela minha fase, que foi até bem legal. Fiz vários amigos e curti muito. Converso muito com os apóstolos ainda. Pedro, por exemplo, quando vem para cá sempre fica na minha casa, né Madalena?

Olho para o lado e Madalena concorda com um sorriso e um meneio de cabeça, enquanto passa um pano nos móveis da sala. Volto o olhar para o Messias e o vejo carregando com certa dificuldade uma sacola marrom.

– O que tem na sacola, Mestre? Precisa de ajuda?

– Ahh, tudo bem. Faz parte do treinamento. São meus halteres.

– Halteres?

– Sim, nos dois últimos séculos tenho me dedicado ao fisiculturismo. Percebi que este é um caminho muito mais interessante. Se eu estivesse bem fisicamente teria sido muito mais difícil para os romanos me pegarem. Essa é a minha paixão por ora…

Ok, uma fantasia, mas creio que manter-se com a fotografia estática de qualquer um – para o bem e para o mal – diminui a imensa adaptabilidade humana para encontrar novos caminhos, novas paixões e projetos.

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