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As Fases da Lua

Certa feita estava em um evento social (isso soa quase como uma piada para um ermitão como eu) quando escutei uma voz conhecida me chamando alguns metros atrás de mim. Eu de imediato reconheci o timbre da voz, mas logo percebi que se tratava de alguém de um passado muito distante:

– Então Ric, as fases da lua realmente influenciam no parto?

Olhei para o lado e encontrei um colega de residência. Por alguns segundo fiquei tentando imaginar a razão de me fazer esta pergunta após algumas décadas sem nos vermos. Por que me perguntar da lua? Durante algumas frações de segundos eu busquei nos arquivos empoeirados da minha memória até conectar os pontos. A explicação para esta bizarra conexão me oportunizou refletir sobre padrões que utilizamos para valorar circunstâncias e personagens.

Durante a residência por diversas vezes eu fui confrontado com algumas informações a respeito do “gatilho do parto”, ou seja, quais os elementos internos e externos envolvidos na início do trabalho de parto. Hoje sabemos que o processo está relacionado à maturidade fetal, que é quem inicia este processo. Todavia, há mais de 3 décadas atrás, muito se discutia sobre fatores ambientais e circunstanciais – inclusive por aqueles que trabalhavam em maternidades – e era comum escutar que as fases da lua tinham um papel no desencadeamento de eventos que culminariam no nascimento de um bebê. Alguns colegas de outras especialidades me falavam que a lua, por sua gravidade, era capaz de mover extensas massas de água, no fenômeno conhecido como “marés”. Ora, se o ser humano é composto de 70% de água é natural imaginar que esta mesma água seria, de alguma forma, modulada pela força atrativa da lua. Lógico, não?

Essa pode ser até uma boa ideia, ou apenas mais uma fantasia colocada no catálogo interminável de crenças aplicadas sobre o evento do nascimento humano. Quando as pessoas me diziam sobre a experiência que tiveram com o plantão lotado em um dia de lua cheia eu perguntava se elas lembravam da luz cheia anterior, se também havia sido movimentado. A resposta era negativa, e eu argumentava que deveria se tratar apenas de “viés de confirmação” – a tendência de recordar, interpretar ou pesquisar por informações de maneira a confirmar crenças ou hipóteses iniciais – e não de uma correlação verdadeira entre eventos. Eu, particularmente, não acreditava nessa coincidência, mas também sabia que só poderia haver uma forma de comprovar seu acerto ou erro.

Sim, a aplicação de um método.

Desta forma resolvi analisar todos os partos do hospital escola ocorridos no ano anterior. Capturei as folhas da enfermagem do centro obstétrico e comecei a analisar os dados. O que primeiro me chamou a atenção foi o número enorme de internações fora do trabalho de parto, por indicações médicas variadas, além do uso de oxitocina, que poderia fazer um parto ocorrer antes do que estava programado para acontecer. Enquanto eu me ocupava com a elaboração de uma hipótese houve um encontro de residentes no hospital, e na oportunidade fui convidado a mostrar minha proposta de pesquisa. Afinal, muitos colegas ficaram vivamente entusiasmados em saber se, afinal, é verdade ou não esta suposta influência da lua sobre os nascimentos.

No dia da minha fala mostrei apenas alguns dados preliminares e expliquei que seria necessária uma depuração para que fosse possível ver a ação natural da lua sobre os eventos do parto. Porém, foi durante a breve apresentação que me dei conta da inutilidade da minha pesquisa solitária. Já naquela época eu estava me divorciando definitivamente da ideia do “parto natural”, um termo que desde então passei a combater. Não existe nada de “natural” no parto, se esta palavra for usada como contraposição às perspectivas culturais, portanto artificiais, e que não dizem respeito à pura ação biológica sobre o processo de expulsão fetal do claustro materno.

Para avaliar a influência da lua sobre os partos seria necessário realizar o isolamento das milhares de outras condicionantes socio-culturais-contextuais que agem sobre o parto, uma tarefa que eu percebi ser completamente impossível e inviável. Talvez há alguns séculos, em uma tribo de indígenas autóctones da Amazônia, seria possível retirar muitos destes condicionantes, mas nem assim seria o suficiente para retirar deles a linguagem – e como diria Lacan “a palavra matou o real”. O parto natural está restrito aos outros mamíferos, e mesmo para eles apenas quando estiverem em segurança, distantes do nosso olhar. A par deste meu desencanto, a influência da lua sobre partos acabou sendo desmentida por diversos estudos, e hoje resta pouca dúvida sobre a questão.

Eu me dei conta muito cedo que o real do corpo é inacessível para um universo simbólico, onde variáveis infinitas agem sobre o pensamento, e este sobre o corpo e suas funções. O desencadeamento de um parto pode até ocorrer pela lua mas é muito mais provável que hoje em dia seja mais condicionado pelo humor e pelas crenças do médico do que por qualquer alteração hormonal. Por esta razão a pesquisa logo se tornou absolutamente desinteressante, até porque a minha visão a partir de então estaria totalmente direcionada para as questões relacionadas ao protagonismo feminino no evento, o que consumiu praticamente toda a minha vida profissional. As influências da lua ficaram como uma curiosidade passageira da época do final da residência.

Entretanto, e aqui o ponto que eu achei interessante, a imagem do “jovem médico místico” preocupado com a influência das fases da lua ficou gravado na memória do meu colega, como se aquela imagem pudesse traduzir minha personalidade e os meus interesses. Nada poderia estar mais longe da verdade, como o resto da minha vida pode comprovar. Todavia, fiquei igualmente impactado ao me dar conta de que este tipo de comportamento é extremamente utilizado por todo mundo – inclusive por mim.

Comecei a lembrar de pessoas pelas quais tenho uma profunda antipatia por coisas feitas ou ditas em um passado distante e percebi que muitas vezes (quase todas) essa má impressão está ligada a pequenas coisas, posições que o sujeito teve no passado, e que podem estar completamente distantes de sua realidade atual. É possível que tenham abandonado por completo suas posturas, suas ideias, suas perspectivas de mundo e tenham se tornado bastante diferentes. Como a menina na praia de Copacabana que deu uma declaração preconceituosa e até racista para a extinta TV Manchete, mas que refez sua vida, estudou filosofia e hoje diz ter “horror de gente que pensa como ela pensava”.

Pessoas mudam, pessoas crescem, se modificam. Pessoas evoluem… o que era algo valioso no passado pode se tornar desinteressante em muito pouco tempo. Paixões se dissipam no ar sob a ação do sol, novos amores surgem, assim como novos interesses brotam da experiência cotidiana. É possível que, dentro de um tempo variável, todos sejamos compelidos a mudar o nosso foco, nossa visão da realidade, fazendo o interessante virar frugal, e o banal essencial.

Minha maior fantasia é ter um encontro com Jesus depois de morrer. Imagino encontrá-lo no plano espiritual, e, passado o susto por vê-lo, nossa conversa seria assim:

– Fala Nazareno!!! Feliz de te encontrar!! Meu, que honra…

– Obrigado, mas ninguém me chama mais de Nazareno há alguns séculos. Aqui acabei me dedicando a outras coisas, meu foco de atenção está em outros projetos. Nada contra aquela minha fase, que foi até bem legal. Fiz vários amigos e curti muito. Converso muito com os apóstolos ainda. Pedro, por exemplo, quando vem para cá sempre fica na minha casa, né Madalena?

Olho para o lado e Madalena concorda com um sorriso e um meneio de cabeça, enquanto passa um pano nos móveis da sala. Volto o olhar para o Messias e o vejo carregando com certa dificuldade uma sacola marrom.

– O que tem na sacola, Mestre? Precisa de ajuda?

– Ahh, tudo bem. Faz parte do treinamento. São meus halteres.

– Halteres?

– Sim, nos dois últimos séculos tenho me dedicado ao fisiculturismo. Percebi que este é um caminho muito mais interessante. Se eu estivesse bem fisicamente teria sido muito mais difícil para os romanos me pegarem. Essa é a minha paixão por ora…

Ok, uma fantasia, mas creio que manter-se com a fotografia estática de qualquer um – para o bem e para o mal – diminui a imensa adaptabilidade humana para encontrar novos caminhos, novas paixões e projetos.

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Conservadores

Hoje me perguntaram o que eu achava da atuação de uma obstetra da minha cidade. Em verdade, muito pouco a vi na minha vida. Ela tinha a fama de ser contra o abuso de cesarianas, e deve ter alguns 6 ou 7 anos a mais do que eu; portanto, quase centenária. Todavia, achei curiosa a forma como tive que explicar seu trabalho e como categorizá-lo.

Bem, ela não é cesarista. Talvez tenha entre 60 a 70% de cesarianas em seu consultório, mas os cesaristas tem geralmente taxas acima de 90. Ela por certo não é uma médica humanizada; deve desprezar Doulas, ou não trabalha com elas. É conhecida por ser autoritária e até grosseira algumas vezes, mas tem mais partos normais do que seus parceiros. Tem um discurso de “parto normal é melhor, mas nem sempre é possível”, conjugado com as famosas “hoje as mulheres são muito mais fracas que antigamente“.

Há algumas décadas ela seria chamada de “vaginalista“, mas esse termo é difícil de usar para alguém com tantas cesarianas. Talvez o termo “conservadora” fosse mais adequado, pois ela parece mais uma obstetra tradicionalista, que nos anos 80 eram aqueles profissionais que consideravam a cesariana um modismo que atingia as novas gerações, mas que nivelava por baixo as competências requeridas para a atenção ao parto. “Cesariana qualquer um faz; atender um parto precisa habilidade“, diziam alguns velhos professores.

Ela sequer pode cair no grupo dos “tecnocratas conscientes”, que são aqueles que reconhecem os malefícios da tecnocracia e do abuso das intervenções, mas acreditam que o contexto os obriga a esta postura em função da pressão social e dos seus pares. Não, ela apenas valoriza alguns saberes que eram a matéria prima dos antigos parteiros, e acredita que estas ferramentas sejam um diferencial importante para uma atenção mais efetiva ao nascimento.

Sim, o parto é deitado. “Preciso enxergar o que vou fazer e não tenho mais idade para ficar de joelhos“. A episiotomia usa quase sempre, senão “rasga tudo, já vi acontecer“. Ocitocina quase sempre, comandos tipo “fecha a boca e faz força de cocô” em todos os partos. Entrega rápido o bebê ao neonatologista pois “nunca se sabe se ele está mesmo bem”.

De maneira geral você terá mais chance de um parto vaginal com ela, mas não pense que sua experiência será “baseada em evidências”; ela vai ser mais próxima da sua fisiologia, mas ainda longe do que poderíamos esperar desse evento.

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Dos Olhos para Dentro

Muito vi no consultório, em especial atendendo pacientes carentes na Liga Homeopática, mulheres que me descreviam situações de maus tratos, grosseria, abuso financeiro e até agressões físicas no ambiente doméstico. Diante de histórias de colorido trágico a tentação era sempre se posicionar ao lado da suposta (porque até uma construção fantasmática seria possível) vítima e orientá-la a romper esse laço. Quem não se deixaria tocar pela injustiça transformada em violência e abuso? E por certo que avancei o sinal algumas vezes embarcando junto com elas em sua narrativa de dor, angústia, mágoa e ressentimento.

Entretanto, com o tempo percebi que o máximo a fazer é oferecer ouvidos compassivos, uma atenção respeitosa e encaminhá-las para uma instância de proteção, quando necessário. Tentar orientar, aconselhar, interpretar e desbaratar os laços contraditórios e caóticos que amarram o desejo é uma tarefa que não me cabia. Nessas horas eu olhava para a face sofrida dessas mulheres e pensava no infinito que se encerrava de suas retinas para dentro, o mundo de cores, dores, alegrias, aflições, gozos e tragédias que todas carregam. Qualquer conselho seria um desrespeito com sua história, sua subjetividade e sua unicidade.

Cada um sabe onde seu sapato aperta, cada um conhece seu desejo, ou percebe para onde ele aponta. Ou, com o diria Caetano Veloso…

“Eu não sou cachorro não
A gente não sabe o lugar certo
onde colocar o desejo
Todo beijo, todo medo,
todo corpo em movimento
está cheio de inferno e céu
Todo santo, todo canto, todo pranto,
todo manto está cheio de inferno e céu
O que fazer com o Deus nos deu
O que foi que nos aconteceu
Quando a gente volta o rosto
para o céu e diz
olhos nos olhos da imensidão
Eu não sou cachorro não….”

(Pecado original) 

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Vacinas, cesarianas e cadeias

Será o nosso pedido desesperado por “vacinas” mais um clamor pelas soluções mágicas, o qual esconde nosso temor de encarar os verdadeiros desafios?

Ainda hoje eu escutava pessoas sendo entrevistadas no rádio e pedindo às autoridades nacionais e mundiais que se encontre de imediato a solução para esta pandemia e um apelo pela criação e distribuição de vacinas. Não é difícil entender que, nesse momento de angústia disseminada, pedidos como este sejam voz corrente entre a população. Todavia, é necessário ir além dos pedidos desesperados para entender o significado dessa busca por soluções.

Da mesma forma, logo depois de um caso dramático de crime, os gritos são por mais segurança, mais polícia, mais repressão aos delitos e mais rapidez nas sentenças. Criar presídios, cadeias, justiça mais rápida e encarceramento parecem soluções adequadas e ágeis. Acreditamos que quanto maior a repressão melhores os resultados, na crença de que a impunidade é a grande estimuladora das contravenções. A experiência acumulada sobre o encarceramento, em especial em países com doutrinas positivistas hegemônicas, mostra o oposto: o encarceramento em massa jamais solucionou o drama da criminalidade.

Também com as cesarianas pensamos dessa forma imediatista; basta um caso isolado de problemas no parto normal para pedirmos mais cesarianas e mais tecnologia aplicada ao parto, com a fé de que as intervenções tecnológicas no nascimento produzem mais segurança, mesmo que as evidências apontem o contrário.

Vacinas, cesarianas e cadeias tem espaço nas sociedades contemporâneas, sem dúvida. Todas elas podem salvar vidas, ou evitar que outras vidas sejam perdidas. Entretanto, o uso dessas alternativas aponta para inequívocas falhas estruturais, erros na arquitetura básica da sociedade, e estas soluções podem servir apenas para nos oferecer um alívio temporário para doenças crônicas e insidiosas.

Não acredito que a solução para os dilemas do parto será pelo incremento de mais tecnologia, mas pela compreensão que grande parte dos transtornos do parto ocorre pela sua inserção numa cultura capitalista e que enxerga as mulheres e seus ciclos de forma diminutiva, olhando-as com lentes invertidas que as tornam defectivas, incapazes, insuficientes e indignas de confiança. A falta de protagonismo das mulheres aos seus ciclos é a falha essencial, e o incremento das intervenções aparece como o sintoma, mas não será jamais sua solução.

A repressão policial violenta vai ocorrer em sociedades desiguais e inerentemente injustas, e sempre será usada para conter a natural reação dos oprimidos às injustiças e à iniquidade. A força bruta será o meio de controle social enquanto a ferida aberta da desigualdade continuar sangrando, fazendo um enorme e crescente contingente de pobres e miseráveis ser contido através da violência. Sem que a real doença social do capitalismo seja curada, não haverá polícias e presídios suficientes para conter a revolta dos esquecidos.

Hoje gritamos por vacinas porque elas entram como a solução tecnológica para uma relação absolutamente disfuncional do homem com a natureza. Da mesma maneira, se não for modificada a nossa relação com ela, nenhuma vacina será suficiente, pois para cada anticorpo produzido dezenas de outros antígenos esperam na fila para atacar os corpos humanos. A raiz deste problema não se encontra na falta de tecnologia para encontrar os remédios, mas no excesso de intervenção na delicada tessitura da natureza, onde somos apenas um dos tantos prejudicados.

Vacinas, cesarianas e cadeias jamais serão soluções definitivas para o dilema humano. Nossa relação desequilibrada com a natureza, com a distribuição das riquezas e o desrespeito com o feminino e seus ciclos são expressões de violência que denunciam paradigmas disfuncionais subjacentes. Somente olhando de frente para estes dilemas teremos um mundo mais justo, igual e saudável.

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