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Virgindade

A Revista POP, com Rita Lee e Marcucci (criador da banda Rádio Taxi) na capa, mostra um aspecto interessante da minha juventude: em 1978 ainda havia espaço para debater “virgindade”. Ora, não se debate mais virgindade porque não é mais necessário; sobre esse tema não há mais um tabu como outrora. Na minha juventude era possível até cancelar um casamento pela noiva não ser virgem. Havia constrangimento sobre a vida sexual das meninas naquela época, e só por isso era preciso escrever artigos e matérias em revistas populares. Hoje o fenômeno é outro: uma onda neoconservadora liderada por denominações cristãs e voltaram muitas regras da minha época estimuladas pelo pentecostalismo, que é uma doença social da nossa era.

Eu vivi essa época. Virgindade era um assunto debatido inclusive em programas de TV, e até chamavam pessoas da Igreja como debatedores. Já na época eu me perguntava, olhando o jovem clérigo discursar sobre a importância de chegar “pura” ao altar: que se pode esperar do “padre eterno que nunca foi lá” falando sobre esse assunto? Que sabem eles daquilo que dá dentro da gente que não devia, que é feito estar doente de uma folia?

Havia uma perspectiva muito prevalente no discurso da classe média: a vantagem de “esperar” para ter relações só no dia do casamento, entrar na igreja de branco, ser pura, imaculada, etc. mas é claro que essas determinações eram direcionadas apenas às mulheres. Aos homens a iniciação sexual era incentivada, assim que houvesse possibilidade; isso diminuiria o risco de ser “bicha”. Muitos homens dessa época relatam os traumas desse tipo de violência. Na escola uma colega desapareceu das aulas e suas amigas me disseram que estava grávida. Depois do nascimento do bebê ela visitou as antigas colegas na escola e levou as fotos do casamento. Perguntei porque o vestido era rosa e todas me olharam como se tivesse dito uma enorme bobagem. “Ela não casou virgem, seu burro!!”, disseram elas sussurrando e fazendo gestos para eu fechar minha boca. Sim, até esse tipo de constrangimento era comum para as meninas.

Esse tipo de constrição sobre o exercício da sexualidade das mulheres gerava no imaginário masculino uma divisão de classes: havia aquelas “para casar”, as intocáveis, e aquelas para transar – as outras. Tive amigos da época que tinham uma noiva virgem e uma outra namorada com quem transavam. Quando questionei a um deles se achava certo, respondeu que achava justo, pois “precisava aprender com alguém” para ser “bom de cama” no casamento. Tive amigas, que agora estão com 70 anos, que casaram virgens. Uma delas me contou que havia muito controle, muita pressão, e mesmo os namorados tinham medo de exigir uma “prova de amor”. Sim, pois se ela cedesse aos seus avanços, quem garantiria que não cedeu antes para outro? Como saber se não seria infiel depois? Das mulheres era cobrada uma fidelidade à virtude.

Ainda havia muita gente que defendia essa ideia e exaltava a “honra feminina”, mas os anos que se seguiram foram lentamente sepultando essa questão nas culturas ocidentais. O debate foi aos poucos desaparecendo e talvez o que ainda resta é o tabu da monogamia – que  igualmente vai se tornando cada vez mais frágil. Apesar disso, até agora não descobri um modelo que seja mais seguro (não necessariamente melhor) do que o casamento, pelo menos no que diz respeito aos filhos. O futuro dirá se esse mito vai resistir.

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Desamor

Eu creio que todos nós acreditamos que o amor que oferecemos é um bem muito precioso. E é mesmo; mas não é um ativo sobre o qual se possa exigir reciprocidade. Uma mulher abandonada vai dizer “e o amor, a dedicação, os filhos, os cuidados da casa, os sonhos compartilhados, a minha fidelidade? Vou ficar sem nada?” Cobram por essa carga enorme de afeto que foi por elas entregue, mas por certo esperando o retorno de quem um dia amaram.

Os homens da mesma forma vão falar do dinheiro, do tempo investido, do cuidado, do amor, da atenção e tudo que dedicaram à mulher a quem amaram – ou ainda amam.

Amores homoafetivos também não tem razão para serem diferentes. Quem é abandonado cobra a parte que lhe faltou na economia do amor. Essa é uma reação humana à mais antiga das dores – a dor crua e dilacerante do desamor.

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Medicina e Socialismo

Muitos médicos fazem da prática da medicina toda a sua vida, pois é dela que extraem seu valor social, seu significado e sua importância. Ter essa conexão com a profissão não é exatamente errado, mas é perigoso. Em primeiro lugar porque somos muito mais do que a profissão que abraçamos. Somos uma potencialidade infinita de funções e modos de ser. Somos pais, avós, filhos, escritores, marceneiros, empresários, cantores em potencial e ater-se apenas a uma forma de expressão pode impor uma limitação desnecessária a qualquer um de nós.

Muitas mulheres – e até homens – colocaram na sua relação amorosa todo o valor de sua existência. Como Florbela Espanca, dizem “tu não és sequer a razão do meu viver, pois que já és toda minha vida”. Alguns profissionais fazem o mesmo, e alienam sua existência a um ofício. Em medicina isso é muito comum. Todavia, creio ser importante criar outras formas de ser relevante e sentir-se produtivo. Ou, como diriam os apostadores, não devemos colocar todas as fichas (da nossa paixão) no mesmo número.

Em segundo lugar, a Medicina tanto abriga quanto oprime. Ela é uma mãe poderosa, amorosa e benevolente, porém possessiva e vingativa. Ao mesmo tempo em que lhe oferece um poder desmedido, valor social e dinheiro ela lhe cobra fidelidade. Para a imensa maioria de seus filhos essa fidelidade é oferecida sem queixas. Afinal, quem reclamaria do preço a pagar diante de produto tão valioso? Existem, entretanto, aqueles a quem sua fidelidade está direcionada a valores outros, como uma mente livre e sem amarras. Para estes a conexão à medicina e seus postulados só terá sentido se não afetar outros aspectos da vida, como a equidade, a justiça, os direitos humanos e a liberdade do sujeito de fazer suas próprias escolhas.

É nesse momento que os choques podem ocorrer. No caso da Medicina, a expressão da arte médica se faz no espaço que se forma entre a justa ação de proteção dos pacientes e a apropriação indébita da autonomia destes pelo jugo imposto pelo capitalismo. É nessa zona esfumaçada e incerta que operam os profissionais. Para a maioria, os abusos sobre a autonomia dos doentes são um preço baixo que eles devem pagar para a sua prometida segurança. Para outros, liberdade é a meta última, e qualquer ação que destrua a autonomia alheia será criminosa.

Uma mente inquieta sofrerá a inevitável dor e padecerá da angústia, do sofrimento e viverá em conflito quando estiver diante desse “imperativo de consciência”. Calar-se e acovardar-se diante da injustiça produz doença e martírio moral. Lutar causará dor, feridas, ressentimento e tristezas profundas. Consciência e postura ética cobram um preço deveras alto. Para alguns o embate será inexorável e muitos sabem que essa luta poderá não trazer qualquer resultado além do próprio sacrifício pessoal. Nesse aspecto a luta política pela conquista do socialismo emparelha seu caminho com a luta por uma medicina mais democrática. Não faz sentido que a luta pela saúde dos pacientes não incorpore a ideia de uma sociedade justa e igualitária. Imaginar que é possível tratar os sujeitos doentes sem se importar com as causas primeiras do adoecimento é fazer o jogo mórbido das indústrias que lucram com a doença e o martírio.

Baruch Espinoza, judeu sefardita holandês nascido em Amsterdã, resolveu fazer críticas à dogmas cristãos e à própria Bíblia que foram consideradas pesadas e inadequadas pela oficialidade da comunidade judaica, por agredir elementos essenciais do cristianismo. Estes rabinos, com razão, temiam que suas posições deixassem em risco os judeus que foram recebidos na Holanda após sua expulsão de Portugal pela inquisição portuguesa.

Apesar das pressões, Espinoza não se retratou, por fidelidade à sua consciência e pelo valor que dava à sua liberdade de expressão. Foi humilhado, excomungado e expulso de sua comunidade, vindo a se refugiar em um sótão para trabalhar como relojoeiro até o final de sua vida. Ele é, para mim, o maior exemplo de integridade e respeito a si mesmo. Muitos médicos que conheci – como vários colegas do Brasil e do exterior – seguem esse padrão ético e pessoal. Muitos deles tem marcas na alma das lutas incessantes contra um sistema cruel cujo respeito à autonomia dos pacientes não ocupa o lugar central que deveria ter na ação terapêutica. Para estes minha reverência e meu respeito.

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