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Embriões

No dia seguinte ao ataque das Torres Gêmeas, há exatos 22 anos, eu estava auxiliando uma cirurgia num hospital da cidade. Comentei com a minha colega cirurgiã que de tanto ver os Estados Unidos lançando bombas em outros países chegava a dar um certo prazer mórbido de vê-los sofrendo do mesmo mal que aplicavam no mundo inteiro. Por acaso houve consternação em solo americano quando um terço da população da Coreia Popular morreu nos escombros dos bombardeios americanos? Alguém teria se chocado nos Estados Unidos quando soube das ordens dadas aos combatentes para que destruíssem toda a infraestrutura – escolas, hospitais, rede elétrica, saneamento – coreana nos anos 50? E os vilarejos inteiros varridos pelas bombas de Napalm no Vietnã? E o que dizer sobre as 250 mil mortes instantâneas causadas pelas bombas nucleares lançadas sobre as populações civis em Hiroshima e Nagasaki? Quem lamentou por eles? Havia à época jornalistas chorando em frente às câmeras, tendo a fumaça das bombas como fundo de tela?

Imediatamente surgiu por detrás da cortina que separa os campos cirúrgicos a cabeça do anestesista. Intrometendo-se em nossa conversa, estava absolutamente irado. Em suas palavras me acusava de estimular o terrorismo, quando em verdade eu apenas denunciava o terrorismo de Estado praticado pelo imperialismo há décadas, desde o final da segunda guerra mundial – e até antes disso. Mas o anestesista não se conformou com minhas explicações. Passou a atacar o comunismo, a Coreia, depois a China e terminou (que surpresa!) em Cuba. Em poucos segundos completou o circuito dos reacionários, vociferando lugares-comuns, clichês anticomunistas e a favor da “liberdade”. Não faltou o famoso “quantos americanos se atiram ao mar em direção à Cuba” e nem a tradicional “socialismo nunca deu certo“.

Sim, apenas 12 anos nos separavam da queda do Muro de Berlim e muitos no ocidente nutriam a convicção do fim da história. O socialismo havia sido derrotado, o neoliberalismo de Reagan e Thatcher haveria de se espalhar pelo planeta, os Estados seriam encolhidos ao limite do desaparecimento e o capitalismo era a força vitoriosa no embate das ideias. Mas foi o ódio incontido – e até o desrespeito – do anestesista para com a minha particular perspectiva geopolítica que me fez perceber que havia ocorrido apenas um “round” na luta entre estas propostas, e não o fim do combate. Aquela agressividade grosseira era a emergência de um sentimento que eu ainda não havia presenciado com tanta intensidade, mas que ficou evidente quando, apenas dois anos depois, Lula venceu as eleições, levando um partido de trabalhadores ao poder pela primeira vez neste país. O sucesso de Lula, em especial em seu segundo mandato, fez esse sentimento crescer ainda mais, produzindo, a partir da derrota de Aécio para Dilma, o surgimento dessa força de extrema direita pró imperialista, conservadora, de caráter fascista e – como depois constatamos – até golpista.

Há 22 anos eu conheci o bolsonarismo embrionário, o protofascismo que tão facilmente se alastrou entre a pequena burguesia e em especial na classe médica, a mesma que organizou um “corredor polonês” para constranger os médicos cubanos que chegavam ao país e que fez coro ao “Fora Dilma” apoiando seu impeachment fraudulento. Ali era possível ver o que estava se gestando nas estranhas da classe média ressentida, um rancor silente produzido pelos avanços civilizatórios da esquerda, que culminariam nos golpes, na prisão arbitrária de Lula e na eleição de um sociopata para a presidência da República. Gostaria de ter percebido, já naquele instante, o que estava por vir. Pensei se tratar tão somente da compreensível indignação pelo ataque contra civis no coração dos Estados Unidos, mas em verdade sua ira descontrolada estava expondo a extrema direita fascista que se preparava para renascer depois da sua derrota na segunda guerra mundial. Ao meu lado, naquela cirurgia, estava o embrião de extremismo de direita que produziu a direita do ódio. Hoje eu lamento não ter decifrado essa charada quando a vi por primeira vez.

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A Rosa

Eu escuto Gênesis, Yes, Chico Buarque. Sou velho. Não, eu não reparei em celulite e nem o rebolado de ninguém ultimamente, mas não é moralismo, é umidade. Quando se tem umidade avançada a gente fica exigente e chato. Como diria Brizola, “eu vim de longe”. Eu estava entrando na puberdade quando apareceu a banda Secos e Molhados com um cara que cantava com voz de mulher. Muito bizarro.

Sabem qual o nome original da banda? “Frescos e Molhados”, mas vetaram o nome para não chocar a sociedade conservadora dos anos de chumbo. Mas lá pelas tantas, vencido pela curiosidade, resolvi escutar o long play (eu avisei que era velho) e uma música me atingiu os tímpanos de forma dramática, deixando uma cicatriz melódica da qual nunca me recuperei totalmente. A música, cuja melodia é de Vinicius de Moraes, dizia assim:

Pensem nas crianças
Mudas, telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas, inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas, alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh! Não se esqueçam
Da rosa, da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor, sem perfume
Sem rosa, sem nada

O cara que cantava era um magricelo “fresco”. Era assim que a gente chamava os caras afeminados, mais tarde chamados de homossexuais, isso tudo antes da eclosão da diversidade, a partir de quando eles ficaram perigosamente próximos. Nada pode ser mais perigoso para as nossas certezas do que a proximidade com o desigual. O respeito ao diferente não é inato; natural é o rechaço. O respeito é aprendido, por bem ou por mal.

Secos e Molhados poderiam ser um sucesso de verão, como tantos que passaram, e os rebolados do Ney estariam hoje nas coletâneas de bizarrices dos anos 70. Porém, havia mais do que trejeitos e performance, havia arte e transgressão, e talvez não haja mesmo arte transformadora que não se arrisque a ofender. Um camarada amigo meu dizia há tempos dizia “não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve, suave limpa, muito linda e muito leve. Sons e palavras são navalhas, e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém”

Talvez esses novos transgressores possam ser o portal de uma nova estética que nos oportunize rever conceitos e abrir nossas mentes. Por enquanto permitam-me ser um pouco cético até que surja uma Rosa de Hiroshima para me deslocar o queixo e deliciosamente estuprar os tímpanos.

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