Arquivo da tag: Japão

Mãe

Hoje meus pais completariam 67 anos de casados. Como houve mudança recente das leis de divórcio no plano espiritual, não tenho certeza se continuam juntos, mas pelas palavras do meu pai acredito que sim. Dizia ele que pretendia casar de novo com minha mãe nas próximas 20 encarnações – só depois daria “um tempo”. Foi uma relação que durou quase 70 anos, desde o namoro até a morte de ambos. Como sempre, eu acho que essas relações duradouras seguem um padrão bem característico, quando voluntárias, por certo. É necessário que ambos tenham um específico fetiche, talvez mesmo um tipo de fragilidade, algo que os faz procurar no outro sua completude, mesmo quando o mais fácil seria seguirem sozinhos. Essa característica podia ser encontrada em ambos, e por isso ficaram tanto tempo juntos. Aliás, além dessa relação com o amor romântico, minha mãe sempre teve outra característica muito curiosa: ela era apaixonadamente francofílica; desde jovem cultivava um amor desmedido pela França, sua língua, sua história e sua cultura, tudo isso misturado com uma xenofilia ingênua.

A francofilia veio da infância, vivida nos anos 30 em uma cidade provinciana como Porto Alegre. Na época assistíamos à decadência elegante da cultura francesa, que hoje não passa de um arremedo da importância que outrora teve no cenário das artes e das letras do mundo ocidental. Minha mãe era vidrada na França, em Paris, no encanto e na sofisticação da “cidade luz”. Além disso, ela adorava o idioma, que aprendeu a falar estudando sozinha em casa. Tenho guardados até hoje seus livros rabiscados em francês, o “Petit Robert” e seus cartõezinhos de cartolina rabiscados com frases escritas na língua de Victor Hugo e Émile Zola.

A sua xenofilia (amor pelo que é estrangeiro) era um traço curioso. Ela ficava espantada com o desenvolvimento tecnológico dos países da centralidade do capitalismo, e resumia esse aparente sucesso em uma palavra que usava constantemente: “pujança”. Dizia ela: “Os europeus fazem essas maravilhas devido à pujança do seu povo”, mas não adiantava muito que um comunista como eu explicasse a ela a origem criminosa da riqueza dos colonizadores europeus. Para os americanos a mesma admiração. Quando passava pela praia do Lami, às margens do Guaíba, em Porto Alegre, exclamava: “Imagine isso aqui nas mãos dos americanos. Tudo limpinho, tudo cheiroso, resorts, praias limpas, restaurantes”. Mal sabia ela que os americanos gerenciam, mas quem paga a conta de toda essa modernidade somos nós.

Apesar dessa paixão pelo estrangeiro, ela não era uma pessoa que desprezava o Brasil e os brasileiros. Tinha paixão pela natureza do nosso país e nossa miscigenação, e concordava ser nosso destino criar uma grande nação abaixo do Equador. Na grande expansão japonesa dos anos 80, quando o país viveu um furor desenvolvimentista e tecnológico, ela me dizia: “Calma, calma. O Japão é um país maravilhoso, mas o futuro não está lá. O país que vai liderar o mundo no século XXI é a China. Tem muita gente – e também muita pujança”. A China, na época, tinha um PIB menor que o do Brasil, e 80% da sua população ainda vivia no campo, mas minha mãe sacou com precisão que um país gigante e com uma economia centralizada com o tempo se tornaria uma nação de inclusão e progresso.

Tenho certeza que eles estão festejando hoje os 67 anos de união, e felizes por terem aproveitado a estadia terrena para oferecer bons exemplos a todos que com eles conviveram.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Casamentos

“Nenhum casamento é suportável se as pessoas não se modificam, não mudam. Por isso, case-se várias vezes, de preferência com a mesma pessoa”.

A necessidade renovação, transformação e mudança para se adaptar às distintas fases da vida, em especial no que diz respeito à vida amorosa, é um dos mais antigos axiomas sobre os casamentos. Afinal, quando casamos com alguém certamente esta pessoa se transformará em outras pessoas dentro daquele mesmo sujeito; igualmente quando nos separamos esta será uma pessoa muito distinta daquela com quem iniciamos uma jornada de casal. Portanto, a mudança é mandatória. Nada há de novo nestes conselhos, inclusive a ideia de “casar muitas vezes” com o mesmo parceiro. A questão é que esta perspectiva sobre as uniões parte de uma visão rígida sobre o casamento, tratando-o como se fosse um evento social sagrado e por demais precioso, que precisa ser preservado a todo custo. É inegável a importância que as civilizações emprestaram à união dos casais, pois que o reconhecimento do Estado garantia compromissos de cuidado por parte dos maridos, e de fertilidade e fidelidade por parte das esposas. Estes são, sem dúvida alguma, valores primordiais, essenciais para a sobrevivência de qualquer grupo. Não seria possível a grande revolução da agricultura e do sedentarismo ocorrida no paleolítico superior não fosse a adoção destas medidas de controle social. Não à toa, as uniões de casais são descritas como  o ápice e o centro da estrutura social, pela sua importância na continuidade da espécie. Entretanto, é possível que hoje exista um exagero sobre esta forma de ver a vida “a dois”. Talvez a forma como vemos os relacionamentos precise ser refeita.

No ano passado, o número de uniões civis no Japão caiu pela primeira vez desde o anos anteriores a segunda guerra mundial. Ao lado disso, e por consequência, os nascimentos caíram 5.1% , chegando a 758 mil por ano, numero que o Instituto Nacional de Pesquisa Populacional e Previdência Social esperavam só ser alcançado em 2035. Ou seja: a baixa de casamentos leva à baixa de natalidade. A falta de jovens e o envelhecimento da população é um problema grave para a economia de qualquer país. Em 1982 o número de nascimentos no Japão foi de 1,5 milhão, quase o dobro do que se vê agora. A taxa de fertilidade – a média de nascimentos por cada mulher – caiu para 1,3, um valor trágico se levarmos em consideração que a taxa necessária para manter uma população estável; é de 2,1. Os falecimentos ultrapassam os nascimentos por mais de uma década. Assim, no Japão mais pessoas são enterradas do que paridas há mais de 10 anos. Em uma aldeia japonesa chamada Kawakami não houve o nascimento de nenhuma criança em 25 anos. Esta localidade já teve 6 mil moradores nos anos 80, e hoje não tem mais do que 1.150 habitantes. Será o Japão um fato isolado? Serão os japoneses o tubo de ensaio de uma crise de natalidade grave que atingirá o mundo inteiro?

Talvez o casamento não seja tudo isso. Apesar da importância que ainda vemos neste tipo de união civil – que pode ser medida pelos custos de uma cerimônia para as classes abastadas – é possível que o casamento como o conhecemos, que inclui os filhos, a monogamia, a coabitação, os projetos compartilhados, etc., tenha sido uma moda passageira na história da humanidade, uma forma intermediária para acomodar necessidades específicas, e tão somente um subproduto do patriarcado, criado para manter o controle sobre as mulheres, a procriação e a descendência. Hoje em dia o casamento é criticado como nunca e duramente questionado sobre seu real valor, e para alguns parece evidente que ele tem seus dias contados por não oferecer aos casais a liberdade e a autonomia que tanto almejam. A lenta decadência do modelo patriarcal talvez leve consigo alguns elementos que hoje são comuns, mas que talvez se tornem raridade no futuro: as parcerias eternas, os casais de velhinhos e o almoço de domingo na casa dos avós. Quem sabe que tipo de sociedade diferente vai surgir quando desta instituição sobrar apenas uma vaga memória.

Por fim, a questão dos casamentos, seu significado e seu futuro, são determinantes para as sociedades contemporâneas. Por mais que existam questões sobre os valores inseridos no casamento, ainda haverá a necessidade de ajustar os afetos, o desejo sexual e a criação das crianças, fruto destas uniões. Sem a figura do casal heterossexual como a única forma de expressão dessas uniões, como vai ser a construção desta nova sociedade? Sobre quais valores se assentará e como será a arquitetura das famílias do século XXII? As pessoas da minha geração, em especial aquelas contaminadas pelo romantismo e que nasceram sob a égide da família nuclear, por certo não terão a oportunidade, ou o tempo de vida suficiente, para testemunhar este mundo sem casais e sem juras de amor eterno; não teremos a chance de vivenciar as dores e os sabores deste mundo novo e desafiante. Entretanto, é inevitável a curiosidade em saber se o modelo que virá para garantir o afeto e o cuidado das crianças terá tanto sucesso quanto o amor romântico teve na história do planeta.

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos

A Serviço do Imperador

Sim, Haruki, eu escrevo sobre qualquer coisa, todos os dias. Tão logo um pensamento galopa pelas ondas escuras do meu cabelo, ele cai à minha frente vertido em tinta. Escrevo qualquer coisa que se possa acomodar entre as letras, qualquer lembrança que faça cócegas pretéritas, qualquer ideia, todas as percepções, todas as imagens vívidas do passado, de qualquer lugar, modo e circunstância. Faço isso de forma compulsiva, metódica e premente, mas não de uma maneira laboriosa e dolorida. Porém, reconheço seu caráter exonerativo; escrevo como quem aperta um abscesso cuja dor alivia quando se abre para o ar.

Escrevo ainda mais pela premência da morte, o desenlace definitivo, o fim que me aguarda num ponto adiante qualquer no traçado da vida. Escrever passou a ser meu contrato para driblar o esquecimento inexorável que me aguarda. Paradoxalmente, enquanto a vida se restringe às quatro paredes desta cela, parece que nunca me aventurei tão distante nas minhas lembranças; a constrição do corpo abriu um portal de memórias que a pletora de liberdade não me oferecia. Como um cego que agora saboreia com requinte os ruídos e cheiros – outrora subtraídos pela volúpia da luz – minha fantasia corre solta, minhas lembranças são vívidas e claras e minha saudade colore de dor cada reminiscência. Nunca fui tão longe sem precisar me mover.

Pela nossa minúscula janela gradeada vejo a neve vergar o galho da cerejeira no Kōkyo Higashi Gyoen, o parque Imperial, mas só o sei porque a enxergo todos os dias nas minhas memórias. Para mim o peso dos flocos dobrando os galhos finos é tão real quanto o som da sirene avisando a chegada da noite ou o barulho metálico das trancas nas portas de ferro.

Não me pergunte, Haruki, porque escrevo. Escrever é o que ainda me permite respirar.

Tatsuki Shinkai, “A Serviço do Imperador” (天皇陛下のお仕えに.) Ed. Orient Press, pag 135.

Tatsuki Shinkai é um escritor japonês nascido em 1925 em Osaka e que lutou na guerra contra os Estados Unidos. Formou-se em literatura mas logo depois alistou-se no exército Imperial japonês no esforço de guerra. Patriota e entusiasmado com o expansionismo japonês na Ásia, fazia parte da tripulação do porta-aviões Akagi que foi afundado pelos navios americanos na batalha de Midway. Conseguiu saltar do navio em chamas e foi resgatado pelos inimigos, enviado posteriormente como POW (prisioneiro de guerra) para Pearl Harbor, onde permaneceu em um campo de concentração até o final da guerra.

Tatsuki foi libertado em 1946 e voltou para sua cidade Osaka, encontrando-a parcialmente destruída. Durante os anos em que esteve prisioneiro escreveu um diário em formato de diálogos com seus parceiros de cela, onde aborda assuntos como o sentido da vida, a liberdade (e sua ausência), honra, guerra, pátria e fé. Negou-se a publicar seus diários durante os 20 anos que se seguiram à derrota japonesa, e só após a morte de seus pais em 1966 resolveu entregar seus manuscritos a uma editora japonesa.

Seu livro obteve um enorme sucesso no Japão, mas também nos Estados Unidos, em função das graves acusações ao governo americano a respeito dos campos de concentração para os americanos de ascendência nipônica. Depois do sucesso do livro, este foi vertido para o cinema, numa produção japonesa de 1973 do diretor Hayato Watanabe e com Fukuyo Hiroshi no papel do soldado Tatsuki. O famoso diretor Akira Kurosawa refere que o clima melancólico e intimista deste filme, que aborda o trauma e a vergonha da derrota na guerra, produziu enorme influência em sua obra cinematográfica.

Posteriormente, Tatsuki mudou-se para os Estados Unidos para dar aulas de literatura japonesa em Princeton e, a partir desta segunda fase em sua escrita, produziu vários outros ensaios, crônicas e romances, que fizeram grande sucesso entre o público americano. Perto de sua morte revelou que os personagens do seu livro “A Serviço do Imperador” (天皇陛下のお仕えに) pediram que seu nomes verdadeiros jamais fossem revelados, pois que suas histórias poderiam causar vergonha para suas famílias, promessa que Tatsuki cumpriu até sua morte em janeiro de 2010, em Portland, Oregon. Tatsuki nunca se casou e não deixou filhos.

Deixe um comentário

Arquivado em Contos