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In Vino Veritas

Creio ser importante que se faça uma reflexão a respeito dos fatos ocorridos na Serra Gaúcha referentes ao trabalho análogo à escravidão (e não “trabalho irregular”, como foi noticiado pelas empresas de mídia daqui).

Primeiro, é gravíssimo. Nós estávamos acostumado a pensar que esse tipo de abuso só acontecia nos rincões distantes do Brasil, onde não haveria um aparato estatal civilizatório suficiente para coibir tais ações. Mas não; os crimes ocorriam na região mais desenvolvida e rica do Estado, do nosso lado, nas nossas barbas.

Em segundo lugar é imprescindível que algo seja feito e que os responsáveis sejam punidos pelo rigor da lei. Estes responsáveis são as empresas terceirizadas que contratam estes empregados e os tratam como lixo, mas igualmente as empresas que lucram com a desumanidade no tratamento desses trabalhadores e fazem vista grossa para o tratamento desumano que recebiam. Não há sentido algum em “passar pano” para Salton, Aurora e Garibaldi, e não aceitaremos que terceirizem suas culpas evidentes neste caso, saindo ilesas de crimes contra a dignidade humana. Hoje também sabemos que as empresas haviam sido denunciadas muitas vezes ao Ministério Público do trabalho, e nada foi feito. Por que tanta negligência com fatos tão hediondos?

A situação é grave demais para qualquer tipo de condescendência. Agora surgiram informações que sugerem a participação de membros da polícia militar nos castigos, pressões, constrangimento e torturas aplicados aos trabalhadores. Quanto mais investigamos, mais fundo fica o buraco, e começa a se configurar uma participação disseminada dos crimes pela sociedade local, seja por ação ou por omissão.

Não só as três empresas acusadas devem ser punidas, mas todas as outras das quais ainda não temos notícia. Muito mais ainda resta para ser apurado, e talvez tenhamos batido apenas na ponta do iceberg e isso explica o manifesto do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves, que mostrou que os líderes de classe acreditam que o problema de escassez de mão de obra na cidade é “culpa dos trabalhadores que vivem de benefícios governamentais” e não querem trabalhar, “sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade“. Ou seja, a culpa do trabalho escravo é do “Bolsa Família”, e não da ganância dos empresários, seja do vinho ou da mão de obra terceirizada. É sempre útil lembrar que estes municípios da Serra Gaúcha tiveram uma votação marcadamente bolsonarista, da ordem de 70% dos votos, e isso explica muito do que observamos agora.

Por fim, aqui vai uma reflexão mais delicada para as lutas proletárias. Hoje uma rede de supermercados do Rio anuncia que vai suspender a compra de vinhos da Serra e vai até devolver os estoques ainda existentes. A razão? Não deseja ter seu nome envolvido com empresas “sujas” no mercado. Aqui mesmo no sul do Brasil a palavra de ordem é “boicote”, uma forma de punir as empresas que promovem – ou são coniventes – com a barbárie do trabalho análogo à escravidão.

Entretanto, a ação nefasta da Operação Lava Jato, comandada pela nata da corrupção judiciária do Brasil, deixou claro que punir as empresas acaba destruindo aqueles que são sua alma: os empregados. O vinho que nós tomamos é feito pela mão dos trabalhadores da agricultura, os transportadores, os funcionários da vinícola, os engarrafadores, os burocratas e seus diretores. Todos estes serão punidos por uma culpa que não é deles. Precisamos aprender que a punição não deve atingir o povo trabalhador inocente, mas as pessoas diretamente relacionadas com os crimes cometidos, para que os empregos possam ser preservados e as famílias que sobrevivem das vinícolas não sejam sacrificadas. Não podemos admitir que a destruição planejada das empresas de construção civil e da indústria naval protagonizada pela Operação Lava Jato, que ocasionou a perda de pelo menos 4.4 milhões de empregos, tenha continuidade nos ataques à indústria do vinho (e do turismo), com o mesmo desastre social que já vimos.

Exigimos punição exemplar para diretores das empresas e para todos aqueles relacionados aos crimes contra a dignidade humana que foram coniventes com o trabalho análogo à escravidão, a tortura e aos maus tratos. Todavia, também desejamos que os trabalhadores honestos não paguem este preço, preservando as empresas da necessária punição aos responsáveis.

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Modelos e mensagens

Quando eu era adolescente escutei durante uma aula de inglês uma lição com uma frase motivacional na forma de um ditado, que por meio século se manteve em minha cabeça: “There’s more to clothes than to keep warm” (existe mais nas roupas do que simplesmente se aquecer). Esta noção do corpo como veículo da sexualidade – e das roupas como sua moldura – custou a se configurar como certeza, mas bastou atingir a adolescência para que ela caísse como um meteoro sobre minha cabeça. Por entender o quanto nossas roupas são mensagens é que, vez por outra, eu me espanto ao escutar ou ler algumas frases especialmente engraçadas sobre as razões para usá-las:

“Eu não me importo com roupas. Uso qualquer coisa e não me interessa se os outros gostam ou não. Eu me visto apenas para me sentir bem”. diz a jovem de jeans rasgados e tênis da “Balenciaga” que custam o mesmo que um trabalhador da construção civil leva três meses para ganhar de salário.

Acho engraçado porque este tipo de afirmação dá a entender que “as pessoas se bastam”, são ilhas de autossuficiência, como entes impenetráveis à opinião alheia. Nada me parece mais arrogante que isso. Uma vez meu filho, aos 12 anos, me confessou “tudo que eu faço é para me exibir, para oferecer algo aos outros”. Rara sabedoria.

Em verdade, essas coisas que nos empacotam como produtos na prateleira da vida importam sim, e muito. Não por outra razão as indústrias da moda e da maquiagem são dois dos mais poderosos empreendimentos do mundo. A moda mobiliza 2.4 trilhões de dólares por ano e, se fosse um país, seria o sétimo mais rico deste planeta, movimentando somas astronômicas para cobrir nossa nudez, ao mesmo tempo que, sedutoramente, nos convida a desvelá-la. A indústria de cosméticos já atingiu 571 bilhões de dólares anuais e está em franco crescimento, prometendo esconder defeitos, ressaltar virtudes e estancar a sangria do envelhecimento.

Além disso, existem os terríveis efeitos colaterais que estas iniciativas promovem. A indústria do vestuário é a segunda maior poluidoras do planeta, atrás apenas do petróleo, e a que mais enriquece pelo trabalho escravo. São cerca de 100 milhões de toneladas de fibras processadas em nível global. Nesse setor, o Brasil é responsável pela 5ª posição mundial, e somente aqui são produzidas cerca de 100 mil toneladas de lixo industrial cada ano, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). Tudo isso é gasto para deixar as pessoas mais atraentes e mais desejáveis, com mais pontos no mercado da atração sexual. Portanto, não é justo imaginar que toda essa fábula de dinheiro é gasta e as pessoas “não se importam” com o impacto que as roupas produzem no sexo oposto (ou no mesmo).

Outro problema está relacionado com as questões éticas de muitas empresas da moda e sua invasão sobre temas extremamente delicados como a sexualização da infância. A empresa Balenciaga está sendo atacada severamente pelo tipo de publicidade que usa para seus produtos usando modelos infantis. Eu acredito ser abominável qualquer exploração da sexualidade infantil produzida por roupas e cosméticos. Se a roupa é realmente isso – uma mensagem e um convite – a exploração da moda infantil que erotiza crianças é algo criminoso e perverso. A infância é curta demais para ser desperdiçada com adultização precoce.

Eu não seria tolo o suficiente para acreditar que o dinheiro gasto em aparência é mal gasto e não há nada de errado em gostar de roupas e do que elas representam, e isso é algo que se estabelece na primeira infância – como tudo que é significativo e persistente em nossas vidas. Eu só acredito que imaginar que as roupas que vestimos são desimportantes ou que sua intenção não é – em última análise – erótica, é um grave erro. Se a mola propulsora do mundo é mesmo o sexo e a manutenção dos nossos genes no pool planetário, qualquer ação que nos aproxime desse objetivo é válida. Entretanto, há que se entender que o desejo justo de aparecermos apetitosos aos olhos do mundo pode ter um preço alto demais para as outras vidas do planeta e, em última análise, a nossa própria.

Talvez seja o momento adequado para rever nossa compulsão em “renovar o armário” e passar a ter um consumo mais adequado para a capacidade de renovação do planeta. Visitar um brechó é um bom começo.

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