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Memórias do Homem de Vidro – 06

Exames e Vexames

Nadine sempre se vestia com elegância sóbria. Apesar de ser uma mulher linda e chamar a atenção pela beleza, nunca a vi usando uma roupa provocante. “Ele­gância é contenção”, dizia Max, provavelmente repetindo algum guru da moda. Ela sabia das coisas. Tinha consciência de que sua postura comedida era parte inte­grante do seu especial charme. Maximilian chamava isso de “nobreza sexy”. Quando ela atendeu ao telefone celular para falar com uma paciente, veio-me à mente uma cena em flashback, em que estávamos os três, almoçando no refeitó­rio do hospital durante a residência. Max estava ao meu lado e balançava a ca­beça acompanhando o ritmo de uma música, enquanto eu fazia um dos meus dis­cursos enfadonhos. Foi quando, repentinamente, Max me cutucou de forma insis­tente. Diante da obstinação de Max, eu me virei em sua direção, e ele, com os olhos arregalados, apontava com o queixo em direção à Nadine, sentada à nossa frente. Ainda sem entender, olhei para minha colega que, sentada de lado, con­versava distraidamente com uma colega. Não entendi o que falavam, mas prendi meu olhar nos seus belos olhos azuis. Novamente voltei-me para Max, que com a mão apontava para o próprio peito.

Foi quando entendi do que se tratava. Ele tentava me mostrar que Nadine estava com o último botão da blusa inadvertidamente desabotoado. Max queria dividir comigo um desses raros momentos de arrebatamento estético, em que o acaso produz a beleza. A borda de renda branca do sutiã de Nadine aparecia para nós como um presente da deusa Álea, a preferida de Max. Álea, da mitologia própria de Max, é a deusa das coisas circunstanciais, imprevisíveis e aleatórias. Pois a divindade nos brindara, naquele almoço, com um presente magnífico. Os contor­nos perfeitos, emoldurados pela renda alva, nos mostravam que, muitas vezes, a beleza se esconde em um átimo, em um instante, na fissura de um momento, em um piscar de olhos.

Nadine parou sua conversa e percebeu nosso olhar. Imediatamente levou a mão ao peito e, percebendo o botão inadvertidamente aberto, apressou-se a fechar a blusa, mas não se conteve em nos lançar um sorriso, entre envergonhado e crí­tico. “Seus tarados”, disse ela. Max soltou uma sonora gargalhada, enquanto eu, vítima inocente da trama, ficava vermelho como um pimentão. Essa lembrança voltou à minha cabeça enquanto Nadine falava ao telefone. Ela continuava linda como há 15 anos. Por que continuava sozinha? Fixei-me em suas mãos, onde o telefone celular mostrava o contraste marcante entre a médica e a mulher. Enquanto ela vestia um indefectível tailleur de linho azul, seu telefone ce­lular tinha um adesivo da Minnie, como a dizer que, por mais que ela aparentasse uma austera sobriedade, ainda lhe restava feminilidade suficiente para agir como uma adolescente.

Nosso reencontro fora combinado por mim e por havia alguns dias. Encontramo-nos na formatura de sua filha, que concluíra, como nós, o curso de medicina. Max perguntou-me onde Nadine estava trabalhando, e eu lhe respondi que ela traba­lhava no hospital da universidade, na emergência obstétrica, e que seria maravi­lhoso se pudéssemos fazer-lhe uma visita. Formáramos um trio inseparável de residentes, e Nadine sempre funcionou para nós como uma mistura de colega e musa inspiradora. Ele concordou na hora e alguns poucos telefonemas foram ne­cessários para que nosso encontro fosse combinado. Assim foi feito. Em uma tarde de outono, lá estávamos nós três de novo, mais de 15 anos passados do nosso período de residência. As caras mais velhas, algumas rugas a mais e — no meu caso — alguns cabelos a menos na cabeça. Max mantinha seu penteado desgrenhado e comprido, e Nadine agora portava a sensualidade superior das mulheres maduras.

Ela ainda estava ao telefone e pude escutar um fragmento da sua conversa:

— Nesse período da gestação, ele é muito pequeno, e frequentemente não é per­cebido naquele emaranhado de riscos e pontos. Uma ultrassonografia requer apa­relhos calibrados e profissionais experientes para interpretar as imagens. A au­sência de uma estrutura não significa necessariamente um problema. Muitas vari­áveis podem estar atuando. Imagens borradas, estruturas adjacentes complicando a visão e a própria inexperiência do examinador. Calma, minha flor. Tente ficar tranquila. Eu sei que é difícil, mas é importante.

Max me sussurrou que a conversa de Nadine só poderia ser relativa a problemas com ecografias no início da gravidez.

— Já vi esse filme — disse ele. — “Querida, encolhi o embrião”. Você já viu, Ric?

Certamente que muitas vezes, pensei eu. As ecografias tornaram-se uma febre no mundo tecnológico. Depois da derrocada dos raios-X como método diagnóstico na gravidez, as ecografias assumiram no imaginário popular, assim como nos círcu­los médicos, o papel do “exame que ajuda muito e não causa nenhum problema”.

Max odiava essa ideia.

— Ric — continuou Max —, a biblioteca Cochrane deixa muito claro que não existe nenhuma vantagem no uso rotineiro de ecografias nas gestações de baixo risco. Além disso, quantos problemas advindos de interpretações equivocadas, de falsos positivos e de erros humanos ainda teremos de suportar antes que essa prática cara e de efeitos pouco conhecidos seja efetivamente questionada?

Max tinha razão. Esperei Nadine terminar a conversa e falei para ela algo que me viera à cabeça. Uma lembrança sobre a questão de ultrassonografias e exames complementares.

— Posso lhe contar uma história? — perguntei eu. Nadine apenas sorriu e revirou seus belos olhos. Ela nunca me confessara abertamente, mas gostava de escutar minhas histórias, principalmente as divertidas. Sei disso porque alguns amigos em comum às vezes me diziam: “Nadine me contou uma história muito engraçada, e disse que aconteceu com você. É verdade?”

Aprumei-me no banco do bar e limpei a voz com um pigarro.

*   *   *

Uma vez, muitos anos atrás, quando eu trabalhava em um hospital militar, recebi no ambulatório uma paciente proveniente do interior. Vinha com a face típica das pacientes interioranas que vêm ao “doutor da capital”. Tinha por volta de 50 anos; menopáusica, três filhos de parto normal. Trazia a tiracolo o marido, a cunhada, uma malinha surrada e a indefectível sacolinha com radiografias e exames varia­dos. Vestia um semblante preocupado e cumprimentou-me sem sorrir. O marido igualmente me estendeu a mão sem nada dizer. A cunhada, coitadinha, parecia uma mudinha. Ajudou a paciente a sentar-se na cadeira e colocou-se de pé, imó­vel, no canto da pequena sala de entrevistas. Seus olhinhos estalados e sua posi­ção de estátua me fizeram sorrir, imaginando ser ela um colorido abajur. Final­mente, a sisuda senhora falou:

— Vim aqui para me operar, doutor.

A sentença já vinha com uma indelével marca de determinação. O marido me olhou firme, mostrando convicção e propósito. Ela estava querendo dizer: “Não adianta vir com papo de que não tem vaga. Vim do interior com meu marido e só saio daqui se for atendida”.

Pacientes morrem de medo de que sejam desconsiderados ou desrespeitados. Ficam sempre entre a cruz e a espada. Por um lado, pensam que, caso se com­portem “bem”, respeitando o doutor e mostrando submissão às suas ordens, po­derão receber um tratamento digno como recompensa. Por outro lado, depen­dendo do paciente e das circunstâncias, a tática é a da truculência. “Quero ver quem vai me mandar embora daqui antes de falar com o doutor” é uma frase típica dos corredores de hospitais públicos. Submissão ou porrada? Qual funciona? Normalmente, os pacientes chegam na arena de combate sondando o terreno. Têm um semblante desconfiado. Ficam testando o doutor, avaliando qual a melhor estratégia a seguir. Uma consulta médica é, acima de tudo, um encontro entre pessoas. Esse encontro sempre será tenso, quanto mais quando a saúde for a questão em jogo. Pacientes querem ser bem tratados, e que seus desejos (muitas vezes absurdos) sejam atendidos. Como conseguir isso? Eu, como bom aspirante a humanista, entendi a ansiedade e a angústia pela qual eles estavam passando e resolvi não “pegar pesado”. Médicos não são ensinados a receber ordens de pacientes. Maximilian costumava me dizer que “médicos não obedecem às leis; eles as criam”. A tentação naquele momento seria dizer: “Só operarei se eu achar que você deve ser operado. Seus papéis de nada valem aqui. Sou o responsável pela indicação da cirurgia, já que serei eu o provável ci­rurgião”.

Essa frase está ao mesmo tempo certa e errada. Certa por mostrar que a respon­sabilidade pelo resultado de uma cirurgia não pode ser transferida para quem a indicou, e deve ser de quem efetivamente a realizará. Por outro lado, está errada porque é um “tapa na cara”, uma falta de sensibilidade com as peculiaridades do momento; um choque prematuro de forças, uma “pororoca extemporânea”. Falar isso seria fechar um monte de portas. Fiquei com coceira na língua, mas apenas sorri em resposta. Ela me olhava firme. Queria ver minha reação. Eu podia ver o que significava sua vinda de tão longe, a espera na rodoviária, a escolha da cunhada como “doula”, a distância dos filhos menores, as fantasias de morte que rondam os que serão operados. Tudo isso em turbilhão. Na minha frente.

— Ok — disse eu. — Vamos ver seus exames. Quem a encaminhou para cá?

Peguei os exames e examinei-os com atenção enquanto ela me falava de um doutor desconhecido do interior do estado. Sua voz transmitia a tensão em que se encontravam todos. Exames normais, hemogramas, VSG, KTTP, plaquetas, raio-X de tórax, etc… O último exame foi, claro, a ecografia.

Quando a peguei na mão, vi, pelo tipo de impressão do exame, que fora realizada em um aparelho mais antigo ainda que o velho aparelho que tínhamos no hospital. Mostrava um cisto ovariano de 14 cm de diâmetro na sua maior extensão. Conve­nhamos, um belo cisto. Deve ser um adenoma mucinoso ovariano. Benigno, bem provável. Por outro lado, pode ser um adenocarcinoma de ovário, muito mais raro, mas na sua idade seria possível. A cirurgia, afinal, se justificava pelos achados ecográficos. Fiquei aliviado. Detesto quando frustro as pessoas nas suas expectativas. Como convencer as pessoas mais simples de que não operar é bem melhor? Muitas ve­zes, diante de uma negativa em operar, fiquei com certeza de que as pessoas achavam que eu estava com preguiça, ou simplesmente queria alguma compen­sação financeira “por fora”. Já escutei familiares de pacientes humildes, calçando chinelos de dedo, me dizendo (após receberem a notícia de que uma cirurgia não era necessária) que “se o problema é dinheiro, doutor, a gente dá um jeito”. Eu ficava com um nó na garganta. Olhei para a paciente e disse:

— Seus exames mostram um grande cisto. Acho que uma cirurgia seria necessá­ria, porque é importante sabermos que tipo de cisto é esse.

Eles pareceram aliviados.

— A senhora vai internar hoje mesmo, mas antes eu preciso fazer um exame clí­nico para saber mais detalhes do tum… digo, do cisto.

Aprendi nos primeiros anos como “aprendiz de feiticeiro” a nunca dizer “tumor” na frente de um paciente, mesmo que seja uma verruga. Nem mesmo se pudesse completar com “benigno”. Isso assusta demais as pessoas, e elas às vezes ficam aterrorizadas. Conheci muita gente do interior que jamais fala a palavra “câncer”; sempre diz “aquela doença”. Pedi que ela se erguesse e me acompanhasse à sala de exames. Era uma mulher alta e magra. Uma italiana fosfórica, em uma interpretação homeopática. Pergun­tei ao marido se ela havia emagrecido nos últimos tempos e ele foi enfático:

— Sim, doutor. Ela secou. Desde que descobriu esse problema, não come direito. Sente muitas dores na barriga. Tem uma bola que sobe e desce que quase vem à garganta. Pode ser o tal do cisto que aparece?

Expliquei que achava pouco provável, mas que o exame ginecológico me daria algumas informações extras.

Deitada na mesa de exames, a paciente parecia ainda mais esquálida. Melhor, pensei eu, assim fica fácil palpar o cisto. A cunhada estava junto na sala, como uma perfeita doula. Fiz o exame bidigital. Colo ok; vagina sem problemas. Abdô­men encovado. Girei a cabeça e olhei o ultrassom sobre a mesa. Não referia em qual anexo o cisto se encontrava, se no ovário esquerdo ou direito. Hmmm, onde está o danado? Mexi, revirei, apertei a barriga da pobre senhora.

Frustração. Nada. Não consegui palpar o cisto. Mas com 14 centímetros (bem mais de meio palmo), ele deveria ser visível no abdômen, quanto mais ser atingido pelo exame de toque. Pedi que se vestisse logo após ter examinado as mamas, que estavam normais. Voltamos à sala e eu expliquei à família que estava com dúvidas e que seria necessário fazer outra avaliação ecográfica.

— Outra? — exclamou ela, fazendo uma cara de decepção.

— Ela não gosta de ficar sem mi… sem fazer xixi. Diz que o exame é chato por causa disso — falou pela primeira vez a cunhada-abajur.

Reafirmei a necessidade do exame e ela concordou. Encaminhei-a à sala de eco­grafias e falei com meu colega Jefferson. Expliquei que não encontrara um cisto de 14 centímetros que estava descrito na ecografia que acompanhava a paciente. Ele me devolveu um sorriso e um xacomigo. Voltei para a minha sala deixando o trio aguardando o ultrassom. Fiquei pensando se minhas mãos eram incapazes de “ver” as coisas escondidas no lúgubre e es­curo interior das pelves. Estava também decepcionado.

Por volta de uma hora depois, o doutor Jefferson me liga e pede que venha até a sua sala.

— Ric. Olha só que enorme cisto você deixou de apalpar! — disse ele com um sorriso triunfante. — E lhe digo mais, não tem 14 centímetros de diâmetro: tem 17, absolutamente repletos de líquido. Impressionante!

Putz.. Olhando para baixo pude ver a minha própria cara estatelada no chão. Como posso ser tão incompetente? Como não percebi um enorme cisto desses? Burro, burro…

— Bem — disse eu. — Só me resta operar então. Vou solicitar a sala cirúrgica, e pedir que…

— Calma lá, meu jovem doutor — continuou meu colega. — Olhe bem para o cisto. Tente senti-lo aqui na ecografia. Apalpe-o, acaricie-o.

Passei os dedos pelo filme ecográfico. Isso apenas aumentava minha vergonha.

— Meu caro e apressado doutor — continuou Jefferson —, estou lhe mos­trando um enorme cisto de 17 centímetros de diâmetro, mas que não existe mais.

Minha face ficou ainda mais patética. Cirurgia astral? Magia? Olhei de novo o filme e vi o nome da minha paciente escrito nele, ao lado da data. Eu estava vendo o cisto, as medidas, as dimensões, as paredes, o nome correto de minha paciente e a data de hoje.

— Meu amigo, o nome desse cisto é “Vésica”. Já foram apresentados um ao ou­tro?

Meu mundo caiu. Desabei. Captei a mensagem, meu caríssimo guru radioultras­sônico. É por isso que ele disse que o cisto não mais existia. Meu Deus, como não percebi antes?

Vésica é o nome “chique” da bexiga. O médico do interior deixou minha paciente com a bexiga cheia para fazer o exame, o que é a conduta padrão em uma ultrassonografia, mas não se deu conta de que o “enorme cisto” que a paciente possuía nada mais era que uma bexiga cheia de urina! E por isso meu jocoso colega afir­mara que ele “não mais existia”. Foi esvaziado na toalete, logo após o exame. Olhei para cara do Jefferson e caí na gargalhada. Tudo estava explicado. Ele me deu um abraço e disse:

Na próxima vez, confie mais no seu taco. Quando você fez o exame, ela estava com a bexiga vazia e realmente tem um abdômen absolutamente normal. Quando eu fiz a ecografia aqui, fiquei intrigado com a ausência de lesão ovariana, mas, comparando com a realizada no interior, pude perceber qual foi a confusão do co­lega de lá. Incrível, não é?

Agora vinha a pior parte. Explicar para a paciente que ela não tinha nada cirúrgico, e que toda a angústia, o medo, a tensão, a viagem, a distância da família e o so­frimento físico, espiritual e emocional que passara foram ocasionados por um equívoco. Nunca houve nenhum cisto, e não seria necessário operar. Para minha surpresa, eles receberam minhas explicações com satisfação, nem sequer tocaram na ideia de culpar o ecografista do interior. Ela mesma me disse: “Vai ver que ele estava muito cansado e não percebeu direito, não é?”

Ok…Final feliz para uma história de um exame. Mas nunca mais me esqueci das possíveis angústias que os exames podem produzir. Quem sabe até um verda­deiro tumor poderia se criar pela força imagética de uma paciente impressionável. Quem pode afirmar que não? Não existem exames “não invasivos”; existem os que invadem menos, mas todos os exames, e seus possíveis resultados, podem produzir profundos estragos emo­cionais e levar um médico menos atento a realizar outro procedimento desneces­sário e até mesmo abrir o abdômen de uma paciente sem necessidade. Qualquer semelhança com as histórias de “embriões escondidos” não é mera coincidência.

*   *   *

Nadine me olhou com aquela cara de quem não engoliu tudo, mas que preferia ficar quieta a discutir com dois brigões empedernidos. Max, por sua vez, limitou-se a dizer Patu Saleh, erguendo o indicador para o alto, o que foi confundido pelo garçom com o pedido de outra cerveja. Ele não se importou com a confusão.

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Cuidado, “spoiler”!!!

“Festa de revelação”…
Balões azuis ou cor de rosa;
Recheio do bolo com “cor de menino” ou “cor de menina”;
Fumacinha colorida reveladora.
Céus…

Precisamos mesmo desse tipo de ritual?
Passamos por aqueles constrangedores chás de fraldas, onde a graça estava em maltratar a grávida, por festinhas mediadas por ultrassons recreativos e invasão da privacidade de bebês. Vale a pena? Não vou nem citar os riscos da realização abusiva destes exames, mas o que realmente ganhamos como sociedade ao revelar a magia, expondo o truque antes do coelho sair da cartola? Mas, a graça não está exatamente em não saber, em imaginar, em fantasiar? O desejo não se forma exatamente pela interdição, como o furo da meia – que excita por esconder?

Outra questão é o capitalismo aplicado aos ciclos vitais. Este ritual ganhou força quando começou a ficar claro que o abuso de ecografias não produzia nenhum benefício (cientificamente evidente) para mães e bebês. “Bem, mas se não produz efeitos médicos, quem sabe provamos que traz vantagens afetivas?” Assim, o comércio começou a vender a ideia de que o ultrassom era capaz de fortalecer a ligação entre as mães e seus bebê pela possibilidade de um contato mais intimo (visual) entre eles. Além de aumentar esse “bonding” – que jamais foi comprovado experimentalmente – essa nova tecnologia seria capaz de revelar o sexo do bebê, oportunizando uma comemoração extemporânea e a criação de um novo ritual, agora tecnologicamente mediado. Esse ritual acabou sendo explorado comercialmente mas também entrou como uma luva na sociedade contemporânea do espetáculo, onde qualquer evento – da formatura do jardim da infância ao fim do doutorado – merece um espetáculo grandioso e personalista.

Para mim, a questão central desse debate é simples: a intermediação do evento gestação pela tecnologia serve de auxílio para a relação familiar alargada (mãe, pai, avós, etc.) ou apenas expropria – mais uma vez – da mulher um evento que outrora era apenas controlado por ela, seus sentimentos, emoções e ritmos?

No fundo, a expropriação sutil que se faz sobre a gestação funciona assim mesmo: o bebê sai da barriga da mãe e entra para o ventre da máquina, para a cultura e para o controle dos médicos. As máquinas é que carregam este bebê, e não a mãe. Nesse aspecto homens e mulheres acabam se equiparando: a gestação já está fora de ambos, mediada pela frieza cientificista. Não dá para esquecer a entrevista que Robbie fala relatando a experiência com uma mãe que, hipnotizada pelos bips da máquina, diz a ela “parece que o bebê está ali dentro“.

Um exemplo simples para entender minha posição: o ritual do casamento ocidental é a mais poderosa de todas as cerimônias de fortalecimento e manutenção do patriarcado, Todo o simbolismo do evento é marcado pelos valores patriarcais mais básicos. O vestido branco, as testemunhas, o noivo esperando, o pai que entrega a filha para o seu próximo “dono” (ou cuidador, ou responsável), etc. Tudo ali é escrito – como uma peça de teatro que todos sabemos como termina – para reforçar estes valores, mesmo que de forma inconsciente. Aliás, a dissimulação dos rituais é sua maior força. Eles não precisam da razão para serem fortes e consistentes.

Pois muito bem…. não há nenhuma dúvida entre as pessoas que trabalham com rituais (de Van Gennep até Robbie) de que estes rituais carregam simbolismos os quais por sua vez produzem mudanças comportamentais em quem se submete a eles. Se você souber e for esclarecida sobre o que em verdade está sendo encenado em um matrimônio você mudaria sua maneira de casar?

Talvez não, mas é possível que sim, e por isso mesmo é crescente o número de pessoas que resolvem fazer “casamentos alternativos”, sem votos, sem roupas especiais, sem pais trazendo a noiva, sem a mediação de qualquer religião, etc… Isto é: mudam-se os rituais porque eles já não mais representam os VALORES SUBJACENTES daquele casal, mas poderia ser também daquela grávida. Pela mesma razão mudou-se paulatinamente o chá de fraldas – para chá de bênçãos – exatamente pela mesma razão: o entendimento dos valores subjacentes, e a ideia de NOVOS rituais para NOVAS consciências.

Os rituais das festas de revelação podem ser modificados se as pessoas entenderem ao que eles servem e o quanto eles expropriam das mães o controle sobre suas gestações, assim como a entrega deste poder aos médicos e à tecnologia pode ter significados deletérios para a relação que está para se formar.

Somos uma sociedade bizarra, onde achamos deseducado fazer um mísero comentário sobre um filme do cinema para alguém que ainda não o assistiu, mas achamos justo antecipar a mais grandiosa das surpresas. Qual o sentido em revelar o gênero de um bebê que aguarda o momento para, por si mesmo, nos anunciar? Qual a vantagem em contar o fim do filme quando ele está apenas começando?

Sei que sempre fui – e continuo sendo – a voz solitária no deserto da tecnocracia ao questionar estes modismos. Mas, pelo menos a mim foi dada a maravilhosa oportunidade de acompanhar partos em que houve respeito ao mistério e onde a revelação do segredo tão bem guardado se apresentou vívida e gloriosa diante de nós apenas no momento em que sempre ocorreu. Estes momentos de esplendor jamais esquecerei. Obrigado a todos que me permitiram viver a ansiedade da revelação corporificada no momento do nascimento.

Deixo as palavras do jornalista Chris Hedges sobre a importância do mistério e do sagrado para a sobrevivência de qualquer cultura.

“Aqueles que descreveram as sociedades nativas americanas ou de Delfos na Grécia antiga, não usaram a fria linguagem clínica da ciência e da razão. Eles as descreveram na linguagem nebulosa do amor, ternura, paciência, justiça, redenção e perdão. Eles foram fascinados pela misteriosa incongruência da existência humana. Uma sociedade que perde o respeito pelo sagrado, que ignora seus oráculos e separa o poder da imaginação humana, garante sua obliteração.”

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Aventuras tecnológicas

Eles copiaram até o nome que eu dei a este tipo de exame, mas de forma cínica. O preço a ser pago por essa aventura tecnológica ainda não foi totalmente avaliado. Mexer em valores e segredos tão ancestrais sem nenhuma vantagem médica pode ter consequências deletérias que nao foram ainda analisadas em profundidade.

Acho mesmo que a civilização ocidental ainda não se deu conta do que significa o afastamento do ser humano de sua essência mais íntima. Invadir o útero dessa forma, fazendo da gestação e do nascimento um espetáculo e uma diversão, retira desse evento o que carrega de misterioso, mágico e sagrado

A questão é que tais elementos são formativos do sujeito. Somos a soma dos desejos sobre nós projetados, e não o ultra-som despejado sem nossa autorização. Não há como encarar da mesma forma uma gestação assim banalizada e outra onde nossos elementos mais profundos, inconscientes e ancestrais são levados em conta e respeitados.

A banalização desses exames retira das mulheres a soberania sobre seus corpos, escravizando-as à tecnologia e gerando um ciclo de dependência sem fim. Romper essas amarras e libertar-se de tais grilhões é tarefa difícil, mas que se faz com apoio, informação, evidências científicas e reforço da autoestima.

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Chuviscos

Eu mesmo percebi isso há 25 anos.

Ninguém diz, porque é feio, mas ecografias e MAPs tem os mesmos objetivos simbólicos: oferecer ao médico um elemento “comprovável” e palpável da fragilidade na relação mãe-feto que justifique uma intervenção intempestiva. Em verdade essa – a intervenção – era a intenção do cuidador desde sempre, mas sabemos o quanto afeta o imaginário de uma mulher sufocada por seus medos os pontos chuviscados de uma ultrassonografia ou os aclives e declives dos traçados de uma monitorização. Depois de um comentário sobre “dips” ou sobre “percentil” qual mulher manteria a confiança e o sangue frio para seguir adiante nos seus planos?

Se é verdade que estes exames podem ser úteis em circunstâncias específicas, mais verdade ainda é de que seu uso se volta para a proteção dos profissionais e a moldagem do parto em um evento que precisa ser bom para quem o cuida e não para quem o faz acontecer.

São armas de convencimento e persuasão profundamente eficazes.

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Tipos de Ultrassom

O ultrassom é outra novela capitalista. Existem três tipos fundamentais: ultrassons médicos, sedativos e recreativos.

Os ultrassons MÉDICOS  possuem como característica “uma pergunta, uma resposta e uma ação“, sendo esta última diretamente ligada à resposta oferecida pelo exame. São exames raramente feitos, mas são os únicos justificáveis.

Os ultrassons SEDATIVOS são subproduto da indústria do medo. As pacientes durante o pré natal são tão danificadas emocionalmente pelo modelo médico que passam a desconfiar de sua capacidade de produzir bebês saudáveis. Por esta razão, precisam de um reforço visual, uma comprovação do bem-estar fetal pela via tecnológica. As lágrimas na sala de ecografia não são – via de regra – de alegria, mas de alívio.

Os ultrassons RECREATIVOS são para olhar, espiar, socializar o bebê e para descobrir seu gênero antes do nascimento. Hoje em dia são exigidos pelas famílias como um ritual tecnológico de apropriação e introdução social do “nascituro”. Uso essa palavra controversa de propósito, exatamente porque as ecografias contribuem para a noção contemporânea do “feto como sujeito”, que tanto estrago traz às mulheres, tanto no debate sobre o direito ao aborto quanto na ocorrência de uma perda gestacional. É sabido também que tanto este tipo de ultrassom quanto o “sedativo” são incapazes de produzir melhora nos resultados perinatais.

Em verdade, as ecografias na gravidez como método de RASTREIO (em mulheres com gestações saudáveis) não oferecem nenhuma vantagem para mães e bebês do ponto de vista do decréscimo da morbi-mortalidade materna, fetal e neonatal. São “brinquedos eletrônicos” que, na imensa maioria das vezes,  não  justificam – com resultados positivos – a quantidade enorme de recursos neles aplicados.

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