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Put the candle…. back!!

Em 1974 eu era um adolescente que gostava de cinema e de comédia. Fui ao cinema sozinho – o que eu costumava fazer naquela época – para assistir um filme sobre um famoso monstro da literatura, um sujeito formado por partes de distintos cadáveres costurados. Sim, eu não sabia que se tratava de uma comédia, e só no decorrer do filme me dei conta que não se tratava de um filme de terror, o que ocorreu já nos primeiros minutos, na cena da aula de neurologia. Esta surpresa deixou a experiência ainda mais interessante. O filme que fui assistir era “Jovem Frankenstein“, de Mel Brooks.

Numa época anterior à internet não havia muitas informações dos filmes, além do cartaz na frente do cinema e dos comentários nas colunas do jornal. Inicialmente acreditei se tratar de uma biografia ficcional do médico Victor Frankenstein quando jovem, e as razões pelas quais ele tentou recriar vida a partir de tecidos mortos. Eu não estava muito longe da verdade; a história era sobre Frederick “Fronkonstin“, neto do famoso médico, que foi instado a voltar ao castelo do avô para receber sua parte na herança. Esse neto – o genial Gene Wilder, cocriador do roteiro junto com Mel Brooks – renegava a memória do avô, a quem considerava um maluco sem qualquer credibilidade. Seu retorno à Transilvânia o faz reconhecer a veracidade e a correção dos estudos do seu antepassado. Estimulado pela descoberta, decide seguir seus passos e criar um novo monstro.

A história clássica, escrita há mais de 200 anos, está centrada no mito dos zumbis – ou a fantasia de recriar algo que, depois de morto, voltaria a viver. Ao contrário da criação dos zumbis, onde a feitiçaria ocorre por maldições, poções mágicas ou encantamentos, no romance do século XVIII a bruxaria se dá pela ciência, abusada e arrogante, que decide desrespeitar a “ordem natural das coisas”. O resultado só poderia ser uma monstruosidade. As múltiplas interpretações para a obra de Mary Wollstonecraft Shelley vão desde as relações de trabalho na Inglaterra no conturbado período da revolução industrial até os conflitos intrapsíquicos que insistem em manter vivas relações afetivas que há muito deveriam ter sido sepultadas.

A criação do romance se deu através de um desafio: contar uma história de terror durante uma noite chuvosa na casa do Lord Byron, onde também estava seu futuro marido Percy Bysshe Shelley. Pois foi em uma madrugada regada à vinho e com o barulho entorpecente da chuva como sinfonia que, em 16 de junho de 1816, Mary teve a ideia de contar a epopeia de um jovem estudante de medicina costurando membros que havia roubado de uma sepultura para fazer a carne morta retornar à vida. Desta forma, a garota de apenas 18 anos criou o clássico Frankenstein. A ideia virou um conto e depois, estimulada pelos amigos, tornou-se um romance cujo sucesso já ultrapassa dois séculos.

Certo, sem spoilers. Toda a trama do filme de Mel Brooks de 1974 é sobre a recriação do monstro. Entretanto, há razões para esta ser considerada o maior filme de maior comédia de todos os tempos. Os atores são incríveis: Gene Wilder, como Frederick; Clóris Leechman, como Frau Blücher (dá para escutar o relinchar dos cavalos ao pronunciar seu nome); Marty Feldman como Igor; Madeleine Kahn como Elizabeth e Peter Boyle como o monstro são espetaculares em suas performances, sem falar de Teri Garr, como a estonteante assistente Inga. E tem até uma pontinha do Gene Hackman como o cego que abriga o monstro. O roteiro é lindamente costurado, as gags são maravilhosas, as situações criadas no enredo são hilariantes.

O filme foi todo filmado em preto e branco, uma exigência de Gene Wilder para recriar a estética lúgubre do filme “noir” de Frankenstein com Bela Lugosi de 1943 (Frankenstein meets Wolfman). Essa característica adicionou um enorme impacto estético ao filme. Eu saí do cinema profundamente comovido, e fiquei com a música tema do filme durante anos na minha cabeça (um solo dolorido de violino composto especialmente para o filme pelo maestro John Morris). Infelizmente eu seria obrigado a esperar mais de 10 anos pela oportunidade de assistir novamente esta comédia. Nos anos 70 as únicas possibilidades de rever um filme eram passar de novo no cinema (improvável), uma apresentação com debate na faculdade (porque uma comédia, e não Godard?) ou assistir de madrugada no “Corujão” da Globo (raríssimas vezes o filme era um clássico). O vídeo cassete só se tornou viável no fim dos anos 80. Hoje em dia o filme está disponível a um simples clique do mouse.

Esta semana o clássico de Mel Brooks e Gene Wilder completou meio século de existência, e por isso resolvi contar a importância desse filme na minha juventude. Pedi que meus filhos vissem ainda pequenos, e eles adoraram. Mostrei aos meus netos há poucas semanas e eles também acharam muito engraçado, e por isso acho que se trata de um filme eterno. Ele continua engraçado transpondo gerações. Eu me sinto muito orgulhoso de apertar minha cara na porta de casa e ouvi-los dizendo:

“Put…. the candle…. BACK!!!”

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Utopias e Zumbis

Muitos se assombram que Geraldo Vandré tenha se tornado um reacionário na maturidade depois de ter embalado nossos sonhos de justiça e equidade com a trilha sonora da nossa adolescência ao compor “Prá não dizer que não falei das flores”. Essa música era cantada em onze de cada dez acampamentos onde houvesse um violão e a luz flamejante das utopias. Sim, e também garotas…

Eu não me assombro. Vandré tinha 30 anos quando sobreveio a ditadura e 33 anos quando sua música ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção em 1968. Era, na minha perspectiva de terceira idade, um garoto. Quando penso nele lembro muito bem dos amigos de juventude que hoje são reacionários – e muitos deles fanáticos bolsonaristas – mas que na juventude compartilhavam comigo sonhos à esquerda. As idéias dessas pessoas mudaram, ou sua postura revolucionária era tão somente uma máscara a esconder seus medos e angústias?

Fico com a segunda opção; jamais foram de esquerda ou socialistas. Eram inconformados, amedrontados, queriam derrubar “isso tudo que está aí” (como repetiram à exaustão os bolsonaristas também), mas não se conectavam com as bases que estruturam o socialismo. Eram rebeldes, mas não tinham a dureza da luta pela sobrevivência no seu horizonte próximo.

Há uma velha piada da direita que diz que “quem não foi comunista na juventude não tem coração; quem continua da maturidade não tem cérebro”. A piada serve para tentar explicar esse fenômeno: por que tantos abandonam seus sonhos, deixam a esquerda, atiram-se nos braços do conservadorismo e assumem uma posição cínica, utilitarista e desprovida de paixão?

Eu tenho uma perspectiva freudiana sobre o tema. Primeiro, a piada do “coração e o cérebro” é apenas isso: um chiste, uma troça, um gracejo que tenta explicar um fato através do humor – e o humor, ao meu ver, é sagrado. Todavia, essa piada não tem nenhum fundamento na realidade, e expressa o oposto do que se pode constatar cotidianamente. Quanto mais se estuda o capitalismo e suas contradições mais percebemos que a solução é “socialismo ou barbárie“, já que as promessas da Revolução Burguesa jamais foram cumpridas, liberando a classe proletária da exploração e oferecendo dignidade aos trabalhadores. Portanto, a presença do cérebro pode ser mais facilmente constatada naqueles que abraçam posições à esquerda do espectro político, e nunca o contrário.

Aliás, é daí que vem o mito de que as universidades são uma ameaça ao sistema, por serem “antros de esquerdistas”, exatamente porque onde se dissemina a luz do conhecimento, em especial das ciências sociais, mais se descortinam as realidades perversas do liberalismo e do Imperialismo, produzindo naturalmente um contraponto ao modelo social e econômico corrente. Ou seja: o cérebro nos leva à esquerda, não à direita.

Entretanto, o que cede insidiosamente durante a vida é o furor sexual da adolescência e da juventude. Assim como nossas juntas, também nossas paixões enferrujam, tornam-se rígidas, perdem movimento e amplitude. Somos, com o tempo, cooptados pelo sistema e pela necessidade de sobreviver – ou pela garantia de ilusórios privilégios – o que nos dificulta sonhar pelo bem comum. Acabamos nos tornando velhos ranzinzas, que jogam a culpa das mazelas do mundo nos políticos, na corrupção, no “comunismo”, nos vagabundos, etc, esquecendo a importância que o sistema injusto e opressivo ocupa na produção da realidade cotidiana.

Vandré e muitos dos meus amigos de infância, ex-esquerdistas, sofrem da fadiga dos metais, do abandono das utopias, do cansaço do desejo, da fraqueza das convicções e da senilidade de seus ideais juvenis. Mesmo entendendo a maturação de nossas propostas, vejo na desistência dessas motivações uma espécie de “morte ainda em vida”, algo que deve ter inspirado os cineastas a fazer tantos filmes sobre zumbis. Todavia, as utopias jamais morrem; como ervas daninhas elas se recolhem e retornam em solos mais jovens, cujo viço da paixão aduba as propostas de mudança.

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