Arquivo do mês: janeiro 2013

Brilhar ou Refletir

Minha mãe sempre dizia que as “palavras carregam energia”, mas Freud já dizia isso antes dela. As palavras desnudam nossos conceitos, que por sua vez modulam nossas atitudes. Quando, mesmo há muitos anos durante a residência, um colega me dizia que havia “feito cinco partos no último plantão” aquilo me informava de forma muito clara como era o específico olhar desse profissional sobre seu trabalho. Uma das questões mais delicadas sobre o ofício das doulas (mas também funciona sobre o trabalho de parteiras e médicos) se relaciona com o protagonismo dos profissionais no cenário do parto. Eu conheço muitas doulas que falam exatamente isso que foi dito aqui em cima: “minhas mãezinhas”, “minhas barrigas”, etc., e isso me parece uma necessidade (absolutamente humana, por certo) de ser protagonista do evento, junto com a mãe. Mesmo entendendo essa necessidade eu acredito que tais questões devem ser educadas e controladas em todos aqueles que trabalham com nascimento humano.

Max sempre me disse que “parteiros não devem ser os que brilham, mas os que refletem a luz”. Portanto concordo plenamente com a ideia de que precisamos nos educar para uma essencial humildade sobre nosso papel como cuidadores do parto. E gosto de pensar que quando brilhamos demais sempre é à custa de um desaparecimento da luz que emana de quem está parindo. Claro que muitas vezes o protagonismo dos profissionais é necessário, como no caso de uma medicação adequada ou uma cesariana salvadora. Entretanto, tal expropriação pode ocorrer de forma abusiva, como a alienação que brota de uma cesariana desnecessária e as consequências funestas que ela pode trazer para uma mulher que realmente deseja parir, mas também pode ser através de uma palavra mal colocada que, mesmo sutilmente, desloca a gestante do centro de nossas atenções, retirando dela a liberdade e o poder de tomar decisões.

Por parte dos profissionais de saúde ocorre uma intromissão (sempre bem intencionada, por certo) numa relação que apenas se inicia: a família que se forma em frente aos nossos olhos. Para além das questões relacionadas com a mãe, a construção da paternidade é ainda mais delicada do que a da maternidade, porque nossa (masculina) participação (ao contrário da materna) é dispensável e (portanto) frágil. Dessa forma, por nos faltar a materialidade visceral dessa ligação, ela precisa ser construída pelas palavras. Entretanto, muitas vezes os profissionais de saúde – que deveriam ser elementos facilitadores dessa ligação – funcionam como os principais obstáculos para a elaboração da conexão pai-filho. Se essa intromissão é ruim para a mulher, deslocada do centro das decisões, para o pai pode ter um efeito decisivo e dramático, que poderá se tornar o capítulo final de um afastamento que talvez nunca mais possa ser consertado. Nós, os profissionais da saúde, nos encontramos exatamente no vértice dessa encruzilhada, e temos a possibilidade de levar nossos clientes a uma experiência positiva de ligação afetiva. Todavia, nossas atitudes e nossas palavras podem se tornar desastrosas e produzir marcas profundas de afastamento.

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Momento Transformador

A civilização poderá usar esse momento triste e chocante como elemento transformador. Eu prefiro acreditar que a indignação gerada pela morte brutal e inaceitável de uma menina em Nova Delhi, na Índia, venha a se transformar no estopim de uma “revolução para o bem”. Para tanto, me parece importante deixar de lado os sentimentos de ódio e vingança, olhar para frente e tentar propor soluções em todos os níveis (educacional, jurídico, político, social, policial, etc.) para que ocorra uma verdadeira e profunda a mudança nos valores daquele povo. O linchamento dos criminosos pode até satisfazer algumas almas que se deliciam com o sentimento de revanche, aquelas que ainda acreditam na lei de Talião. Entretanto, o “olho-por-olho” não é capaz de construir a sociedade que desejamos. Mesmo que não pareça aceitável negligenciar a necessidade de uma justiça dura, severa e exemplar para este caso, por outro lado nossos olhos precisam se voltar para o amanhã, exatamente porque o caso dessa menina é apenas emblemático, e está longe de ser um “fato isolado”. Mais de 600 estupros já haviam sido denunciados naquela cidade só em 2012.

A morte desta estudante foi apenas mais uma na estatística de violências hediondas produzidas por uma sociedade anestesiada pela impunidade, e que acabou por banalizar tais crimes. Executar meia dúzia de perversos não será a cura para esta doença, a enfermidade do desrespeito com a mulher. Precisamos muito mais do que a simples vingança; é necessário entender as raízes da violência, do machismo, da impunidade e dos abusos de ordem sexual para poder combate-los e prevenir a ocorrência de novas tragédias como a que testemunhamos. Somente com um postura civilizatória e fraterna poderemos fazer desse triste episódio uma lição duradoura para a humanidade.

Sabem qual a sensação que me dá quando eu leio na internet as declarações anônimas de pessoas pedindo os mais diversificados e sofisticados tipos de linchamento contra os assassinos da menina de Nova Delhi? Eu fico com a sensação de que realmente Terêncio tinha razão: “O que é humano não me é estranho”. O sentimento de vingança e justiciamento cego que algumas pessoas colocam na Internet é tão feroz e insano quanto o próprio crime que testemunhamos. É claro, dirão; são apenas “desafogos”, desabafos indignados e não há a “passagem para o ato”. Entretanto, o que nos distancia dessa passagem? É possível que, ao avaliarmos a vida, a infância, as circunstâncias e o contexto desses criminosos poderemos perceber que o ato brutal e inaceitável que cometeram nada mais é do que um elo na cadeia de ações aviltantes de suas vidas. Poderemos perceber que o crime que cometeram é tão somente uma “vingança”, cometida contra uma vítima inocente. Entretanto a “vingança” está atrelada a um passado em que eles próprios também foram vitimizados por uma sociedade cruel e nefasta.

O crime cometido por eles não está tão distante como pensamos de nossa própria realidade. Talvez fôssemos nós a cometê-lo, se nos tivessem oferecido o contexto e as circunstâncias que a eles foram ofertados. Longe de desmerecer a necessária dureza nas sentenças, creio que uma humanidade mais justa precisa olhar para casos assim com uma compreensão que se afasta dos sentimentos mais rasteiros, olhando para o futuro e tentando prevenir outras ocorrências trágicas como essa.

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Ajuda?

Lembrei de uma história que eu acho muito emblemática dessa situação e que aconteceu no segundo parto de uma paciente minha que teve 3 filhos, sendo o último um parto em casa (que fez com que ela mudasse totalmente os planos para a sua vida, e decidisse ser doula e, agora, enfermeira obstétrica). Quando se encontrava nos momentos finais de seu segundo parto seu médico a colocou naquela conhecida posição de “litotomia” (também conhecida como posição de frango assado). Além disso, ele fazia coro com a sonorização mântrica habitual de “comandar” o parto, com gritos, frases feitas, etc…

– Força comprida, não para, não para. Prenda a respiração e empurre sem parar !!

O obstetra continuou assim por um bom tempo, enquanto a pequenina coroava lentamente, dentro do seu próprio tempo, apesar de prejudicada pela ambiência, os gritos e a posição desfavorável. Passados alguns poucos minutos ele resolveu escutar os batimentos cardíacos do bebê, o que é uma conduta adequada e baseada em evidências. Entretanto, provavelmente por causa da posição muito baixa de um bebê que já estava coroando, ele não conseguiu escutar os batimentos. Talvez – esta a hipótese mais provável – o coraçãozinho do bebê estivesse atrás do púbis e o meu colega, no afã de se acalmar com o som dos batimentos, não teve paciência para procurar com mais vagar. Diante da ausência de som tranquilizador brotando do sonar ele ficou apavorado, o que é muito comum entre os profissionais que, por formação, desconfiam das mulheres e dos mecanismos de parto, acreditando que toda a mulher é uma bomba relógio prestes a explodir. Com um bebê coroando e sem saber o que fazer, ele falou para a sua paciente, com a voz entrecortada de pânico:

– Bem, seu bebê tem que nascer, agora você vai precisar me ajudar…

Logo depois o bebê nasceu. É claro, um parto com “kit intervenção completo”: Kristeller, episiotomia, etc… O Apgar foi excelente, o bebê logo chorou e foi levado pelos pediatras. Tudo bem, como normalmente acontece, apesar das condutas equivocadas e/ou exageradas. Entretanto nunca esqueci o que minha paciente falou. A frase do seu obstetra é, para mim, emblemática da “couvade” da obstetrícia, a expropriação furiosa da medicina ocidental sobre o fenômeno do parto.

“Bem, seu bebê tem que nascer, agora você vai precisar me ajudar…”Como assim? Para parir uma mulher tem que “ajudar” o médico? Não seria o contrário, o médico ajudar a mulher, principalmente evitando gritos e procedimentos desnecessários e abusivos?  Mas, no mundo contemporâneo o parto não pertence mais às mulheres. O nascimento nos dias atuais é algo que médicos e hospitais fazem, e as mulheres são meras ajudantes. Pior ainda é o fato de elas serem consideradas como um “obstáculo” à boa condução de um procedimento médico, totalmente incapazes de favorecer um nascimento, de forma que ele ocorra com segurança e a “necessária” rapidez. Para transformar esse quadro, só se mudarmos a maneira como as mulheres enxergam a si mesmas.

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