Se é necessário jogar os velhos ídolos ao fogo na árdua tarefa de nós libertar de seu jugo sufocante, também creio ser fundamental fazê-lo de forma criteriosa.
Ainda considero válida a tese de que “as virtudes são do homem, os vícios de sua época”. Não há como criticar um personagem sem a necessária contextualização do sujeito no tempo e no espaço. Se não há “sujeito sem cultura, e cultura sem sujeito” então tudo o que somos surge dessa interação entre nossa subjetividade e o conjunto de valores que nos rodeiam no oceano de significantes e significados onde estamos submersos.
Por outro lado, o entendimento de figuras icônicas como sujeitos falíveis e limitados nos ajuda a humanizá-los. Tal tarefa é fundamental para que, assim identificados, possamos seguir seus ensinamentos com mais precisão. Enquanto forem divindades serão inatingíveis; ao nosso lado, passíveis de falhas e erros humanos, serão parceiros de travessia.
Entretanto, se posso perdoar a falta de amabilidade de Marx com seus filhos e seu caso extra conjugal, assim como as diatribes dos astros da TV ou do futebol, o mesmo não posso dizer de literatos cujas palavras escritas ferem preceitos básicos da civilidade e da dignidade humana. Por mais que sua genialidade transpareça e seja exaltada, e mesmo que as épocas sejam outras, a misoginia e o racismo de Fernando Pessoa ou Humberto de Campos são inaceitáveis e colocam a profundidade e dimensão de sua obra em questão. Se a imagem que fazem de negros e mulheres era tão diminutiva e preconceituosa, que outras falhas de percepção podem ser piores?
Perder um ídolo é como arrancar uma parte de si mesmo; felizmente uma porção de nós que ainda nos prendia às fantasias e idealizações mais infantis.