Uma estudante conta de alunas de obstetrícia que, ao escutarem sua professora explicando porque as episiotomias rotineiras são desnecessárias, exclamam: “mas é mais fácil cortar“. Sim, alunas de obstetrícia.
Mais importante do que se enfurecer ou indignar é tentar entender a motivação inconsciente que estas meninas tem para cortar. Como dizia a personagem médica que Simone Diniz uma vez mencionou: “Eu sei que não devo cortar, mas minha mão vai sozinha e corta”.
O que a médica estava se referindo não era um automatismo neurológico da sua mão, nem mesmo uma possessão demoníaca. Ela se referia ao fato de que as motivações para o corte no períneo não eram CONSCIENTEMENTE determinadas. Sua RAZÃO dizia algo e seu desejo dizia outra coisa. A médica apenas descrevia – de forma curiosa e didática – o conflito entre razão e desejo.
A grande força das intervenções médicas se estabelece exatamente porque elas NÃO SÃO conscientemente determinadas, mas geradas nos estratos inferiores da mente, lá onde moram os nossos medos e os desejos inconfessos.
Ao dizerem “melhor cortar” as alunas apenas estavam sorvendo alguns goles do rio que flui sobre nossas cabeças chamado “campo simbólico”, que a todos afeta em maior ou menor grau. O que elas dizem com sua “vontade de cortar” é que parece muito mais fácil “fazer algo” ao invés de esperar que a mulher ajude a si mesma. Afinal, seus corpos frágeis, incompletos e defectivos demandam de nós ações objetivas para solucionar os dilemas do parto, obra de uma natureza madrasta, cruel e insensata.
Uma episiotomia é um corte simbólico; rasga a carne para atingir a alma. Seu sentido é mostrar o lugar da mulher no mundo: passível, imóvel e alienada do que ocorre ao redor. Por fim a lâmina fria lhe confirma: “Só parirás se for por mim. Eu sou o único caminho à verdade e à vida”.
Em função dessa carga histórica e ideológica, mais do que explicar conscientemente a inutilidade e os malefícios das episiotomias rotineiras (e de outras intervenções sem respaldo científico) é fundamental ensinar a beleza da fisiologia feminina, o processo milenar de aperfeiçoamento dos mecanismos de parto, sua adaptação paulatina à bipedalidade, à encefalização e à consequente fetação e deixar claro aos estudantes que NENHUM recurso tecnológico é capaz de tornar o parto normal mais seguro, e que as intervenções sobre o processo de parto só tem sentido do quando utilizadas em processo patológicos, cuja única finalidade é garantir segurança ao binômio mãe-bebê diante dos desvios da fisiologia.
O bom senso diante das intervenções e a orientação diante dos seus riscos deve ser acompanhada de um processo pedagógico intenso sobre a fisiologia feminina. O inimigo é o desprezo pela mulher e suas especificidades, que herdamos dos tempos mais sombrios do patriarcado.
Se as mulheres já conquistaram uma alma imortal resta-lhes conquistar um corpo digno e que seja respeitado pela medicina.
Talvez Carl Rogers tenha mesmo razão em sua frase, que eu sempre vi como perfeita para a medicina: “Perdemos um tempo precioso com treinamento que seria mais bem utilizado em seleção”. De NADA adianta treinarmos médicos e enfermeiras para a atenção ao parto se forem incapazes de sentir o parto e se apaixonarem por esse momento.
Por essa razão os médicos – via de regra – são parteiros sofríveis (para dizer o mínimo); eles foram selecionados em um vestibular pela suas capacidades com geografia, trigonometria e física, e não pela sua capacidade empática. Para piorar eles frequentam uma faculdade de medicina que os empurra para as intervenções – com drogas, cirurgias e palavras – desde os primeiros minutos da faculdade, ao sentirem o formol no nariz durante as aulas de anatomia.
Estamos selecionando de forma errada. Passei toda a minha vida de parteiro escutando o desprezo dos médicos pela arte de partejar. Como pode ser possível que, com todos os dados e estudos que temos das experiências do mundo inteiro, ainda apostamos na intervenção médica como atenção primária ao parto? Pela sua abrangência e capacidade destrutiva, a atenção médica ao parto eutócico é um dos maiores equívocos da história humana no que diz respeito à saúde e ao bem-estar.
Como pedir para estes meninos e meninas que acreditem nas mulheres se todo o seu ensino é focado na patologia e nas formas de intervir? E não apenas na obstetrícia, mas também como solicitar que neonatologistas acreditem nos mecanismos adaptativos dos bebês se todo seu ensino é baseado em catástrofes? Como exigir dos profissionais que “peguem leve” se toda a importância social que eles ganham está relacionada às intervenções?
Muitos médicos recebem prêmios e honrarias por terem salvado vidas, mas quantos recebem elogios manterem vidas a salvo através de uma atitude não violenta?