Algumas perguntas aos espíritas e pessoas de religiões de matriz africanas:
Li o parágrafo de um livro que criticava o impedimento de que espíritos de pretos velhos se manifestassem em casas espíritas. Sei onde isso pode levar.
O espiritismo é uma doutrina de caráter filosófico e de consequências morais. Ao meu ver não é uma religião, mas reconheço a controvérsia. No dizer de Kardec, seu criador, ela é um acessório das religiões, e não mais uma delas. Kardec era cristão, filósofo e pedagogo. Pior: era branco e burguês, o que pode explicar a presença em sua obra – de meados do século XIX – de expressões do mais puro e cristalino racismo. Certo que fora do contexto expansionista e colonialista europeu seus escritos soam como barbaramente discriminatórios. Fica a ressalva dos contextos históricos e circunstanciais.
De qualquer forma, o espiritismo e as religiões de matriz africana (Umbanda, Candomblé, Nação, Quimbanda, etc) compartilham a ideia da comunicabilidade entre planos físico e extrafísico, a “mediunidade”. Mas as divisões de castas brasileiras fizeram com que o fenômeno “branco e europeu” ficasse com Kardec, um intelectual francês, e a manifestação popular ficasse com os negros e os referenciais relacionados com sua origem.
O sincretismo religioso fez com que a Umbanda surgisse aproveitando dos símbolos e rituais do cristianismo hegemônico e misturando-os com a cultura de África, criando uma riquíssima manifestação religiosa miscigenada e valiosa da cultura nacional. O espiritismo, por seu turno, se manteve mais fiel aos seus propósitos racionalistas e apontando para as elites. Apesar da umbanda ser muito mais católica do que espírita em sua exterioridade, o mediunismo se expressa em uma típica divisão de classes, cabendo à branquesia as manifestações mais “civilizadas” e à negritude o fenômeno mais popular. A religião mimetiza a divisão da Casa Grande e Senzala.
Talvez possamos dizer que o Zé Arigó, médium famoso dos anos 70, só se tornou famoso porque incorporava um médico alemão – Dr Fritz. Fosse um caboclo curador e operador a lhe usar como “mula” e ninguém lhe daria importância.
Entretanto, a crítica a um pretenso impedimento de “manifestações” de pretos velhos me incomodou, em especial por uma crítica que faço ao mediunismo gratuito.
Então eu pergunto, sem que nessa pergunta exista qualquer aversão ou preconceito: por que deveríamos dar voz a pretos velhos, ciganos ou outras pessoas falecidas em casas de Umbanda ou Casas Espíritas? Pelo contato e pela evidência do fenômeno? Se é pelos “ensinamentos” por que não chamar o preto velho que mora na esquina para vir falar de sua experiência na terra, suas lutas, suas dores, seus amores e angústias? O que há de especial no seus ensinamentos que se tornam valiosos só porque morreu? Dizer “ame o seu próximo”, “valorize cada minuto de sua vida” ou “cultive a caridade” passam a ter mais valor quando ditos por pessoas mortas?
Qual o real sentido do mediunismo? Receber conselhos clichês que a gente pode facilmente escutar numa mesa de bar dito por um garçom compassivo? Qual o real valor de produzir tais fenômenos? Em quê eles podem ajudar a nós ou aos desencarnados? A simples expressão retorcida de suas falas é – por si só – terapêutica para quem fala ou escuta? Que angústia seria essa que nos leva a procurar pretos velhos para oferecer direção e sentido à nossa vida? O mesmo que nos faz ler o horóscopo, procurar o padre ou consultar a cartomante?
Se a crítica do texto é sobre um pretenso “racismo” na escolha dos consultores, então eu me associo. Se for uma crítica à nossa busca por conselheiros que nos digam apenas o que queremos ouvir, também. Entretanto, se for um estímulo ao mediunismo alienante, onde uma instância “mais próxima de Deus” toma decisões por nós, então estou fora.
Deixem os pretos velhos em paz.