
Quando meu filho tinha por volta de 7 anos conheceu o universo dos “jogos de computador”. Eu, que vivi o apogeu do fliperama, nunca consegui ser influenciado por estes jogos – estava velho demais para ser contaminado – mas meu filho por alguns anos jogou jogos de guerra em “primeira pessoa”, onde você incorporava um soldado que enfrentava inimigos em campos de batalha.
Eu não gostava de jogar, mas adorava assisti-lo jogando. Porém, não me furtava de fazer alguns comentários. O pitaco mais comum – e que virou piada interna – era reclamar das matanças. Eu lhe dizia: “Olha, você matou vários soldados inimigos!! Você acha que eles não tem família? Acha que eles não têm mulher e filhos? Acha que eles não tem uma casa para voltar quando você desliga o computador?”. Ele me explicava que eles não eram pessoas de verdade, e eram apenas as dificuldades que o jogo colocava para a gente chegar até o “chefão” e vencer o jogo.
Fiquei feliz ao saber que, anos mais tarde, a minha piada sobre os “capangas” (que continha uma crítica à desumanização) um dia apareceu em uma comédia dos irmãos Zucker. Na verdade, estes jogos expõem, de forma dissimulada, uma face bem cruel da nossa sociedade – mas absolutamente verdadeira. Existem aqueles que merecem a condição de protagonistas e existem os que apenas podem ser figurantes. Estes últimos são desumanizados, não contam, suas mortes não precisam ser lamentadas e são apenas o suporte para que os protagonistas possam brilhar.
Quando vi ontem os jornalistas europeus dizendo que a guerra na Ucrânia era diferente porque “os refugiados são brancos e loiros e usam carros como nós”, eu percebi que a sociedade europeia continua a se considerar protagonista do planeta, e a periferia (em especial os “escurinhos do Magreb”, os negros africanos, os habitantes da Indochina e os “cucarachas” do Brasil) são como os capangas, cujo sofrimento e morte não contam porque ocorrem nos corpos dos figurantes no grande jogo do planeta. Nosso mundo continua dividido entre aqueles cujas mortes contam e osv”outros”, para quem sua morte não faz nenhuma diferença.
Mesmo passados muitas décadas desde o fim do colonialismo europeu em África e Oceania, somos ainda como os colonizadores da Austrália que, durante a ocupação inglesa no país, dizimavam populações nativas inteiras, dando gargalhadas com a desorientação de aborígenes que jamais haviam visto uma arma de fogo.
A fala emocionada dos jornalistas também me lembra os clipes carregados de emoção que mostram soldados americanos voltando do front da Ásia central ou oriente médio, fazendo surpresa para mães, companheiras e filhos. Depois de destruir as famílias de cucarachas no outro lado do mundo eles voltam felizes e emocionados para abraçar os seus, todos lindos, limpos e loiros. As mortes que causaram nos “outros” são irrelevantes diante da felicidade do reencontro.
Essa é a face mais cruel do imperialismo, e por isso deve ser combatido se desejamos um mundo com equidade e justiça para todos os povos