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Visitar o Passado

O mestre Rubem Alves nos propõe a seguinte reflexão:

“Se você amou muito um lugar não faça a besteira de visitá-lo. Isso porque você vai pensando que encontrará o tempo daquele lugar, mas o tempo não estará mais lá. É melhor você ficar com a antiga imagem na sua cabeça…”

O mesmo vale para as coisas que te emocionaram ou te fizeram rir na infância. Eu, por exemplo, nunca assisto “Três Patetas” por essa mesma lógica. As piadas são as mesmas, mas eu mudei; não sou mais a criança que rolava de rir das palhaçadas que eles faziam. Tenho medo de que a minha incursão às piadas do passado desfaçam a mística que eu nutro pela alegria simples dessa época. E não é sequer necessário se reportar aos programas em P&B dos anos 40; até “Os Trapalhões” não teriam hoje o mesmo impacto dos anos 80 – e talvez fossem cancelados, assim como seria o “humor de bullying” dos Três Patetas.

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O tempo é um juiz severo, por vezes cruel, e somente os gênios vencem a barreira dos anos; estes a gente conta nos dedos das mãos. Grace Kelly seria linda ainda hoje, Marylin Monroe(*) não. Beethoven, Bach, Vivaldi, Pixinguinha e Chico ultrapassaram décadas, enquanto a maioria dos músicos de sucesso de hoje serão esquecidos em alguns pouco anos.

Acredito ser possível visitar os lugares que amamos outrora, mas apenas se tivermos plena consciência de que eles se mantiveram parados – num prédio, num filme, numa música, numa piada – mas nós, e o mundo que nos cerca, continuamos seguindo em frente. Se é verdade, como dizia Heráclito de Éfeso, que “é impossível cruzar duas vezes o mesmo rio”, também é justo dizer que não vamos nos emocionar duas vezes com o mesmo filme, lugar ou música, pois que se eles ainda são iguais, nós já não somos mais os mesmos.

Tenho uma amiga que foi abandonada pela mãe no parto. Esta mãe era muito jovem, bonita e ambiciosa, mas sua filha nasceu prematura e com graves problemas de saúde. Deixou a filha ainda no hospital, aos cuidados do pai, e voltou ao seu país de origem. Esta criança cresceu sob os cuidados do pai e da madrasta, que a adotou com poucos meses de vida. Sempre carregou a imagem da mãe linda e frágil que a abandonou por ser imatura demais para as responsabilidades da maternidade.

Passados mais de 30 anos decidiu-se por conhecê-la. Juntou o marido e os filhos e rumou ao encontro da mãe biológica, uma senhora que morava em um continente distante e que formou outra família, já com filhos e netos. Infelizmente para minha amiga esta visita foi o momento mais destrutivo de sua vida. A imagem de mãe que acalentara por tantos anos foi totalmente despedaçada pela mãe real, e desse trauma ela jamais se recuperou totalmente. Conhecer sua mãe verdadeira, para além das idealizações, foi um choque profundo demais, talvez porque ela não estava preparada para entender que o mundo de todos havia andado, seguido o fluxo dos tempos, enquanto sua imagem materna permanecera estática por mais de três décadas.

Se queres mesmo penetrar em seu passado deixe todas as ilusões de fora; não espere encontrar lá algo que tenha para si agora o mesmo valor de então.

(*) De maneira alguma eu acredito que Marylin Monroe seja “feia”. Aliás, quem chamasse Marylin de feia deveria ser preso – ou internado. Todavia, essa Marylin de formas rechonchudas nos dias de hoje não seria Miss nem da escola secundária. Ela está fora dos padrões de beleza de agora. Sua beleza teria valor nos anos 50, mas hoje seria desvalorizada. Mulheres como Marylin nos dias atuais estão fazendo dieta e tratamentos caros para celulite. Não existe aqui um julgamento de mérito; apenas pontuo que os padrões de beleza são mutantes, e nos padrões contemporâneos ela não se encaixaria.

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Diários de Motocicleta

Eu usei a metáfora dos “Diários de Motocicleta” há uns 13 anos ao fazer a abertura do Congresso de Ecologia do Nascimento no Rio, representando a ReHuNa – Rede pela Humanização Do Parto e Nascimento. Numa cena deste filme o jovem médico – e asmático – Che (Guevara) precisa atravessar um rio gelado para atender os pacientes que precisavam de sua atenção do outro lado da margem. Movido por um impulso imperioso de dever e compromisso ético ele se arroja à corrente de água fria que retesa seu corpo e o sufoca, mas ao final vence a distância gelada com bravura e estoicismo. Os doentes precisavam dele; era sua obrigação servi-los.

Mais de uma década nos separa desta imagem de dedicação heroica aos pacientes, mas ela ainda continua fazendo sentido. Continuamos asmáticos e frágeis, mas do outro lado o número daqueles que procuram por nós só cresceu, expandiu-se para muito além do que esperávamos. Apesar das dores e da falta de ar continuamos nossas braçadas com vigor e resistência. O rio continua gelado e tormentoso, nossos braços aos poucos perdem o vigor da juventude, mas nossa teimosia humanista nos obriga a seguir.

Entretanto quando olhamos para o lado algo surpreendente ocorreu.

Não estamos mais nadando sozinhos.

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