Arquivo da tag: autoimagem

Autoimagem

Quem já não escutou essa manifestação, carregada de arrogância e autoconfiança?

“Eu me conheço. Sei muito bem quem sou.”

Em verdade, somos as piores pessoas possíveis para avaliar em profundidade quem realmente somos. Por sermos uma construção do olhar alheio, a estrutura mais profunda da nossa alma é invisível ao olhar que lhe dirigimos. Só quem nos percebe de fora percebe o tanto que a nós é interdito. Como medida de proteção somos excessivamente condescendentes com nossas falhas, e nos tornamos propícios a exagerar pequenas conquistas que obtemos. Aliás, aqui se encontra um velho truque dos médicos antigos e perspicazes: se quiser saber da intimidade de um paciente, suas emoções mais recônditos e seus prazeres mais mórbidos, jamais peça que fale de si mesmo; tal descrição é inútil e redundante. Ao invés disso, peça que fale com minúcias dos seus desafetos; na projeção que joga sobre eles aparecerão de forma clara e reluzente as mazelas que, em segredo, carrega.”

Edmond Carriére, “Les frontières de la connaissance” (As fronteiras do Conhecimento) Ed. Printemps, pág 135

Edmond Carriére é um psicanalista francês nascido em Rheims em 1942. Foi aluno dos seminários de Jacques Lacan em Paris e seguidor fiel de suas ideias. Em 1970 criou o Instituto Freudiano de Calais, cuja inauguração contou com a presença da pediatra e psicanalista francesa Françoise Dolto que fez uma palestra sobre a educação infantil na perspectiva da psicanálise. Escreveu várias obras na área da psicanálise, mas também da ficção, sendo sua obra ficcional mais conhecida o romance “Sob a Tormenta da Martinica”, onde descreve a vida de uma pequena aldeia próxima a Fort de France quando da passagem do Grande Furacão de 1780, tratado pelo historiadores e climatologistas como o mais mortífero furacão já registrado no Atlântico, assim como o ciclone tropical com mais fatalidades do Hemisfério Ocidental. É estimado que 22 mil pessoas tenham perecido nas Pequenas Antilhas por ocasião da grande tempestade ocorrida de 10 a 16 de outubro. A história do livro está centrada em Heléne Césaire e seus dois filhos, suas dificuldades como jovem mãe viúva, a pobreza, o vazio de esperanças e a chegada da tormenta assassina. Sua luta para encontrar os filhos perdidos durante a fuga desesperada foi retratada no filme homônimo dirigido por Michel Dufour com Michelle Duprat no papel de Heléne e Jean Maurais como o Capitão Rosine. Na área da psicanálise, além de “Les Frontières de la Connaissance” escreveu muitos artigos na “Revue du Psychanalyse” e sua obra sobre o transtorno obsessivo “Quand beaucoup est encore peu” (Quando o muito ainda é pouco – sem versão para o portugues). Edmond Carriére mora em Nice , é casado com Marie Carriére e tem três filhos, Michel, Paul e Fabrice.

Deixe um comentário

Arquivado em Citações

Mister Bento e João Gilberto

Depois que o Mister Bento teve seu xaveco revelado nas redes sociais ele veio a público fazer uma declaração onde se diz arrependido e pede “desculpas” por seu erro. “Afinal, errar é humano”, disse ele.

Diante desse singelo pedido de escusas, eu pergunto: desculpas pelo quê e para quem? Pelo que vi da conversa ele foi respeitoso, não baixou o nível, não agrediu e não atacou a moça. Foi, talvez, um pouco insistente, mas nada além do jogo de vai-e-vem da conquista. Se a moça tivesse achado que a conversa era abusiva não o teria chamado de “querido” e teria deixado de responder. Não, apenas deixou claro para o rapaz que ele “não era seu tipo”. Aliás, uma conversa que provavelmente acontece todas as noites em milhões de danceterias espalhadas pelo mundo onde se pratica o jogo da sedução.

O que chama a atenção na conversa não é nenhum “erro”, mas o discurso que desvela uma auto estima espetacularmente alta, ilimitada, de alguém que toma a negativa da menina como algo inconcebível. Ele me lembrou imediatamente Gastón, o personagem musculoso de “A Bela e a Fera”, que não conseguia acreditar que a pequena Belle não se deixasse encantar pelos atributos físicos do homem “mais lindo da aldeia”.

Mas… por que pedir desculpas por mostrar-se como verdadeiramente é, despido das capas sociais de ocultação? Por que deveria pedir perdão por dizer o quanto se acha lindo, maravilhoso, belo e talentoso? Por que deveria se desculpar pela desabrida imodéstia? Se essa demonstração de vaidade pode ser desagradável aos nossos sentidos, certamente não é ofensiva ou violenta. Por qual razão deveria ele, então, pedir perdão?

Perdão pelo xaveco? Pela cantada? Pelo convite para saírem? Perdão por “se achar”? Por mostrar sua “nudez” emocional na intimidade de uma conversa? Pela autoimagem exaltada e magnificada?

Não faz sentido para mim. Não há o que se desculpar.

Isso me lembrou uma velha piada atribuída ao genial João Gilberto.

O já famoso João Gilberto recebe antes do seu show um jovem aflito em seu camarim. Diz o jovem bastante nervoso ao cantor:

– Preciso de um favor seu. Estou com uma garota que há anos tento conquistar. Descobri que ela é sua fã e consegui comprar ingressos para uma mesa bem próxima do palco. Se você viesse me cumprimentar depois do show acho que isso a impressionaria. Meu nome é Ricardo. Poderia me ajudar?

João Gilberto sorriu ao entender o plano do rapaz. Sabia ele que ser íntimo de um cantor famoso deveria garantir muitos pontos na luta para conquistar uma mulher. Concordou com sua ideia e se despediram.

Terminado o show, seguido de efusivos aplausos, lembrou da promessa e se dirigiu à mesa onde Ricardo estava com a vistosa loira de decote hipnótico e generoso. Acercou-se de ambos e com um sorriso cumprimentou o “amigo”.

– Então Ricardo, que bom que você veio. E pelo visto trouxe uma linda jovem.

Ao ouvir as palavras do pai da Bossa Nova, Ricardo franziu o venho e disparou:

– Não posso conversar não, João. Depois falamos. Agora estou conversando com a Rita.

Moral da história: ser amigo de João Gilberto pode lhe dar pontos, mas esnobá-lo quebra a banca.

Da mesma forma, receber uma cantada do “homem mais lindo do Rio Grande“, pode inflar seu ego, mas esnobá-lo e expor sua vaidade a todos, tornando pública uma conversa privada e exibindo a intimidade de uma conversa (mesmo com o risco de humilhar alguém que não lhe fez mal algum) pode lhe jogar às alturas. Melhor ainda: ninguém vai questionar a ética dessa atitude, pois todos ficarão focados na auto estima gigantesca do Mister Bento, tanto quanto Ricardo e João ficaram hipnotizados pelo decote de Rita.

Quem deveria pedir desculpas?

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Mentiras

Tenho uma indisfarçável inveja das pessoas que reconhecem em si tantas virtudes. Falam com genuína honestidade sobre suas ações justas, sua força, sua persistência e a nobreza de suas ações. Percebem, em si mesmas, a coragem e a humildade que norteiam seus princípios. Eu, sinceramente, me identifico muito mais com os fracos, os bêbados, os estúpidos e os ignorantes. Percebo em cada uma de minhas atitudes o mais vil dos interesses, mesmo quando travestidos de grandioso despojamento. Consigo enxergar nas minhas ações a fagulha egoística que me motiva, mesmo quando pareço estar oferecendo graciosamente ao mundo um pedaço de minha pretensa sabedoria. Vejo, em tudo o que faço, a sordidez egoística e mesquinha, a volúpia do orgulho insano e a vaidade desmedida.

Tudo em mim é mentira. O que me anima é esse amor gigantesco que tenho por mim mesmo, pelos meus prazeres e gozos. O que me move é o desejo de obter todas as vantagens possíveis, as quais guardo como troféus, preciosidades que se esfarelam a cada vez que as toco. Não seria possível enganar indefinidamente, mesmo com tal pureza de fachada, com tanta sujeira que me sai por cada poro, cada palavra, cada sílaba e cada silêncio cúmplice. Também não culpo a ninguém pela miséria de minhas ações; as porcarias – que são minha carne e que escapam pela minha voz – são todas minhas; são o único valor que carrego e a parte que me cabe levar desta vida.

Andrew D. Manning, “Angel of Mine”, ed. Prado-Bell, pag 135

Andrew Dewey Manning foi poeta, ensaísta, escritor. Nascido em Chalkville, Alabama, em 1937, cursou seus estudos primários em Grayson Valley. Fez apenas os estudos iniciais, tendo sido autodidata. Escreveu 5 livros de poesia e sua grande obra, o romance “Angel of Mine”, onde aborda o racismo do sul dos Estados Unidos na época do Jim Crow. Foi reconhecido como um dos precursores dos movimentos antirracistas. Morreu em 1987 vítima de câncer no fígado. Deixou a mulher Ethel e os filhos Jeremy e Andrew Jr.

Deixe um comentário

Arquivado em Contos

Discursos femininos

mulher-gordinha

O discurso das mulheres diante de desafios como “peitos pequenos”, “bunda grande”, “excesso de peso”, ou “cabelo ruim” sempre foi incompreensível e paradoxal para mim, e me remete à construção de uma auto imagem baseada no olhar do outro e sobre uma estrutura psíquica narcísica.

Por isso é que qualquer discurso construído pelas mulheres para reagir a estas “problemas” é considerado por mim como heroico.

  • Eu uso silicone porque é importante para minha autoestima, e o importante é eu me sentir bem e não o que os outros pensam.
  • Eu não coloco silicone porque não tenho que dar satisfação de como sou aos outros. Eles que me aguentem.
  • O importante é a beleza interna. O externo é efêmero e enganoso aos olhos.
  • Sim, eu gasto 500 reais num tratamento para o cabelo porque eu mereço.
  • Quero alguém que me valorize pelo que eu sou e não pelo que eu aparento.
  • Sim, fiz redução de mamas porque eu quero me amar mais.

Como entender tantas vozes aparentemente paradoxais? A moça das mamas pequenas que as exibe despudoradamente não tem menos coerência em seu discurso do que aquela que coloca próteses para se sentir mais bonita “consigo mesma”

É exatamente por estes aparentes conflitos do que significa ser e estar mulher que as percebo tão fascinantes e misteriosas.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos