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Vida e Arte

Claro que é possível separá-las, e assim o fazemos cotidianamente, basta ver a forma distinta como nós analisamos as falhas e defeitos de nossos ídolos. Nossa indignação é seletiva; não é justa, isenta ou desprovida de paixões.

Criamos uma enorme celeuma com o caso Pelé-Sandra, e o simples fato de ter sido tão explorado deveria nos ensinar algo. Por outro lado, também há mulheres e homens que realizaram grandes obras em favor da humanidade cujas vidas privadas foram repletas de problemas éticos extremamente graves. Nossa capacidade de exaltar alguns defeitos e esquecer outros nos mostra que, para o nosso juízo, mais importante que o delito é o sujeito que o comete, e isso expõe o quanto estes problemas alheios se relacionam com as nossas questões pessoais. Ao mesmo tempo que vejo justiceiros atacando o Rei do Futebol nunca vi ninguém atacando a memória de Simone de Beauvoir – ícone feminista – por suas ligações com a pedofilia e outras práticas condenáveis (como seduzir suas alunas). Também nunca vi alguém cancelando Marie Curie – grande mulher cientista – pelo caso amoroso que teve, já viúva, com seu auxiliar de laboratório, homem mais jovem e casado, fato que levou à dissolução do seu casamento. Apesar de ser muito maltratada pela sociedade parisiense em sua época, este fato hoje em dia é quase desconhecido, eclipsado pelos seus dois prêmios Nobel em duas áreas distintas. Também não vejo ataques sistemáticos a Rachel de Queiroz por ter sido uma árdua defensora da ditadura militar que massacrou o Brasil por duas décadas. Leiam sobre o genial poeta Pablo Neruda e vejam como foi sua terrível relação com a parentalidade.

Poderia passar horas citando outros personagens cujos erros receberam um claro perdão, comparando esse tratamento com as fogueiras montadas para outros, cujos crimes foram iguais ou até de menor importância e consequência. Assim, parece claro que oferecemos o benefício do esquecimento aos erros de alguns, enquanto tentamos nos lembrar diariamente dos defeitos de outros.

E vejam: tenho convicção de que os erros dessas personagens são do seu tempo, falhas humanas, e isso não diminui a importância e o valor de suas obras para a sociologia, a ciência e a literatura, produções essenciais para toda a humanidade.

E porque fazemos essa análise enviesada, com pesos e medidas diferentes para delitos semelhantes?

Agimos assim porque alguns “defeitos” observados nos outros não são suportáveis, e alguns são mesmo inconfessáveis. Por exemplo: ser um Deus negro em um país que nunca cortou plenamente os laços com o racismo. Também o crime de ser homem numa sociedade pós moderna que condena a masculinidade, tratando-a como “tóxica”, e que julga com estrema severidade um ídolo por não amar sua filha da forma como nós exigimos que esse amor se estabeleça.

Sabemos que o capitalismo e sua estrutura de classes precisa de um exército de homens que se submetam docilmente a um sistema injusto e abusivo. Por esta razão, causa desconforto vermos um homem negro ser a figura mais emblemática do povo brasileiro. Isso fere nossas aspirações de “nação branca” e escancara nossa origem mestiça.

Pelé cometeu erros humanos, mas que tocam na ferida exposta de muitas pessoas em sua relação com a figura paterna. Por isso, pela projeção que fazem da relação de Pelé com esta filha, colocam Pelé como o “paradigma do pai ausente”, nem que para isso precisem comprar uma história maniqueísta, cheia de furos e lapsos, demonizando o jogador e colocando sua filha e genro num pedestal. Toda narrativa assim construida tem como objetivo moldar a história para criar vilões e mocinhos, sem contradições, sem nuances, sem complexidades, apenas o confronto entre o “bem” e o “mal”, a vítima e o algoz.

Aceitar a falibilidade humana – o que inclui a história dos nossos heróis – é importante para humanizar tais personagens. Além disso, fazer linchamento morais de alguns e passar pano para outros apenas demonstra que sob as capas de erros e virtudes que todos nós carregamos existem essências que nos incomodam e agridem, enquanto outras nos causam empatia e compaixão. Não são os erros, mas quem os comete. Alguns sujeitos podem errar; outros não tem o direito às falhas humanas. Nosso julgamento – condescendente ou inexorável – diz muito mais de nós do que dos pecadores sobre quem jogamos as pedras.

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Condescendências

Quando vejo lideranças indígenas falando dos “brancos” penso que é tão errado e preconceituoso quanto dizer “os índios”. Pior, romantizar os indígenas é pura ingenuidade e essencialismo, que não resistem a 5 minutos de evidências. A ideia de que existe uma perspectiva de mundo essencialmente diferente entre os indígenas e os “brancos” não faz sentido. Os indígenas não “amam” a floresta como nós gostamos de pensar, apenas estão envoltos por ela e não possuem (como nós) as condições de destruí-la – ou modificá-la.

Tratar indígenas assim não ajuda suas causas. Nosso erro continua sendo estabelecer diferenças morais entre brancos, negros, indígenas, mulheres, homens, héteros e gays. Quando se examina sem preconceito vemos que em todos esses grupos existem virtudes celestiais e defeitos horrendos. Somos todos feitos da mesma massa bruta e nossas diferenças são meramente circunstanciais e contextuais.

Sabem quanto tempo por dia um indígena ou aborígene que vive em um sistema de “caça e coleta” trabalha em suas funções específicas, para produzir alimentos, moradia, proteção, etc?

Duas horas, em média, por dia. Exato, apenas duas horas de trabalho, porque o estilo de vida que está à sua disposição oferece de forma muito abundante os recursos necessários. O resto do tempo é usado para “curtir”, contar histórias, namorar, tomar banho no rio e contemplar. As populações pré agriculturais tinham este tipo de relação com a natureza e, portanto, não é a essência dos indígenas que os torna mais “respeitosos” com a natureza, mas a sua simplicidade cultural e sua forma de relação com o meio ambiente. Todavia, basta que achem uma garrafa vazia de Coca-Cola para que sua estrutura social se transforme completamente, e valores que sobreviveram por milênios sejam desafiados de forma marcante (aqui me refiro à brilhante comédia sul-africana dos anos 80 – “Os Deuses devem estar Loucos”).

Regredimos ao nos tornarmos “civilizados”? Bem, de uma específica perspectiva sim, em especial no que diz respeito à criminalização do lazer e do prazer, mas não se percebermos que este estilo de vida produz uma brutal dependência da natureza. Quando uma criança da comunidade vira comida de jacaré a gente começa a pensar um pouco mais sobre as vantagens da civilização e o quanto a aplicação de tecnologia pode ter seu valor. Uma proteção maior contra as fúrias naturais vai ocorrer na medida em que temos mais controle sobre a natureza e menos dependência de sua “bondade” para conosco. Com isso deixamos a posição de meros objetos da natureza e passamos a ser sujeitos dela. Mas, não há duvida de que a existência de agrupamentos nativos com uma estrutura social muito próxima dos caçadores coletores é uma excelente forma de analisar os (des)caminhos das civilizações contemporâneas.

Não esqueça dos “tigres de dentes de sabre”, que habitaram o continente americano (inclusive no Brasil) durante a pré-história, e desapareceram há cerca de 10 mil anos, mas que foram exterminados pelas populações NATIVAS, e não por exploradores brancos malvadões. O mesmo fenômeno nos fala Zizek a respeito dos búfalos americanos, e porque não seria igual com os “nativos” europeus e sua relação com os mamutes?

Por fim, “patronizing” é uma palavra de difícil tradução para o português, mas é a melhor palavra para explicar este fenômeno de tratar grupos oprimidos como se fossem moralmente superiores. Acho que a melhor tradução ainda é “condescendência”. Creio que sempre que temos este tipo de essencialismo condescendente com indígenas estaremos atrapalhando sua autonomia. O mesmo com outros grupos historicamente oprimidos, como mulheres, negros, imigrantes, gays, etc…

Abaixo a manifestação de Zizek sobre o tema…

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Joga Pedra!!

Sabe o que eu acho curioso? O Brasil inteiro está com ódio daquela moça que atacou o rapazinho que, de tanto apanhar, pediu para sair. Só vejo mensagens de ódio contra ela. Ela é a Geni nacional e, como toda a Geni, cumpre uma importante função social. “Ela serve prá apanhar, ela é boa de cuspir, maldita!!”

Enquanto existir uma pessoa que encarna a maldade e o mal do mundo nosso ego se sente aliviado. Tipo “Eu sou mau – às vezes – mas nunca fiz isso que ela fez. Ela sim é ruim de verdade”. Ufa, que alívio. Ela é também nosso Judas, e podemos malhá-lo à vontade para dar vazão ao nosso ódio e às nossas frustrações.

Por outro lado, eu não acho que ela – escondida entre os muros daquela casa – sabe do ódio que atraiu nas últimas semanas. Ela, como todos nós, não tem a capacidade de saber o quanto suas ações afetam os outros. Temos uma enorme condescendência com nossas ações e para elas sempre encontramos explicações, razões e claras justificativas, que quase sempre não fazem sentido para os outros, pois que não conseguem enxergar de forma “correta”, da maneira como nós vemos.

Tenho certeza que ao saber do que aconteceu com ela aqui fora a sua reação será o espanto e a incredulidade. “Como assim? Eu? Não pode!!!”. Talvez – apenas uma suposição – em seu íntimo ela já tenha uma pequena suspeita, mas que fica soterrada por um sistema muito eficiente de proteção emocional.

Porém, isso não se aplica à essa artista, mas vale para todos nós. Somos uma construção do olhar do outro, e sem isso é impossível saber quem realmente somos. Essa moça é um pouco de cada um de nós, mas por sorte não temos câmeras a acompanhar nossas patifarias cotidianas. Somos muito mais incorruptíveis por mediocridade do que por virtude.

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