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Abraços

Alguém pediu pra eu fazer um post “bonitinho” sobre o tema e eu respondo que “não me peçam que eu lhes faça um post como se deve, suavemente limpo, muito limpo e muito leve, sons e palavras são navalhas, e eu não posso falar como convém, sem querer ferir ninguém.”

Só o que digo é que os espetáculos punitivistas expõem de nós sempre o que temos de pior. Nenhuma pessoa movida pelo sentimento de vingança fica bem na foto. O punitivista é sempre um espírito de direita, conservador, mesmo quando veste roupas de arco-íris, cor de rosa ou grita “paz”. A ideia de que “punições exemplares”, “penas emblemáticas” de “lavar a alma” podem produzir mudanças estruturais é uma ilusão que muitos acalentam. Não salvam uma vida sequer, não nos educam, não nos protegem, não nos fazem avançar, mas fazem surgir os “justiceiros”, os “vingadores”, personagens do radicalismo mais primitivo, cuja visão de mundo está baseada no binômio “crime e castigo”, que acredita na punição como elemento supremo da pedagogia. Punitivismo não funciona há 100 mil anos na cultura humana. Não seria agora que a pedagogia da dor passaria a ser válida. Se esse modelo tivesse efeitos positivos a aplicação da pena de morte teria feito sucesso e a palmatória não teria sido arquivada. A destruição e a vingança como propedêutica sempre fracassaram; a história ensina.

Comemorem, mas lembrem que nesta punição está escondido um segredo: por que ele, e não os outros famosos cujo crime foi idêntico, tanto nas características quanto na época em que ocorreu? Por que blindamos alguns enquanto outros são colocados na fogueira? Será porque o ataque é ao futebol – arte masculina em suas origens – enquanto outras artes seriam protegidas?

Fica a minha curiosidade…

Alguém também me pediu que interpretasse o abraço que os jogadores deram em Cuca no final da partida, assim como a defesa que fizeram de seu amigo e parceiro – mesmo sem mencionar o crime do qual é acusado. Respondi que se meu filho estivesse sendo acusado, culpado ou não, eu o abraçaria. Meu abraço significa o seguinte: “Mesmo que você tenha errado continua sendo alguém que amamos. Na boa e na ruim não vamos te abandonar.” Os jogadores abraçaram um amigo, não seu delito, muito menos um crime. Uma mãe, mas também um irmão, cuida dos seus mesmo (e principalmente) quando estes erram. Se formos deixar de abraçar as pessoas que cometeram delitos – e até crimes – restarão poucas pessoas para a gente abraçar. Eu mesmo sinto que seria privado eternamente desse cuidado e desse carinho. Quando a gente abraça um irmão o faz sem julgamentos. Você abraçaria Simone de Beauvoir ou Marie Curie pelo trabalho maravilhoso que fizeram pela humanidade?

Se você as abraçaria, mesmo sabendo quem foram, vai entender o que digo.

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Vida e Arte

Claro que é possível separá-las, e assim o fazemos cotidianamente, basta ver a forma distinta como nós analisamos as falhas e defeitos de nossos ídolos. Nossa indignação é seletiva; não é justa, isenta ou desprovida de paixões.

Criamos uma enorme celeuma com o caso Pelé-Sandra, e o simples fato de ter sido tão explorado deveria nos ensinar algo. Por outro lado, também há mulheres e homens que realizaram grandes obras em favor da humanidade cujas vidas privadas foram repletas de problemas éticos extremamente graves. Nossa capacidade de exaltar alguns defeitos e esquecer outros nos mostra que, para o nosso juízo, mais importante que o delito é o sujeito que o comete, e isso expõe o quanto estes problemas alheios se relacionam com as nossas questões pessoais. Ao mesmo tempo que vejo justiceiros atacando o Rei do Futebol nunca vi ninguém atacando a memória de Simone de Beauvoir – ícone feminista – por suas ligações com a pedofilia e outras práticas condenáveis (como seduzir suas alunas). Também nunca vi alguém cancelando Marie Curie – grande mulher cientista – pelo caso amoroso que teve, já viúva, com seu auxiliar de laboratório, homem mais jovem e casado, fato que levou à dissolução do seu casamento. Apesar de ser muito maltratada pela sociedade parisiense em sua época, este fato hoje em dia é quase desconhecido, eclipsado pelos seus dois prêmios Nobel em duas áreas distintas. Também não vejo ataques sistemáticos a Rachel de Queiroz por ter sido uma árdua defensora da ditadura militar que massacrou o Brasil por duas décadas. Leiam sobre o genial poeta Pablo Neruda e vejam como foi sua terrível relação com a parentalidade.

Poderia passar horas citando outros personagens cujos erros receberam um claro perdão, comparando esse tratamento com as fogueiras montadas para outros, cujos crimes foram iguais ou até de menor importância e consequência. Assim, parece claro que oferecemos o benefício do esquecimento aos erros de alguns, enquanto tentamos nos lembrar diariamente dos defeitos de outros.

E vejam: tenho convicção de que os erros dessas personagens são do seu tempo, falhas humanas, e isso não diminui a importância e o valor de suas obras para a sociologia, a ciência e a literatura, produções essenciais para toda a humanidade.

E porque fazemos essa análise enviesada, com pesos e medidas diferentes para delitos semelhantes?

Agimos assim porque alguns “defeitos” observados nos outros não são suportáveis, e alguns são mesmo inconfessáveis. Por exemplo: ser um Deus negro em um país que nunca cortou plenamente os laços com o racismo. Também o crime de ser homem numa sociedade pós moderna que condena a masculinidade, tratando-a como “tóxica”, e que julga com estrema severidade um ídolo por não amar sua filha da forma como nós exigimos que esse amor se estabeleça.

Sabemos que o capitalismo e sua estrutura de classes precisa de um exército de homens que se submetam docilmente a um sistema injusto e abusivo. Por esta razão, causa desconforto vermos um homem negro ser a figura mais emblemática do povo brasileiro. Isso fere nossas aspirações de “nação branca” e escancara nossa origem mestiça.

Pelé cometeu erros humanos, mas que tocam na ferida exposta de muitas pessoas em sua relação com a figura paterna. Por isso, pela projeção que fazem da relação de Pelé com esta filha, colocam Pelé como o “paradigma do pai ausente”, nem que para isso precisem comprar uma história maniqueísta, cheia de furos e lapsos, demonizando o jogador e colocando sua filha e genro num pedestal. Toda narrativa assim construida tem como objetivo moldar a história para criar vilões e mocinhos, sem contradições, sem nuances, sem complexidades, apenas o confronto entre o “bem” e o “mal”, a vítima e o algoz.

Aceitar a falibilidade humana – o que inclui a história dos nossos heróis – é importante para humanizar tais personagens. Além disso, fazer linchamento morais de alguns e passar pano para outros apenas demonstra que sob as capas de erros e virtudes que todos nós carregamos existem essências que nos incomodam e agridem, enquanto outras nos causam empatia e compaixão. Não são os erros, mas quem os comete. Alguns sujeitos podem errar; outros não tem o direito às falhas humanas. Nosso julgamento – condescendente ou inexorável – diz muito mais de nós do que dos pecadores sobre quem jogamos as pedras.

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Jean-Paul Charles Aymard Sartre dizia – para as garotas por certo – que entendia as razões pelas quais elas o percebiam como um ancião de quase 70 anos. Todavia, afirmava que não se via dessa forma, pois se achava apenas um “garoto mais maduro”, independente do que lhe denunciava sua certidão de nascimento. Já eu acredito que o olhar do outro é fundamental exatamente por isso: para nos apresentar aquilo que ignoramos ao nosso respeito, oferecendo um toque de realidade à nossa fantasia de onipotência.

Jean Marie Artaud, “L’art de Vieillir”, ed. Chateaux, pág 135

Jean Artaud é um escritor francês nascido em Rennes, na Bretanha, em 1947. Cursou a escola fundamental na sua cidade natal até se mudar para Paris com o objetivo de estudar filosofia na Sorbonne. Com 21 anos de idade participou das manifestações de maio 1968, onde conheceu Jean-Paul Sartre e sua parceira Simone de Beauvoir. Imediatamente passou a cursar as aulas de Simone e se apaixonou por ela, apesar de ela ter 60 anos na época e ele apenas 21. O romance entre eles durou poucas semanas e a amizade entre ambos foi abruptamente interrompida quando em 1971 Simone subscreveu o “Manifesto 343”, onde várias personalidades francesas alegavam ter feito um aborto. Católico fervoroso e anti-abortista, Jean Marie recusou-se a continuar a amizade com sua professora e amante depois que ela declarou publicamente ter realizado este procedimento. Chegaram a se reconciliar em 1976, mas imediatamente romperam definitivamente quando ela integrou o grupo de intelectuais (que incluía Sartre, Foucault, Barthes, Deleuze e outros) que assinou uma petição enviada ao parlamento francês em 1977 pela abolição da idade de consentimento e em prol da descriminalização do sexo consensual. Casou-se em 1982 com Lucille Avignon, professora de linguística, com quem teve dois filhos, Armand e Pierre Auguste. Vive em Nice.

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Anacronismos

Não há dúvida que Monteiro Lobato era racista. Mais ainda, era um eugenista, um entusiasta da KKK e um racista ATIVISTA, mais do que apenas um sujeito com preconceito racial. Foi membro da sociedade paulista de eugenia e divulgador dessas ideias, as quais – no início do século XX – tinham uma aura cientificista.

Todavia, esta não é a mais importante abordagem. O que me parece urgente debater em tempos de “cancelamentos” a respeito da “questão Monteiro Lobato” é o quanto é possível “separar autor de obra” e se é adequado que sejam feitos julgamentos sobre figuras da literatura fora do devido contexto histórico. Ou seja, separar a obra das questões subjetivas de quem a escreveu e não sucumbir ao anacronismo – o julgamento de um sujeito apartado de seu tempo.

Nem é necessário ir muito longe. Na minha própria experiência pessoal existem claras lembranças de uma época em que tais ideias não recebiam da cultura o adequado contraditório. Ao longo de toda a infância eram comuns as piadas racistas, as quais eram contadas impunemente para qualquer um – inclusive por mim – pois eram tratadas na cultura como “brincadeira”, “chiste”, “jocosidade”, etc. Não há dúvida, entretanto, do seu conteúdo racista e segregacionista quando expostas às luzes do século XXI. Usava-se da piada para encobrir um conteúdo separatista, um apartheid informal e subliminar, essencial e estrutural, que se expressava em uma forma extremamente potente de coesão cultural: o humor.

O mesmo ocorria com as piadas homofóbicas. Na minha época um dos humoristas mais celebrados era o “Costinha”, um dos artistas mais engraçados do seu tempo. Entre suas piadas, 90% eram sobre gays, “bichinhas”, como ele dizia, homossexuais com atitudes afetadas. Hoje em dia suas piadas seriam um escândalo, mas apenas 40 anos nos separam do seu auge como piadista. Julgar Costinha – e não suas piadas – seria um anacronismo, assim como julgar Monteiro Lobato sem levar em conta o entorno cultural em que estava envolvido.

Outro aspecto é pensar sobre Monteiro Lobato e esquecer a vida pessoal – e até a obra – de tantos outros escritores. Devemos, por exemplo, esquecer a obra de Heidegger ou Celine por suas vinculações com o nazismo? Seria justo apagar a música de Michael Jackson pelas acusações que recebeu – em vida e depois dela – de abusos sexuais contra menores? É adequado esquecer o racismo explícito de Humberto de Campos e Fernando Pessoa (sim!!!) ou devemos sorver suas obras e descontar os erros de seu tempo?

E a defesa da pedofilia de Simone Beauvoir? Deveríamos relevar estas manchas em sua biografia e continuar aprendendo com seus textos precursores do moderno feminismo? Ou devemos também apagar todos os seus escritos?

E o que fazer com os feitos de médicos brasileiros como Miguel Couto, Roquette Pinto (médico e pai da radiodifusão no Brasil), Renato Ferraz Kehl e tantos outros que participaram da Sociedade Paulista de Eugenia? E quanto a literatura infantojuvenil? Vamos “cancelar” Lewis Carroll pelas acusações de pedofilia que foram feitas contra ele? Deveriam as crianças todas do mundo ser privadas das aventuras de “Alice no país das Maravilhas” pela suspeita de uma falha ética do seu autor? Pior ainda: devemos destruir a obra de Woody Allen, falsamente acusado de abuso sexual, apenas para agradar a “patrulha”? E o que fazer com a pedofilia de Charles Chaplin?

Se um antropólogo achasse, mas areias da Galileia, um manuscrito essênio que revelasse uma mancha moral gritante de Jesus, seria justo acabar com o cristianismo em nome da purificação necessária para limpar esta mácula?

Há um adágio antigo que nos diz: “As virtudes são dos homens, as falhas são do seu tempo”. Eu li toda a obra de Monteiro Lobato na entrada da adolescência e não percebi nenhum racismo explícito nela. Não que não houvesse; ela estava evidente na topografia dos personagens, mas este racismo sutil ainda era invisível nos anos 70. Somente agora podemos percebê-lo para julgar sob esta nova perspectiva.

O mesmo digo dos outros autores. Não há mal algum em apontar a pedofilia, o nazismo e o racismo nos autores. Também é justo mostrar estes erros nas obras que escreveram, mas é fundamentar não se deixar levar pelo anacronismo, julgando um sujeito fora do seu tempo e da cultura que o envolvia.

Monteiro Lobato e muitos outros devem ser mantido nas escolas exatamente para que se possa debater com os alunos sobre os valores de meados do século XX. Apagar a história, mesmo em nome de valores nobres, empobrece a cultura.

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