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Condescendências

Quando vejo lideranças indígenas falando dos “brancos” penso que é tão errado e preconceituoso quanto dizer “os índios”. Pior, romantizar os indígenas é pura ingenuidade e essencialismo, que não resistem a 5 minutos de evidências. A ideia de que existe uma perspectiva de mundo essencialmente diferente entre os indígenas e os “brancos” não faz sentido. Os indígenas não “amam” a floresta como nós gostamos de pensar, apenas estão envoltos por ela e não possuem (como nós) as condições de destruí-la – ou modificá-la.

Tratar indígenas assim não ajuda suas causas. Nosso erro continua sendo estabelecer diferenças morais entre brancos, negros, indígenas, mulheres, homens, héteros e gays. Quando se examina sem preconceito vemos que em todos esses grupos existem virtudes celestiais e defeitos horrendos. Somos todos feitos da mesma massa bruta e nossas diferenças são meramente circunstanciais e contextuais.

Sabem quanto tempo por dia um indígena ou aborígene que vive em um sistema de “caça e coleta” trabalha em suas funções específicas, para produzir alimentos, moradia, proteção, etc?

Duas horas, em média, por dia. Exato, apenas duas horas de trabalho, porque o estilo de vida que está à sua disposição oferece de forma muito abundante os recursos necessários. O resto do tempo é usado para “curtir”, contar histórias, namorar, tomar banho no rio e contemplar. As populações pré agriculturais tinham este tipo de relação com a natureza e, portanto, não é a essência dos indígenas que os torna mais “respeitosos” com a natureza, mas a sua simplicidade cultural e sua forma de relação com o meio ambiente. Todavia, basta que achem uma garrafa vazia de Coca-Cola para que sua estrutura social se transforme completamente, e valores que sobreviveram por milênios sejam desafiados de forma marcante (aqui me refiro à brilhante comédia sul-africana dos anos 80 – “Os Deuses devem estar Loucos”).

Regredimos ao nos tornarmos “civilizados”? Bem, de uma específica perspectiva sim, em especial no que diz respeito à criminalização do lazer e do prazer, mas não se percebermos que este estilo de vida produz uma brutal dependência da natureza. Quando uma criança da comunidade vira comida de jacaré a gente começa a pensar um pouco mais sobre as vantagens da civilização e o quanto a aplicação de tecnologia pode ter seu valor. Uma proteção maior contra as fúrias naturais vai ocorrer na medida em que temos mais controle sobre a natureza e menos dependência de sua “bondade” para conosco. Com isso deixamos a posição de meros objetos da natureza e passamos a ser sujeitos dela. Mas, não há duvida de que a existência de agrupamentos nativos com uma estrutura social muito próxima dos caçadores coletores é uma excelente forma de analisar os (des)caminhos das civilizações contemporâneas.

Não esqueça dos “tigres de dentes de sabre”, que habitaram o continente americano (inclusive no Brasil) durante a pré-história, e desapareceram há cerca de 10 mil anos, mas que foram exterminados pelas populações NATIVAS, e não por exploradores brancos malvadões. O mesmo fenômeno nos fala Zizek a respeito dos búfalos americanos, e porque não seria igual com os “nativos” europeus e sua relação com os mamutes?

Por fim, “patronizing” é uma palavra de difícil tradução para o português, mas é a melhor palavra para explicar este fenômeno de tratar grupos oprimidos como se fossem moralmente superiores. Acho que a melhor tradução ainda é “condescendência”. Creio que sempre que temos este tipo de essencialismo condescendente com indígenas estaremos atrapalhando sua autonomia. O mesmo com outros grupos historicamente oprimidos, como mulheres, negros, imigrantes, gays, etc…

Abaixo a manifestação de Zizek sobre o tema…

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Autonomia

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Os alunos do quarto ano da faculdade de medicina se aglomeravam ao redor da professora em uma de nossas primeiras incursões dentro da Santa Casa, campo de prática da Medicina Interna.

Naquele dia estávamos debatendo a respeito de algo que praticamente não tínhamos conhecimento algum: pacientes. Para nós as doenças e os males eram entidades abstratas, retiradas de páginas de livros, com nome de velhos professores ingleses e franceses, ou derivadas do latim. A conexão dessas descrições frias com os doentes ainda era para nós difícil de estabelecer.

A enfermaria era de clínica e o paciente uma criança. Era portadora de uma síndrome metabólica genética e estava acompanhada da mãe. A professora era uma médica contratada muito jovem, mal passando dos 30 anos. Tinha a curiosidade e a energia dos jovens médicos, mesclada com a inexperiência em tratar com almas complexas, que dificilmente se enquadram plenamente em modelos nosológicos preestabelecidos. Enquanto ela nos explicava as características da enfermidade que se abatia sobre a criança pude observar, ao longe, a mãe que trazia ao colo sua pequena filha.

Era pobre, mais do que simples, mas sua face tensa perdia um pouco de sua dureza sofrida a cada vez que sussurrava algo para a filha. Talvez por ser eu o único na sala além da pobre senhora que já havia passado pela experiência do nascimento de um filho – incluindo aí a professora – fui quem mais se tocou pela cena colateral, aquela que corria paralelamente à semiologia, aos exames e aos prognósticos sombrios. Trazer um filho doente nos braços é uma das mais angustiantes experiências humanas. A dor do ser que carregamos no colo dói mais que qualquer ferida que decerto temos em nosso próprio corpo.

Terminada a explicação sobre os detalhes do caso e nos aproximamos da mãe e seu filho. A professora apresentou-se e a todos nós. Explicou que éramos alunos de medicina e queríamos examinar sua filha. Ela aquiesceu com um olhar triste e a colocou na cama de lençóis simples sobre o colchão de napa azul.

Não tenho nenhuma lembrança da criança e sequer recordo qualquer detalhe da doença que ela sofria, nem mesmo o nome da enfermidade genética que a acometia. Minha atenção foi automaticamente voltada para a mãe e sua carga de dores. A paternidade havia me tornado, ainda menino, especialmente atento para os dramas que acometem aqueles que têm alguém sob seus cuidados.

– Essa é minha segunda filha, disse ela, com um sotaque carregado da colônia italiana. Minha filha mais velha tem essa mesma doença. Ela também se trata, mas agora está bem.

Seus olhos miravam o chão. Havia culpa em suas palavras, o mais sórdido e sorrateiro dos sentimentos. Mesmo sem saber as nuances e detalhes do metabolismo alterado ela sabia que suas filhas sofriam de algo que seus genes haviam lhes transmitido. A culpa era uma cicatriz a lhe encobrir o rosto com um queloide de dor.

Terminado o exame perguntamos a ela quais as explicações que haviam sido dadas pela equipe médica. Ela nos informou sobre a espera por um determinado exame e que desejava poder voltar para sua casa no interior para continuar sua vida e cuidar da outra filha. Silenciosamente fechava as roupinhas simples e amarrotadas da filha enquanto a professora se despedia.

– Cuide-se, disse a inexperiente professora. Espero que você não pense em ter mais filhos, pois as chances de ter outro com essa doença são grandes.

Olhei para a professora e tive uma sensação incômoda, algo inominado, um sentimento que não poderia entender naquela época da juventude. Para um aprendiz as palavras da professora faziam pleno sentido. Afinal, por que ter um filho cheio de problemas se é possível evitá-lo? Fazia sentido, sim. Todavia, isso não evitou a inquietude que senti pelo “conselho” da professora, principalmente pelo que se seguiu logo após.

– Doutora, disse a mulher, com a voz embargada e visivelmente emocionada. Fico muito agradecida pelo tratamento que recebo aqui. Não me importo que minhas filhas sejam examinadas pelos alunos. Em verdade eu gosto de saber que tantos se preocupam em ajudá-las. Os médicos são atenciosos e cuidadosos. Nossa vida não é fácil com duas filhas que precisam tratamento. Só eu sei o quanto é difícil sair do interior, deixar o marido e alugar um quarto perto do hospital só para acompanhá-las.

A cada descrição da dureza de uma vida sofrida de mãe meu coração se apequenava. Meu filho tinha um ano, se tanto, e nada lhe faltava, apesar de termos uma vida muito simples. Mas o esforço que ela devotava no cuidado de suas filhas deixava minhas angústias de recém pai diminutas e desprezíveis. Ela continuou seu desabafo.

– Sei do sofrimento que essa doença vai provocar nelas e, por extensão, em todos nós que as cuidamos. Muito ainda vamos enfrentar, mas venceremos, com a ajuda de Deus e o auxílio dos médicos, mas…

Olhou mais uma vez para a médica, abotoou o último botão do casaquinho cor de rosa de sua filha e disse:

– … da minha vida cuido eu. Só eu sei o peso que carrego. Terei os filhos que quiser, ou os que Deus mandar, e não cabe à senhora dizer como vou conduzir minha vida. Muito obrigado.

Pegou sua filha no colo e cruzou a sala sem olhar para trás.

Naquele dia percebi que quando nasce uma criança sua alma se acopla a um corpo biológico, que lhe dá sentido através dos significados múltiplos que a vivência na linguagem nos proporciona. Somos muito mais do que simples unidades físico-químicas. Somos seres animados, dotados de “anima”, algo que nos oferece uma mirada especial sobre o mistério da vida.

Um médico deve estar pronto a auxiliar com toda sua energia e conhecimento. Deve ser um “observador atento e isento de preconceitos”, como diria o pai da homeopatia, Hahnemann. Entretanto, ao médico não cabe julgar os valores e crenças de quem trata. Sua ação deve ser humilde e silenciosa, invisível. Uma “transparência de carne e sílica”, como brincava Max. Se é impossível abster-se de sentir – e até sofrer pelo que nosso paciente diz – é fundamental que nossa ação não imponha aos outros valores que somente a nós fazem sentido.

A mulher simples mostrou para o jovem estudante que no espaço que separa o paciente do médico flui uma energia que precisa ser respeitada, sem cair na tentação fácil de preencher esse espaço com arrogância ou prepotência.

Mesmo quando a intenção é ajudar.

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