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Lei das doulas

Parece que hoje, 16 de março de 2022, foi aprovada uma “Lei Nacional de Doulas”. Ainda não pude ler a lei – e a regulamentação que a acompanha – mas este parece ser um capítulo muito importante e significativo de uma luta que algumas doulas empreenderam no sentido do reconhecimento e da certificação das doulas em nível nacional.

Pelo que eu pude entender nas informações que me foram passadas, a nova “lei das doulas” determina uma formação mínima de 180 horas, e conclusão do ensino médio, e este para mim é o ponto crucial, porque estabelece um ponto de corte; depois disso, nada será como antes. Ainda não tenho conhecimento de como se pretende estabelecer o currículo para esses cursos de 180 horas, mas posso apostar como haverá aula de “feminismo”, “diversidade”, “direitos da mulher”, “violência de gênero”, “anatomia”, “fisiologia” e o escambau. Pelo que eu pude captar no Encontro Nacional de Doulas, realizado há alguns anos, a grade curricular destes cursos alargados deverá seguir por esse caminho, formando “doulas feministas”.

Entretanto, se colocaram na letra da lei as horas indispensáveis para um curso, por certo que por para além disso vão criar a necessidade de um certificado, depois um conselho autorizado a oferecer esta certidão e, por fim, vão proibir que doulas não registradas auxiliarem no atendimento às gestantes. As portas dos hospitais (parto domiciliar é outra realidade) se fecharão para quem não tiver a “carteirinha”.

Os ideólogos dessa profissionalização acabaram criando uma função – ou uma profissão – inserida na área médica; uma auxiliar de parto, formada e certificada. O que era uma grande virtude da doula – ser uma mulher tanto quanto a mulher que ela atendia – vai deixar de existir. Doulas serão técnicas, auxiliando o serviço médico do parto. Por certo que esta modificação na essência e na natureza das doulas vai enriquecer grupos que investem nesses cursos longos, mas a certamente a abrangência e a pervasividade dos cursos vai cair.

Pergunto: quem terá dinheiro para pagar cursos de 180 horas? E como vai acontecer com as doulas pobres? E as doulas analfabetas, ou com educação formal rudimentar? E a comadre que acompanha sua vizinha no interior e atua nessa função? Como vamos oferecer assistência de doulas para mulheres dos rincões afastados do país e que não tem condições para fazer um curso que – em última análise – pouco vai acrescentar para uma tarefa de dar suporte às necessidades básicas das gestantes?

Essa regulamentação parece servir ao que os médicos sempre desejaram. Agora vão parar de entrar mulheres “desqualificadas” nas maternidades, segurando suas “bolas de ginástica”, colocando incenso, com CDs da Enya dentro da bolsa. A partir de agora só vão entrar doulas formadas, com diploma e carteira do Conselho. Os médicos, por certo, devem estar comemorando.

A imagem que tínhamos das doulas ficará no passado. Caso isso se confirmar, acabou o movimento como nós o concebemos até então.

Quando li a notícia vindo pela Internet não pude me furtar de sorrir com uma velha piada que eu sempre contei sobre os “tipos de enfermeiras”. Por muitos anos eu falei das duas modalidades que cruzavam meu caminho: as primeiras são as “enfermeiras de tailleur”, que são enfermeiras chefes, chiques, lindas e arrumadas, executivas de maternidades e CEO de centro obstétrico, vestindo tailleurs que deixariam morrendo de inveja as aeromoças da SwissAir. Estão sempre limpas e falam um português perfeito.

Já as outras, que se contrapõem a estas, são as “enfermeiras de crocs”, desarrumadas, usando roupa de bloco cirúrgico, cabelo preso, sem maquiagem, mal dormidas, estressadas, angustiadas, cansadas ao extremo mas profundamente realizadas com seu trabalho de “chão de fábrica… de bebês”.

Pois agora, no bojo da certificação e da gentrificação das doulas, poderemos conhecer as “doulas de tailleur”, que serão as doulas chiques, com diploma na parede e crachá no peito; doulas com PhD, com anel de formatura e trabalhos publicados em periódicos reconhecidos. E vão chegar no hospital com laquê no cabelo…

Eu acho que muito cedo vamos ter saudade das “doulas roots”. Talvez este tipo de equívoco – no meu ver – seja necessário para que entendamos, finalmente, qual a verdadeira e profunda essência da doulas. Creio que fizemos uma tolice movida pela nossa vaidade, por uma necessidade muito primitiva enraizada na cultura sul-americana de sustentar seu saber – e a autoridade associada a ele – em um documento, um papel. É a nossa fome por “certificados”, que é muito característica dos brasileiros.

Lembro muito bem da vergonha que eu passei em Cleveland quando fiz uma palestra na Case Western Reserve University (em 2003, quando o Dr. John Kennell esteve presente) e pedi para a secretária do departamento de antropologia um “certificado”. Recordo nitidamente seu espanto quando lhe expliquei do que se tratava, e como ela não sabia o que era isso me pediu que a acompanhasse até sua sala para lhe ditar o que precisava escrever no papel. Perguntei para minha amiga Robbie como os americanos colocam essas coisas em um “resume” (currículo) e ela explicou que apenas informava o congresso, o local, data e o título da apresentação; não era necessário comprovar com papelzinho assinado pelo presidente do evento, pois ninguém arriscaria sua credibilidade mentindo ter realizado uma palestra que na verdade não fez.

Quando ela me contou isso me senti um perfeito caipira…

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Cada Tempo em seu Lugar

É verdade esse bilete…

Tem algumas pessoas que eu acompanho na Internet porque acho talentosas e promissoras. Têm opiniões fortes, talento para escrever, boas ideias e princípios. Entretanto, vez por outra, vejo nelas explosões de autoexaltação, exposição desnecessária de feitos e conquistas, explicações inúteis, brigas com detratores e exaltação do ego, demonstrando uma falha nítida de sua autoestima que se expressa pela necessidade de afirmar-se publicamente.

Muitas vezes chego a escrever para estas pessoas uma nota em privado, com o sincero objetivo de mostrar que esse caminho não é o melhor. Escrevo algo como:

“Querido(a) amigo(a)… Defender-se dessa maneira não faz mais do que acusar o golpe. Quem gostava de você não gostará mais apenas porque publicou seu currículo para mostrar autoridade. Listar suas qualidades e conquistas mostra que você não as considera tanto assim, por isso precisa olhar para elas escritas na tela à sua frente para enxergar nelas o valor que acredita possuírem. Não alimente os trolls; essa e a regra mais básica da Internet!!! Não responda o fogo dos franco atiradores, pois ao responder você expõe onde se encontra, e mostra seus pontos fracos.

Seja humilde, não se leve tão a sério. Aceite a discordância e até a tolice alheia. Não permita que alguém com ódio lhe contamine. Meu pai já dizia ‘Só podes me fazer mal se me fizeres mau’. Acredite, até você tem ‘pontos cegos’ e muitas burrices particulares. Seja caridoso(a) com as falhas alheias e procure como virtude essencial a generosidade do saber. Em qualquer discussão virtual fale seu ponto de vista sem medo e sem pudor; caso eles não gostem ou não aceitem, o problema não é seu; seu pecado será apenas calar por covardia.

Lembre-se: ninguém convence ninguém pela internet; não há conversões e não somos capazes de iluminar mentes com meia dúzia de palavras bonitas e bem costuradas. Falamos muito mais para nós mesmos do que para os outros, mas nossas palavras podem se associar ao pensamento de alguém que se julga solitário em sua visão de mundo. Isso pode ajudá-lo a se sentir menos só em seus projetos e perspectivas. Não se leve tão a sério; todos somos absolutamente desprezíveis no grande contexto. Em muito pouco tempo não seremos mais do que o nome em uma lápide e nada além de uma lembrança que se apaga lentamente na memória dos afetos que nos cercaram.”

Apesar de me iludir que isso poderia ajudar alguém, nunca tive a coragem de mandar a mensagem efetivamente, pois acho que soaria pedante, arrogante e intrometido. Acabo desistindo, apagando tudo o que escrevi e pensando com os meus botões:

“Por pior que isso possa parecer, existem coisas que só aprendemos com o tempo, caindo ao solo para só depois levantar. Aí eu me lembro que essas pessoas são jovens, tem ímpetos de mudar o mundo, acreditam-se poderosas e imantadas por uma missão grandiosa na vida e que na idade delas eu pensava de forma muito semelhante. Minha semente de ponderação e autocrítica encontraria um terreno pouco propício, e daria a clara impressão de inveja ou despeito. Mais ainda, sou obrigado a concordar que no lugar deles eu não daria ouvidos a um velho arrogante tentando me dar conselhos.”

Nesses momentos eu lembro da música “Cada Tempo em seu Lugar” do Gilberto Gil, cujo nome é o resumo desses meus pensamentos: Ela diz em seu final:

“Cada tempo em seu lugar
A velocidade, quando for bom
A saudade, quando for melhor
Solidão: Quando a desilusão chegar”

Para cada um de nós há o tempo em que nos desiludimos, em especial sobre nós mesmos. Esse é um dia triste, chuvoso, frio e escuro, mas um dia para celebrar. Afinal, ainda é melhor vermos o dia feio e úmido como ele verdadeiramente é do que manter-se eternamente rodeado de ilusão e engano.

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Desastre do Lattes

Látis é uma espécie de Kwai, onde se guarda todas as tretas que o cara fez, mas é mais pra material de colégio tipo … estudo, mas não dá pra mandar vídeos ou fotos de gatos, esmalte ou comida chique. Recomendo apenas para quem tá a fim de um trampo.

Sem Lattes, sem memória, sem passado. Imagine só, meu amigo…. de uma hora para outra tudo ficou zerado. Depois do incêndio a memória dos feitos e atos de bravura escolar viraram cinza. Anos colecionando troféus acadêmicos e agora… tudo acabou. Fim… como se aquele dinheiro que você guardava debaixo do colchão perdesse o valor. Aqueles estudos, pesquisas, palestras, títulos. Tudo incinerado. Todo mundo agora se torna oficialmente igual, inobstante o brilhantismo ou a mediocridade.

Lembrei os jogos de futebol do meu tempo. Não importava quanto estava o placar da pelada, mas quando escurecia e todo mundo estava exausto, alguém gritava: “Zerou!! Quem fizer o primeiro ganha!!!”. Subitamente o placar desaparecia, e tudo o que já havia sido jogado deixava de existir. Ninguém mais estava ganhando ou perdendo. Nesse último gás a gente jogava como se estivesse começando tudo naquele exato instante.

É mais ou menos assim que eu vejo o fim do capitalismo.

O velho milionário vai dormir mega empresário e acorda como um cidadão comum. Ainda antes de levantar da cama vê um sujeito ao lado da sua cama, vestindo um uniforme verde escuro e um boné, avisando que precisa da chave dos fundos da sua empresa para a entrada dos caminhões. Levanta da cama, cruza o quarto gigantesco e, ainda impactado pelo despertar abrupto, entrega a chave ao rapaz de barba negra e uma estrela fulgurante no bolso da camisa.

“Posso pelo menos acompanhar vocês até lá?” ele pergunta, sem conseguir imaginar algo melhor para dizer.

O jovem revolucionário responde:

“Claro senhor. Vamos aguardá-lo lá”, e entrega na mão do ex capitalista uma tarjeta plástica. Vê o grupo de jovens sair da mansão dirigindo o seu carro esporte conversível e percebe que o mundo, como o conhecia, desabou.

Olha para sua mão e vê que a tarjeta plástica que o guerrilheiro lhe deu é um cartão de transporte público. Só então, chora.

PS: É verdade esse bilete

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