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Determinismo

Creio ser importante ressaltar que o debate é mais profundo do que parece. A questão que se coloca nesse quadrinho é estabelecer a contraposição de duas propostas espíritas. De um lado, a ideia do ACASO: uma mulher atacada por acaso por um estuprador, sem nada ter feito para isso; uma ocorrência de puro azar. Esta visão se contrapõe à proposta DETERMINISTA, que afirma que todos os fatos de hoje – das punições aos benefícios – são decorrência de algo do passado, de uma vida anterior onde houve falhas a serem purgadas na vida atual ou créditos a serem resgatados. Aliás, é daí que vem uma conhecida expressão brasileira “Eu devo ter atirado muita pedra na cruz para ter que passar por isso”.

Para quem aceita a hipótese determinista, todo o sofrimento presente estaria relacionado a um fato do passado, seja uma dívida ou um talento. O problema para aqueles que creem no determinismo – não cai uma folha da árvore sem que Deus tenha conhecimento – é que essa perspectiva os levaria a aceitar uma vida absolutamente controlada pelo destino, pelos “espíritos superiores”, pelas rígidas leis de causa e efeito (sucedânea da Lei de Talião) ou por Deus, sem que haja qualquer protagonismo de sua parte. Se tudo já estava previamente escrito, de que adiantaria mudar suas condutas? Já para aqueles que acreditam no acaso – ou na ocorrência de fatos dramáticos sem uma causalidade moral anterior – é necessário aceitar que o aprendizado não precisa necessariamente ocorrer pelas punições. Em verdade, a concepção determinista do mundo espiritual é um espelho de nossas próprias convicções punitivistas, que acreditam no poder transformador das penas, das punições, das cadeias e dos castigos. Essa é a visão mais direitista, que acredita que as prisões e penas poderiam produzir algum benefício nas sociedades, algo que se contrapõe à materialidade dos fatos.

Alguns poderiam dizer que não é preciso vasculhar outras existências para explicar as dores desta; muitas vezes colhemos aqui mesmo o que foi plantado nesta vida.  Entretanto, essa proposta apenas traz o limite do debate mais para perto (nesta vida, não necessariamente em outras), mas mantém o dilema principal: é preciso ter feito algo de mal para ser vítima de uma tragédia? Não podemos ser vítimas do acaso? Se você é determinista, dirá que todo efeito necessariamente tem uma causa; as dores serão sempre a decorrência de malfeitos e culpas. Já se você acreditar na possibilidade do aleatório, aceitará que muitas vezes o sofrimento não foi produzido por nenhum fato anterior, mas que ainda assim pode ser fonte de aprendizado.

Além disso, creio que o quadrinho carrega uma falácia lógica, chamada de “non sequitur”, na qual a conclusão, que encerra as ponderações, não decorre das premissas apresentadas. Quando um espírita “determinista” fala de “pecados do passado”, ele não está justificando o crime, mas tentando entendê-lo numa perspectiva maior, mais abrangente, que englobe as vidas passadas e a lei de causa e efeito – também chamada de “lei do carma”. Portanto, é possível a ele dizer que o abuso é “horrível, injustificável, monstruoso e que merece punição, como forma de proteger a sociedade”, enquanto, ao mesmo tempo, tenta entender porque aquela específica mulher passou por tamanha provação e dor. Como eu disse anteriormente, não concordo com a visão determinista admitida pela maioria dos espíritas que procuram causalidades morais em cada tragédia, mas, por uma questão de justiça, creio que esta visão não transfere a culpa para a vítima, apenas tenta entender, dentro desta específica lógica, o que estes sofrimentos poderiam ter como causa.

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Vida e Determinismo

Evangelist Reverend Moon reacting as he delivers a speech in Gapyeong
O recentemente falecido Reverendo Moon

Certa vez eu fui abordado por um sujeito na rua que se postava em frente a um cavalete (desses que se usa em aula, com um bloco grande de papel) onde ele escrevia com um marcador de texto. A cena inusitada chamou a atenção de algumas pessoas, entre elas eu. Esta cena aconteceu em Nova York, no início dos anos 80. Parei para olhar por alguns momentos sem perceber que se tratava de uma espécie de “bispo” da seita do Reverendo Moon tentando fazer prosélitos entre os incautos passantes. Esta seita fez muito sucesso há 30 anos, principalmente nos Estados Unidos, onde organizavam reuniões gigantescas, com milhares de participantes, inclusive casamentos instantâneos de milhares de casais ao mesmo tempo. Na realidade ela em nada diferia das religiões contemporâneas que se baseiam no carisma de um guru e no investimento de milhões de dólares em propaganda. Bastaram 2 minutos de atenção com as marcas incompreensíveis que ele fazia no papel sobre o cavalete para que ele voltasse sua atenção para mim e explicasse o que fazia ali.

Em verdade, seu interesse com os gráficos era mostrar os importantes eventos sequenciais que se produziam a cada 500 anos e que mostravam que, exatamente naquele ano (acho que 1981), surgiria uma “nova ordem cósmica” liderada pelo patrão dele, o tal do reverendo. Pediu que eu olhasse os gráficos e confirmasse o nascimento de grandes líderes mundiais a cada lapso de meio milênio – dos filósofos pré-socráticos, passando por Sócrates-Platão-Aristóteles, pelo Nazareno, os Maias, os líderes da ciência na Europa iluminista, os enciclopedistas e por aí afora, até chegar exatamente no ponto onde ele pretendia: o surgimento do ápice de todos esses grandes líderes: o Reverendo Moon.

Mesmo sendo eu um menino de não mais de 20 anos, percebi claramente que se tratava de uma história contada em retrospectiva. Tipo: eu sou o máximo, ok? Preciso que todos vocês acreditem nisso e vou utilizar uma fórmula bem simples: mostrarei que minha importância não está apenas no que digo (na maioria das vezes uma mera repetição de adágios antigos com roupagem nova), mas que a minha “chegada” ao planeta Terra teria sido planejada por uma “ordem invisível cósmica”, que governa o mundo para além do nosso conhecimento. Bem, vou inventar agora que a cada século um novo gênio nasce na humanidade, certo? Para isso usarei de uma análise retrospectiva da história, e procurarei os meus “precursores”. Para fazer isso preciso encontrar alguém muito especial nascido no ano da graça de 1859, outro em 1759, 1659 e assim por diante, e desta forma construo uma pseudo causalidade que ocorre em lapsos de 100 anos.

Claro, eu pensei logo no meu mestre Freud, que nasceu em 1856, mas é fácil construir uma explicação para esta pequena inexatidão. Posso dizer que, por exemplo, são cem anos “lunares”, ou “por volta de um século”, ou Freud foi registrado apenas em 1859, por um erro de seu pai, etc. É evidente que, dependendo do que quero provar, esses detalhes são desprezíveis, e no fim tudo pode ser encaixar, como em um passe de mágica.

Por isso é que essas histórias de que “as coisas estão escritas para acontecer de uma determinada maneira, obedecendo uma ordem cósmica previamente estabelecida” me irritam, pois elas, em última análise, falam de um determinismo paralisante, que sufoca a natural diversidade humana, a imprevisibilidade da vida e o livre arbítrio. A vida, assim conduzida, pareceria uma versão do filme “Premonição” onde os eventos (trágicos, felizes ou bizarros) estão predeterminados a acontecer. Infelizmente (ou, ao meu ver, felizmente) o mundo não se ordena desta forma. Se realmente existisse um “sentido” oculto no Cosmos, o preço a pagar seria alto demais: a perda da liberdade e da autonomia. Prefiro um mundo caótico e imprevisível construído pelas nossas próprias imperfeições e falhas do que um mundo onde “tudo acaba bem” por que Deus (ou o Reverendo Moon) escreveu nosso destino com as tintas do determinismo.

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