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O Jesus do trezoitão

É importante entender o fenômeno que se espalhou pelo Brasil a partir de meados dos anos 80 com a chegada do modelo de negócios das religiões neopentecostais ao Brasil. Trazido e disseminado pelo Pastor Edir Macedo, em pouco mais de três décadas acabou conquistando legiões de “crentes” em todo o país a ponto de exportar sua tecnologia de conversões e dízimos para países da América Latina e África, em especial. Como característica desse movimento temos a base popular (é centrada na população mais pobre e deserdada), os ataques violentos às religiões de matriz africana, a leitura acrítica e fundamentalista da Bíblia, o conservadorismo nos costumes e uma clara adoção aos partidos mais à direita – incluindo aqueles francamente fascistas. É um dos mais importantes fenômenos sociais ocorridos nos últimos anos, em função da amplitude de sua atuação em diversos setores da sociedade, em especial na política.

É também essencial não permitir que este debate seja direcionado às crenças religiosas que estas religiões pregam. Nosso país tem a liberdade de culto como preceito basilar de sua constituição, e não cabe questionar os postulados de nossas inúmeras seitas – por mais que sejam conflitantes com as nossas. Portanto, não se trata de um debate teológico, mas sociológico, que vai se ocupar com as expressões destas religiões na cultura, para além do seu catecismo. E vamos deixar bem claro que a “questão evangélica” no Brasil (e nos Estados Unidos) não se restringe à denominação protestante ou àqueles prosélitos que seguem a enorme lista de pastores milionários. Infelizmente o problema não se esgota nos malandros e televangelistas, pois vejo – com tristeza e sem surpresa – que o mesmo modelo moralista e hipócrita ocorre em quase todas as seitas ligadas ao cristianismo.

O próprio espiritismo, que se propõe mais aberto, crítico e relacionado à busca de respostas sobre a essência do universo sem desprezar a ciência, não consegue se libertar de sua origem branca, europeia e de classe média, colocando-se ao lado das forças conservadoras e reacionárias que tomaram o Brasil de assalto através de um golpe juridico-midiático. A maioria dos espíritas que conheço adotaram a lógica punitivista, conservadora e reacionária que Bolsonaro trouxe à tona, fazendo coro com a grande massa de evangélicos que engrossam o público alvo do atual mandatário da nação. Posso dizer o mesmo de muito católicos e até mesmo de umbandistas.

Por certo que a realidade dos espíritas é muito diferente daquela dos evangélicos. O espiritismo não possui rede de TV, igrejas suntuosas, “exércitos de Jesus”, milhões sendo distribuídos para pastores e dirigentes, muito menos possui uma bancada no parlamento, o que torna os evangélicos um poder político e econômico através dos inúmeros tentáculos que se espalham pela sociedade. Entretanto, a retórica dos líderes espíritas muito se aproxima do que existe de mais raso e moralista no discurso evangélico. Escutar um espírita defendendo a “família”, “a moral”, os “costumes”, ou despejando conceitos conservadores sobre a sexualidade, pouco difere do que é dito nos púlpitos das mega igrejas protestantes. Um exemplo disso é a adesão do Chico Xavier ao regime militar de 64 e o apoio explícito e público de Divaldo Franco ao lavajatismo.

A resposta para isso precisa ser corajosa. É mandatório limitar, controlar e vigiar o poder econômico e político das igrejas. É necessário impedir que estas instituições sejam locais de lavagem de dinheiro e corrupção. Junto com a “questão militar”, a “questão da mídia” e o “judiciário” os evangélicos no poder são um dilema que o Brasil laico precisará enfrentar antes que o país se torne um Evangelistão mais cruel e dogmático que sua versão do oriente. Para termos um país livre deste tipo de opressão é preciso que as religiões sejam confrontadas em sua perspectiva reacionária, preconceituosa, racista e violenta, que aceita um Deus corrompido, agressivo e vingativo e um Jesus que, “só não andava armado porque não tinha onde comprar uma pistola”.

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Mediunismo

Algumas perguntas aos espíritas e pessoas de religiões de matriz africanas:

Li o parágrafo de um livro que criticava o impedimento de que espíritos de pretos velhos se manifestassem em casas espíritas. Sei onde isso pode levar.

O espiritismo é uma doutrina de caráter filosófico e de consequências morais. Ao meu ver não é uma religião, mas reconheço a controvérsia. No dizer de Kardec, seu criador, ela é um acessório das religiões, e não mais uma delas. Kardec era cristão, filósofo e pedagogo. Pior: era branco e burguês, o que pode explicar a presença em sua obra – de meados do século XIX – de expressões do mais puro e cristalino racismo. Certo que fora do contexto expansionista e colonialista europeu seus escritos soam como barbaramente discriminatórios. Fica a ressalva dos contextos históricos e circunstanciais. De qualquer forma, o espiritismo e as religiões de matriz africana (Umbanda, Candomblé, Nação, Quimbanda, etc.) compartilham a ideia da comunicabilidade entre planos físico e extrafísico, a “mediunidade”. Mas as divisões de castas brasileiras fizeram com que o fenômeno “branco e europeu” ficasse com Kardec, um intelectual francês, e a manifestação popular ficasse com os negros e os referenciais relacionados com sua origem.

Ora, que profunda falta de perspectiva!! Quanto desprezo pelas forças sociais que condenam grandes massas à exploração ao arbítrio dos poderosos. O espiritismo – por sua origem intelectual, europeia e progressista – poderia ter sido a grande força renovadora das religiões no Brasil, mas se manteve atrelada ao religiosismo. No atual contexto religioso do nosso país, tão desigual e injusto, somente as religiões de matriz africana, por agregarem a massa de pobres e negros da nossa sociedade, têm a potencialidade de reverter a má imagem criada pelas religiões neste país. Só elas – e uma parcela minoritária dos católicos – tem massa crítica suficiente para produzir mudanças no cenário de desigualdade no Brasil. O resto cultiva a compaixão burguesa mais superficial e inócua. A propósito, o sincretismo religioso fez com que a Umbanda surgisse aproveitando dos símbolos e rituais do cristianismo hegemônico e misturando-os com a cultura de África, criando uma riquíssima manifestação religiosa miscigenada e valiosa da cultura nacional. O espiritismo, por seu turno, se manteve mais fiel aos seus propósitos racionalistas e apontando para as elites. Apesar da umbanda ser muito mais católica do que espírita em sua exterioridade, o mediunismo se expressa em ambas, mas com uma clara divisão de classes, cabendo à branquesia as manifestações mais “intelectuais” e à negritude o fenômeno mais popular. A religião mimetiza a divisão da Casa Grande e Senzala. Talvez seja possível imaginar que Zé Arigó, médium famoso dos anos 70, só se tornou famoso porque incorporava um médico alemão – Dr Fritz; fosse um caboclo curador e operador a lhe usar como “mula” e ninguém lhe daria importância.

Entretanto, a crítica a um pretenso impedimento de “manifestações” de pretos velhos me incomodou, em especial por uma crítica que faço ao mediunismo gratuito. Então eu pergunto, sem que nessa pergunta exista qualquer aversão ou preconceito: por que deveríamos dar voz a pretos velhos, ciganos ou outras pessoas falecidas em casas de Umbanda ou Casas Espíritas? Pelo contato e pela evidência do fenômeno? Se é pelos “ensinamentos” por que não chamar o preto velho que mora na esquina para vir falar de sua experiência na terra, suas lutas, suas dores, seus amores e angústias? O que há de especial no seus ensinamentos que se tornam valiosos só porque morreu? Dizer “ame o seu próximo”, “valorize cada minuto de sua vida” ou “cultive a caridade” passam a ter mais valor quando ditos por pessoas mortas?

Qual o real sentido do mediunismo? Receber conselhos clichês que a gente pode facilmente escutar numa mesa de bar dito por um garçom compassivo? Qual o real valor de produzir tais fenômenos? Em quê eles podem ajudar a nós ou aos desencarnados? A simples expressão retorcida de suas falas é – por si só – terapêutica para quem fala ou escuta? Que angústia seria essa que nos leva a procurar pretos velhos para oferecer direção e sentido à nossa vida? O mesmo que nos faz ler o horóscopo, procurar o padre ou consultar a cartomante? Se a crítica do texto é sobre um pretenso “racismo” na escolha dos consultores, então eu me associo. Se for uma crítica à nossa busca por conselheiros que nos digam apenas o que queremos ouvir, também. Entretanto, se for um estímulo ao mediunismo alienante, onde uma instância “mais próxima de Deus” toma decisões por nós, então estou fora.

Deixem os pretos velhos em paz.

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