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A Banalidade do Preconceito

O treinador do Palmeiras há alguns dias fez, durante uma entrevista para os profissionais de imprensa, uma declaração que correu pelo Brasil: “Isso não é uma equipa de índios. Há uma organização, e dentro dessa organização há liberdade para eles criarem….

Sabe por que ele diz isso com tanta naturalidade? Porque o racismo e o etnocentrismo europeu são absolutamente naturalizados por lá; eles não possuem a carga que existe por aqui, onde pelo menos se criou uma consciência sobre a barbárie da escravidão e uma certa vergonha disseminada por esta prática. Em Portugal (assim como na França) o racismo se expressa como a “invasão” de alienígenas a fragilizar sua cultura. A propósito disso, me veio à lembrança uma senhora no comboio no caminho entre a cidade do Porto e Lisboa falando abertamente que não suportava os escurinhos da “mouraria”, referindo-se aos torcedores do Benfica, clube que fica em Lisboa às margens do Tejo e que, segundo muitos racistas do norte de Portugal, é contaminada pelo sangue dos mouros – um tipo de ser humano escuro e “inferior”. Uma comentário como esse, feito por um brasileiro (e mesmo um americano) teria uma reação imediata de todos os presentes, mas parece que alguns ainda acham justo “passar pano” para este tipo de manifestação supremacista. Portanto, não deveria causar espanto treinadores “europeus” usarem este mesmo tipo de discurso naturalizado. Mas não será surpresa se aparecer a versão de que foi um “deslize” de alguém não compreende bem a forma do brasileiro se expressar?

Ora, sendo ele português e vindo de uma cultura responsável pelo extermínio de milhões de indígenas, deveria ser mais cuidadoso. Que ao menos seja hipócrita, e deixe essas demonstrações confinadas à sua casa, seus filhos e sua família. Humildemente, peço encarecidamente que não emporcalhem o futebol brasileiro com manifestações racistas desta natureza. Vou mais além: é possível que quando ele se refere aos “índios” ele na verdade está falando de todos nós brasileiros, inobstante as raízes europeias que alguns carregam. Para um europeu racista típico, as antigas colônias – sejam nas Américas, África, Oceania ou Ásia – eram os lugares para mandar os ladrões, os bandidos e os degredados, e talvez seja essa a imagem que ainda hoje este treinador cultua do Brasil. Talvez para o senhor Abel, o Brasil seja um país para pegar nossas riquezas – antes o ouro, agora se aceita “cash”- e depois fugir de volta para a civilização, um lugar de gente branca, limpa e organizada – exatamente o que os seus antepassados fizeram durante quase 4 séculos.

Apesar de eu ser um defensor fanático da livre expressão, eu acredito que manifestações de caráter racista precisam receber o adequado contraponto. Um sujeito como este não pode dizer estas coisas e não receber respostas que o façam – no mínimo – vir a público pedir desculpas. Sim, passados alguns dias já o fez, mas imagino sua surpresa ao notar que tratar os indígenas com total desprezo foi considerado inadequado. De qualquer modo, não podemos aceitar que personagens do futebol usem de sua notoriedade para espalhar grosserias e ataques aos habitantes originais dessa terra. E aqui deixo minha homenagem a um dos maiores centroavante da história do Brasil dos anos 60: Alcindo Martha de Freitas – o Bugre – cuja ascendência indígena era explícita, motivo de orgulho para si e sua família, mas que jamais foi tratado por nenhum treinador como um “desorganizado” por sua ascendência “bugre”. Segundo seu Raimundo, pai do garoto Alcindo, sua força vinha do “leite materno” e do “sangue de índio”, o que mais tarde se traduziria em centenas de gols pelo tricolor gaúcho, levando-o a ser convocado para a copa de 1966 ao lado de Pelé.

Por fim, é possível ser acusado de “exagerado” neste episódio, até mesmo de não ser compreensivo com o “deslize” do treinador português, mas não acho justo reduzir as críticas à sua fala como se fossem apenas manifestações passionais, derivadas de uma perspectiva clubista. Aqui no sul do Brasil o meu time do coração é treinado por um bolsonarista inveterado da pior espécie e eu não tenho nenhuma condescendência com esse tipo de sujeitos. Todavia, há que se separar os profissionais – com bons ou maus trabalhos – dos cidadãos em suas relações sociais. Aos primeiros que façam seu trabalho de forma honesta, mas dos últimos não podemos aceitar este tipo de fala racista.

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Afeganistão livre

Para ponderar sobre as repercussões da iminente retomada de Kabul e a expulsão dos gringos do Afeganistão.

Sim, partidos marxistas comemoram a vitória do povo afegão contra o Imperialismo, depois de vinte anos de lutas e 2 trilhões de dólares gastos no esforço de uma guerra inútil e perdida. Aliás: imaginem apenas o que poderia ter sido feito para a modernização do Afeganistão e seu povo se o dinheiro americano não fosse gasto para matá-los, mas para desenvolvê-los…

Mas, espere aí… teremos de volta os Talibãs? Ora, “eles são machistas, misóginos e bárbaros!!” Como em “The Kite Runner” veremos de novo o menino Amir tendo que fugir do seu país para se proteger dos abutres e pedófilos? Como podemos comemorar esta vitória sabendo que isso significará uma série de retrocessos, em especial para as mulheres?

Bem, minha posição pode ser entendida da seguinte maneira: se os Estados Unidos invadissem o Brasil e Bolsonaro fosse o presidente, a atitude óbvia e natural de um partido marxista revolucionário seria JUNTAR-SE a Bolsonaro no combate ao imperialismo! A questão Bolsonaro – assim como a questão Talibã – deverá ser resolvida internamente e a posteriori, mas a emergência em devolver o país ao seu povo é muito mais importante – e grave. Por certo que qualquer processo revolucionário significa muita dor, mas não há país que possa se desenvolver sendo dominado e escravizado, por “melhores” que sejam seus invasores. A guerra do Afeganistão e o surgimento dos Talibãs – “estudantes“, em pachto – se deu na esteira da entrada dos Estados Unidos na região após a retirada dos soviéticos. Os talibãs são apenas o resultado ruim de uma intervenção catastrófica, mas a expulsão do Império era uma questão de honra para o povo afegão.

O mesmo sentimento eu tive quando da revolução iraniana em 1979 e a queda do Xá Reza Pahlavi – com o surgimento do Aiatolá Khomeini e o fundamentalismo xiita. Da mesma forma, eu sabia que haveria um retorno a valores que se contrapunham a minha visão ocidental, mas ainda achei melhor que assim fosse do que ver a imposição de um estilo de vida ocidental em um país subjugado ao Império. O mesmo com a revolução haitiana ou cubana; é melhor ser livre e poder lidar com suas contradições internas do que manter-se escravo e incapaz de se afirmar como nação.

Ou ainda existe quem justifique as aventuras imperialistas que, a pretexto de levar “democracia” (leia-se expropriação dos recursos) e “modernidade” para países em crise, acabem por espalhar uma visão homogeneizante de sociedade baseada nos valores ocidentais? Continuamos achando justo espalhar a varíola do capitalismo e da “democracia liberal” em troca de oferecer camisa do Vasco para os índios e sutiãs para suas esposas? Bíblia para todos? Saias curtas para as moçoilas do Irã?

Além disso, o Brasil não tem nenhuma condição moral para apontar dedos em direção ao Afeganistão. Se existem problemas sérios em relação aos direitos das mulheres, não somos nós os mais adequados para acusá-los. Existem mais mulheres na política afegã do que no Brasil, e isso deveria nos fazer pensar o que os nossos “talibãs tupiniquins” – fanáticos fundamentalistas – estão fazendo com os direitos das mulheres por aqui. Comecemos esta batalha por aqui mesmo…

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