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Tempo

A culpa das falibilidades humanas, para além dos valores cultuados pelo sujeito, também se situa no tempo em que estas se expressam. Somos produto dos contextos, da cultura, das circunstâncias e das múltiplas pressões que provém do entorno. Estabelecemos com o mundo uma relação dialética: atuamos sobre ele e o modificamos, enquanto somos também por ele comandados. O machismo, a misoginia, a intolerância com a diversidade dos nossos pais e avós eram falhas onipresente em seu tempo, assim como a ganância, o capitalismo, o carnivorismo e a tolerância com a miséria são pecados de nossa época.

Culpar os personagens do passado por não possuírem a clarividência que não era de sua época é cair na sedução do anacronismo. “As virtudes são dos homens os pecados de seu tempo”, já dizia meu pai sobre a necessária condescendência com as falhas morais de figuras do passado. “Lembre que um dia, em pouco tempo, você será julgado pela mesma régua. Seja compreensivo com a falhas de outros tempos. Estes, para quem apontas o dedo, não ganharam do mundo a mesma luz que você recebeu para iluminar o caminho”, explicava ele.

Olhar para a história – recente ou distante – e censurar os personagens do passado é como olhar para um bebê e dizer: “Como pode ser tão tolo a ponto de não saber sequer andar ou falar?”.

Bertrand Epstein, “Time after Time – ethics and behavior in medieval times”, ed. Labirinth, pag. 135

Bertrand Epstein é um historiador neozelandês de origem judaica nascido em Tauranga, em 1965. Fez seu estudos na Bethlehem College, e posteriormente cursou a Victoria University of Wellington, formando-se em história. Tornou-se professor de História Antiga nessa universidade em 1990, época em que publicou seu primeiro livro, baseado em sua tese de doutorado sobre a sexualidade dos Césares, chamado “Pink, glitter and lipstick – sexuality in the court of the Roman Empire”, escrito em parceria com Edmon Shapke. Tem uma vasta produção científica e muitos artigos publicados sobre os costumes mundanos das populações medievais, a exemplo de outros autores como Georges Vigarello (O Limpo e o Sujo), Jacques Le Goff (A Civilização da Europa Medieval) ou Norbert Elias (O Processo Civilizatório). Mora em Wellington com sua mulher Anne e seus filhos Jeremiah e Maritza.

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Afeganistão livre

Para ponderar sobre as repercussões da iminente retomada de Kabul e a expulsão dos gringos do Afeganistão.

Sim, partidos marxistas comemoram a vitória do povo afegão contra o Imperialismo, depois de vinte anos de lutas e 2 trilhões de dólares gastos no esforço de uma guerra inútil e perdida. Aliás: imaginem apenas o que poderia ter sido feito para a modernização do Afeganistão e seu povo se o dinheiro americano não fosse gasto para matá-los, mas para desenvolvê-los…

Mas, espere aí… teremos de volta os Talibãs? Ora, “eles são machistas, misóginos e bárbaros!!” Como em “The Kite Runner” veremos de novo o menino Amir tendo que fugir do seu país para se proteger dos abutres e pedófilos? Como podemos comemorar esta vitória sabendo que isso significará uma série de retrocessos, em especial para as mulheres?

Bem, minha posição pode ser entendida da seguinte maneira: se os Estados Unidos invadissem o Brasil e Bolsonaro fosse o presidente, a atitude óbvia e natural de um partido marxista revolucionário seria JUNTAR-SE a Bolsonaro no combate ao imperialismo! A questão Bolsonaro – assim como a questão Talibã – deverá ser resolvida internamente e a posteriori, mas a emergência em devolver o país ao seu povo é muito mais importante – e grave. Por certo que qualquer processo revolucionário significa muita dor, mas não há país que possa se desenvolver sendo dominado e escravizado, por “melhores” que sejam seus invasores. A guerra do Afeganistão e o surgimento dos Talibãs – “estudantes“, em pachto – se deu na esteira da entrada dos Estados Unidos na região após a retirada dos soviéticos. Os talibãs são apenas o resultado ruim de uma intervenção catastrófica, mas a expulsão do Império era uma questão de honra para o povo afegão.

O mesmo sentimento eu tive quando da revolução iraniana em 1979 e a queda do Xá Reza Pahlavi – com o surgimento do Aiatolá Khomeini e o fundamentalismo xiita. Da mesma forma, eu sabia que haveria um retorno a valores que se contrapunham a minha visão ocidental, mas ainda achei melhor que assim fosse do que ver a imposição de um estilo de vida ocidental em um país subjugado ao Império. O mesmo com a revolução haitiana ou cubana; é melhor ser livre e poder lidar com suas contradições internas do que manter-se escravo e incapaz de se afirmar como nação.

Ou ainda existe quem justifique as aventuras imperialistas que, a pretexto de levar “democracia” (leia-se expropriação dos recursos) e “modernidade” para países em crise, acabem por espalhar uma visão homogeneizante de sociedade baseada nos valores ocidentais? Continuamos achando justo espalhar a varíola do capitalismo e da “democracia liberal” em troca de oferecer camisa do Vasco para os índios e sutiãs para suas esposas? Bíblia para todos? Saias curtas para as moçoilas do Irã?

Além disso, o Brasil não tem nenhuma condição moral para apontar dedos em direção ao Afeganistão. Se existem problemas sérios em relação aos direitos das mulheres, não somos nós os mais adequados para acusá-los. Existem mais mulheres na política afegã do que no Brasil, e isso deveria nos fazer pensar o que os nossos “talibãs tupiniquins” – fanáticos fundamentalistas – estão fazendo com os direitos das mulheres por aqui. Comecemos esta batalha por aqui mesmo…

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Gorjeta

Uma das coisas mais curiosas da cultura americana é a tradição da “gorjeta”. Para as pessoas do resto do mundo, em especial do Brasil, ela é muito curiosa e interessante.

Não tenho interesse em fazer julgamentos da cultura americana, pois existem inúmeras “manias” brasileiras que poderiam sofrer este tipo de crítica. Entretanto, poucas coisas revelam melhor as características do povo americano do que isso.

Depois de um jantar, uma corrida de táxi, um serviço qualquer de conserto, uma babá ou um serviço de manobrista sempre surge a pergunta e a angústia entre as pessoas: “Quanto devo dar de gorjeta?”. Nos restaurantes e táxis a regra é 10 a 15% da despesa (na Califórnia restaurantes estabelecem 20%), mas nos outros lugares o valor pode flutuar. De qualquer maneira, não dar gorjeta é algo muito rude, e muito mal visto pelos americanos.

Curiosamente, médicos, advogados, engenheiros e alguns profissionais de nível superior ou que ganham bem pelo seu trabalho achariam absolutamente estranho o fato de receber um “algo a mais” por fazerem seu trabalho. Então pergunto: qual o sentido de dar uma gorjeta, ou “una propina”?

Os americanos, mergulhados em uma cultura que introduz essa prática desde muito cedo, sempre usam a mesma explicação: “Ora, esses trabalhadores ganham muito pouco e muitos deles vivem só das gorjetas”. É curioso como essas pessoas veem com a maior naturalidade o fato do trabalhador ser explorado pelo seu patrão e a transferência da responsabilidade de uma vida minimamente digna ser automaticamente transferida para o cliente de um restaurante ou de uma viagem de Uber.

Outro argumento é que é um “adendo” para um “bom serviço”, como se servir bem alguém em um restaurante, ser cuidadoso ao dirigir ou cuidar bem dos seus filhos não fosse exatamente a essência do trabalho realizado e não um “plus” oferecido pelos profissionais que o realizaram.Nesse aspecto a gorjeta se assemelha ao “bicho” por vitória que existe no futebol, como se o esforço para vencer não fosse a única obrigação que se exige de um jogador.

Minha pergunta é: por que aceitam com tanta naturalidade a transferência de responsabilidade de pagamento dos capitalistas para os clientes? Por que os americanos dizem “Se você se nega a dar uma gorjeta é um sujeito cruel, pois já trabalhei de garçonete e sei como elas recebem mal”.

Caraca!!! Como não conseguem perceber que o mau pagamento NÃO é um problema do cliente, mas do PATRÃO!!!

Creio que a essência psicológica da gorjeta está na sensação de que, se você pagar mais (usar a força do seu capital) poderá ter um tratamento diferenciado, isto é, melhor do que o que é oferecido aos outros. O salário do funcionário, por ser igual para todos naquela função, não permite que você exija um serviço “especial”, “personalizado”, exatamente aquilo que você acha que merece. A gorjeta lhe dá a sensação de ser especial, de ter um tratamento acima do comum.

PS: estou escrevendo aqui porque quando quis mostrar isso para amigos americanos alguns se ofenderam com a minha opinião sobre essa prática – que eles acham a ação mais caridosa e gentil do mundo – e as respostas ásperas que recebi fizeram com que a autora do post o apagasse. Outra curiosidade: questionar ações que julgamos nobres, levantando-lhes o véu, pode parecer ofensivo para quem acha que a caridade (mesmo que aparente) é uma ação inquestionável. Se eu fosse capitalista americano abriria um bar que traria no menu: “Nossos funcionários não aceitam gorjeta porque não são explorados e seu salário é muito bom”.

PS1: uma vez na Disney vi uma bandinha passar dentro de um parque e uma menina de uns 4 anos foi até eles e deu uma nota de 5 dólares. O músico escondeu a nota atrás do corpo, procurou a mãe da menina e devolveu o dinheiro. Interessante, não?

PS2: Gorjeta vem de “gorja“, sinônimo desusado de garganta, de onde proveio também o gorjeio dos pássaros. A gorjeta era uma pequena quantia que se dava a quem tivesse realizado trabalho extenuante e cansativo, a fim de que ele comprasse uma bebida para molhar a garganta.

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