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Violência

Você achou justa a ação do Hamas em 7 de outubro?

Essa é uma das perguntas mais prevalentes nos últimos tempos, mas serve como régua moral para classificar aqueles que se posicionam sobre o drama da Palestina. Em primeiro lugar, nada é “justificável” numa guerra, mas tudo que nas guerras ocorre precisa ser colocado em contexto. Não podemos nos perder em armadilhas lógicas. Os mais de 75 anos de massacres não poderiam ser interrompidos com abaixo-assinados ou ações nos tribunais, até porque Israel sempre desprezou as decisões da ONU. Além disso, é preciso reconhecer que se não fosse pela violência não haveria sequer a revolução francesa burguesa de 1789, que acabou com quase todas as monarquias europeias; sem a tomada violenta dos revolucionários Franceses e hoje seriam ainda súditos do Rei, e a democracia apenas um sonho e uma utopia. Culpar a violência reativa do Hamas e nada dizer sobre o holocausto palestino continuado é a narrativa racista e supremacista do sionismo.

Sim, acho que o combatentes reunidos da resistência palestina agiram de forma justa, mesmo que eu seja um proponente da paz. Achar que o Hamas é um grupo terrorista – como faz a imprensa burguesa – é jogar o jogo do imperialismo. O Hamas lutou com as armas que eram possíveis. Aliás, a sua ação no 7 de outubro será descrita no futuro como uma das maiores ações de guerra da história moderna. Esta ação, apesar das vítimas produzidas pelo exército fajuto de Israel, era o único caminho possível para a paz, pois a libertação de um povo subjugado há mais de 70 anos jamais se faria com tapinhas nas costas. O próprio Nakba – a expulsão forçada de 750 mil palestinos de suas casas – só aconteceu através de ações de terrorismo e de massacres por parte do nascente estado de Israel, as quais se mantém até hoje. Assim sendo, a resposta Palestina só poderia ser violenta, até porque todas as tentativas pacíficas falharam escandalosamente. Todos os acordos tentados com os sionistas foram descumpridos por Israel, porque jamais houve qualquer interesse na paz ou na criação de dois estados independentes e soberanos. Criticar a reação palestina às sete décadas de assassinatos, abusos, torturas, prisões arbitrárias, limpeza étnica e estupros é aceitar a narrativa do Império e o discurso vitimista do sionismo. O Hamas apenas agiu de acordo com as regras de violência que os próprios sionistas estabeleceram ao roubar as terras palestinas.

Para manter a ocupação de Israel e a brutalidade desumana como sempre foi praticada foi necessário controlar a opinião mundial através do uso da imprensa burguesa. Essa é a razão pela qual os massacres do Nakba só há pouco foram descobertos pelas pessoas do mundo inteiro. Hoje em dia, com a proliferação de smartphones, ficou impossível esconder a realidade do genocídio que está sendo cometido contra as populações oprimidas. Por esta razão, desde o princípio dos massacres Israel procura atingir a imprensa. Eles sabem que é preciso impedir a realidade chegar à todos no planeta. Quando o mundo inteiro puder saber a verdade, o racismo e a essência pútrida do sionismo supremacista acabarão imediatamente. Exterminar o modelo opressor de Israel é uma tarefa de todo o cidadão do mundo. A Palestina somos todos nós. Ao mesmo tempo em que os jornalistas são alvos preferenciais dos genocidas sionistas, canalhas mequetrefes de Hollywood se empenharam para impedir que a jovem e premiada jornalista palestina Bisan Owda concorresse ao Emmy, entre elas Selma Blair e Debra Messing, duas conhecidas sionistas que apoiam o massacre de crianças e a morte indiscriminada de palestinos. Felizmente para a parte saudável do planeta, esses monstros não conseguiram levar adiante seu projeto de silenciamento e It’s Bisan from Gaza and I’m Still Alive, – Aqui é Bisan de Gaza, e ainda estou viva – venceu o Emmy como melhor documentário.

Portanto, essa crítica ao “terrorismo” do Hamas – como se o Estado de Israel não fosse uma entidade ilegal e terrorista por excelência – é tosca e historicamente injusta, além de ser mentirosa, mas apenas sobreviveu por tantos anos porque existe um controle imenso sobre a imprensa internacional. Os mesmos jornais que acusam a Rússia de ser “anti-LGBT”, ter invadido a Ucrânia sem razão, ou que chamam Maduro e Xi Jinping de “ditadores” acusam os guerreiros que lutam pela liberdade da palestina de terroristas, sem mencionar o terror de Estado que é praticado pela potência de ocupação há mais de 7 décadas. Esqueceram de noticiar o que agora é conhecimento oficial: a maior parte das mortes no ataque de 7 de outubro 2023 foram causadas pelos helicópteros israelenses, usando a “Diretiva Aníbal”. E as mortes causadas pelo Hamas – que por certo ocorreram – foram atos de resistência à uma opressão obscena e continuada, violenta e indigna. Agiram a exemplo dos “freedom fighters” da Argélia, da Resistência Francesa, dos Vietcongs, dos russos em Leningrado e dos coreanos na ocupação japonesa e americana. Em verdade, “Terrorismo” é a forma como os opressores chamam aqueles que resistem aos seus abusos, mas eles são os guerreiros da liberdade do seu povo, e usam as ferramentas possíveis para empreender esta luta.

Aqueles que falam das “vidas inocentes” que foram perdidas na ação de resistência do Hamas respondam estas perguntas simples: digam até que ponto aguentariam o abuso dos colonos israelenses, grupos formados pela escumalha da Europa e da América. Depois que seus pais fossem torturados, seus irmãos fossem mortos, sua irmã abusada e seu filho preso, vocês continuariam a pedir “licença” aos invasores? Continuariam a apostar no “amor”? Tentariam, pela milésima vez, uma alternativa pacífica? Ou usariam armas semelhantes àquelas usadas por quem lhes massacra para, pelo menos, manter o que lhes resta de dignidade e para salvar a vida da sua família? Respondam com honestidade: qual seria o limite? Até quando suportariam? Não é aceitável que tenhamos uma postura ingênua sobre as forças materiais e econômicas que produzem os conflitos. Num contexto de agressões e abusos continuados apenas a reação violenta seria capaz de salvar a Palestina. Quem acredita em “legitima defesa” do sujeito precisa aceitar a “legítima defesa do povos”, até porque a própria ONU reconhece o direito de resistência violenta e armada dos povos ocupados!!! A liberdade é uma conquista dos homens, e para isso devem usar as armas que estiverem ao seu alcance.

Hamas e Palestina, neste momento, são a mesma coisa. O Hamas representa o maior, mais armado e mais capacitado grupo de defesa da Palestina. Portanto, defender a Palestina significa dar apoio irrestrito ao Hamas que, pela sua história e pelas próprias eleições realizadas em Gaza, é o legitimo representante das aspirações de liberdade do povo palestino. Qualquer um que tente deslegitimar o Hamas, acusando-os de “oprimir” o povo palestino, estará mentindo.

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Morte e dor

Ao voltar para casa fomos surpreendidos por uma confusão na esquina próxima de nossa casa. Pensávamos ser um acidente, mas depois de firmar a vista no breu que recém se avizinhava, vimos que um corpo jazia estirado ao lado de uma motocicleta. Minha filha viu uma pistola na mão de um jovem e grita. Sim, um assalto seguido de morte. Desta vez, o ladrão imprudente levou a pior: havia assaltado um policial civil, que reagindo desferiu três tiros mortais à queima-roupa. Estacionei meu carro no meio fio e corri para acudir o jovem esticado no asfalto. Tarde demais; minha pressa apenas me permitiu presenciar seus últimos suspiros. Os olhos revirados, a boca descorada, o rubro do sangue a colorir de dor o piche negro da rua. O pulso já findava, enquanto os dedos cor de cera se reviravam. Em vão eu tentava achar o pulsar de alguma artéria que resistisse ao destino trágico. Nada, nada…

Ao meu lado o policial à paisana explicava os detalhes da abordagem e sua pronta reação. Pediu que eu não me assustasse com a arma que ainda mantinha em punho. Eu entendi sua preocupação e expliquei que era médico, e que o menino aos meus pés estava se esvaindo em sangue.

O jovem não tinha muito mais do que 20 anos. Pardo, da cor da exclusão. No bolso do casaco pouco, uma navalha. Tiro o capacete envolto em sangue e sua cabeça encosta o chão escuro. “Não vai voltar para casa, para sua mãe e sua família. Não vai saber o resultado do jogo de domingo. Não saberá se a menina que ele tanto gosta um dia vai aceitar uma carona em sua moto. Não dará um abraço derradeiro em seu pai, e nem poderá pedir desculpas para o irmão com quem brigou. Um telefonema na entrada da noite avisará a família, que conformada, sequer vai se surpreender. Havia muito que todos se preparavam para uma ligação como esta“.

Um ônibus passa vagarosamente no contrafluxo, de onde um cobrador grita: “Tem mais é que matar!!“. Não me contive e gritei: “Cale a boca, seu animal. Tenha respeito“. Zeza e Bebel fazem coro comigo, com a voz embargada. Ele não me entendeu, e continuou a vociferar como um cão colérico. Nada havia além ódio naqueles gritos. Nenhuma consternação pelo jovem morto, nenhuma ideia de que uma vida acabava de se desfazer de forma estúpida.

O policial, ao contrário do que eu poderia esperar, estava tenso. Sabia que sua ação foi para preservar sua própria vida. O menino da moto estava armado e ameaçante. Não havia o que fazer, era matar ou morrer. Mesmo assim, ele sabia que alguém havia morrido por suas mãos, e seu semblante denunciava este peso.

A polícia chega ao local, e eu desisto de procurar algum sinal de vida no pescoço magro do menino. Ao longe escuto as sirenes da ambulância. A turba de passantes se aproxima para dar vazão à inescapável curiosidade mórbida das massas. Levanto-me, aperto o ombro do menino e digo: “Siga em paz“.

Ao voltar para o carro Zeza e Bebel tremiam ao meu lado; ninguém consegue dizer nada. Mas havia uma revolta, não contra o crime, mas contra a insensibilidade.

Será que ninguém notou que um menino morreu?

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