Os ânimos ficaram tensos ultimamente e algumas manifestações de selvageria explícita ocorreram por parte de colegas na Internet a partir das iniciativas do governo de coibir o avanço – até então impossível de sustar – das cesarianas. É preciso compreender o momento histórico em que estão ocorrendo. Primeiramente, os valores idealizados pelos proponentes das mudanças são apenas metas distantes pelas quais deveremos nos guiar, sem entendê-las como a obrigação de um valor fixo. Como eu digo há vários anos, este tipo de imposição só poderia nos levar à tragédia. Já não existem mais taxas de 15% de cesarianas, no mundo todo (exceção nos locais onde impera a desassistência), mas isso é em função do medo, da indústria, dos ambientes hospitalares, da pressão e do pânico dos profissionais. Em outras palavras, “não existe sujeito sem cultura e nem cultura sem sujeito“. Somos os algozes e as vítimas do mundo que construímos.
O pequeno universo que nos circunda molda os sujeitos que ali transitam, e estes, dialeticamente, transformam o ambiente que os contém. Em lugares onde a tensão no ar é tão densa que se pode cortá-la com uma faca, os partos serão sentidos de uma forma completamente diferente daqueles que ocorrem onde a suavidade acaricia nossas ações, as pacientes bailam ao som de seus hormônios e a descida do bebê pelo canal materno é embalada pela música que emana de seus gestos delicados. Posso me aventurar a pensar que, houvessem ambientes melhores e as taxas cairiam com muito mais facilidade. Minha ideia – e minha proposta – é cambiar o “campo simbólico” da cultura circundante, e não ingenuamente trocar apenas médicos ou hospitais. A mudança deve atingir lentamente todas as consciências.
Isso explica a razão de a parteira Ina May ter 2% de cesarianas em “The Farm“, porém posso ter certeza que ela teria 15 ou 20% de incidência de cesarianas por “falha de progressão” caso morasse em alguma grande cidade brasileira e tivesse que atender nos hospitais daqui, onde impera o medo e a tensão.
A Holanda também é do mundo ocidental, onde da mesma forma puderam entrar – mesmo que de forma menos violenta – a cultura do medo e a tecnocracia. Até ela sofre as agruras do mundo moderno.
O momento é de muita tensão, os médicos se sentem acuados, pressionados, culpados e desprezados. É como você reclamar do serviço que eles fizeram nos últimos 300 anos e achar que todas as conquistas da obstetrícia poderiam ter um resultado melhor. Isso é escutado como ofensa, e não como um convite à reflexão e à mudança. Alguns profissionais, normalmente os mais limitados, partem para a violência verbal, sem perceber que tais palavras apenas demonstram o despreparo para lidar com sua própria autoestima ferida.
A culpa não é dos médicos, mas da própria medicina e seu olhar objetual sobre os pacientes. Se esta objetualização pode ser entendida em um politraumatizado, ou numa paciente cirúrgica, ela é absolutamente anacrônica e inadequada em uma mulher saudável parindo seu filho. Como eu disse há alguns dias, a melhor metáfora para essa situação na atualidade é imaginar a cena do marido que recebe a notícia de que sua mulher vai deixá-lo.
Passada o susto e o choque da revelação ele, ainda surpreso, exclama:
– Mas porquê? Nada te falta. Tudo que fiz foi por você. Eu me dediquei por anos, trabalhando como um escravo, para que nada faltasse neste lar. Minha dedicação sempre foi para que sua vida fosse melhor, fosse tranquila, e que você pudesse ter seus filhos com segurança. Por quê agora me desprezas? Por quê me jogas fora como um papel velho, um pano imundo e imprestável? O que fiz de tão mal para ser expulso assim? Eu não bebo, não te maltrato e trago tudo para dentro desta casa!! Porque, afinal, você está insatisfeita?
Ela sorri com lábios tristes porque entende sua dor. Sabe que para ele as angústias e desejos – as quais carrega como um pesado fardo – são incompreensíveis. Para seu marido a mulher que sempre teve ao lado era um belo bibelô, uma linda boneca para satisfazer seus olhos. Para isso verdadeiramente se dedicava a ela, oferecendo-lhe o melhor que podia, com todo o seu amor e afinco. Entretanto, durante todos esses anos, mesmo que houvesse uma honesta atitude de ajuda, ele jamais conseguiu olhar aquele relacionamento pelos olhos de sua mulher. Qualquer reclamação de sua bela esposa seria incompreensível, porque a relação com ela sempre foi marcada pela objetualidade. Nunca, por nenhum momento, ele se permitiu perguntar: “afinal, o que você verdadeiramente deseja?“.
Ela se aproxima dele, o abraça e diz:
– Obrigado por tudo. Obrigado por toda a sua dedicação, seu zelo e seu amor, mas agora permita-me voar.