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Bolhas

Cena 1: Meu avô morreu aos 94 anos na casa do meu pai. Estava cansado e tinha problemas respiratórios crônicos. Morreu de gripe. Acordou pela manhã e avisou o meu pai que era seu último dia. Distribuiu seus pertences – entre verdadeiros e imaginários – para os filhos e netos. No meio da tarde, e com muita dificuldade respiratória, chamou meu pai e disse “Deu…”. Fechou os olhos, expirou pela última vez e foi encontrar minha avó no outro plano.

Até pouco antes de morrer mantinha o hábito de tomar whisky “on the rocks” todas as tardes. Um dia uma parente notou o copo servido ao seu lado e tentou retirá-lo discretamente. Quando viu, meu avô puxou o copo para si e disse “não mexa no meu scotch!!”, ao que ela falou “não faz bem para você tomar isso todos os dias”. Ele respondeu com aquela cara vermelha e mau humorada dos ingleses: “Tenho mais de 90 anos e vou partir em breve. Deixe-me ao menos morrer feliz”.

Cena 2: Trabalhei muitos anos com pacientes renais em uma clínica de diálise. Os pacientes tinham dietas severas, com ausência quase total de sal, o que torna a comida sem sabor algum. Havia entre eles um garoto de 20 anos que morava na periferia da minha cidade. Era dependente químico, tinha um bebê recém nascido e os rins destruídos. Sobrevivia pela hemodiálise que fazia duas vezes por semana. Mais de uma vez fui buscá-lo no banheiro onde se escondia para comer pó de K-Suco. Uma segunda-feira sua esposa ligou para a clínica dizendo que ele não viria fazer a diálise. Montou uma festa em casa no fim de semana onde bebeu, comeu de tudo e avisou que seria seu último dia de vida. Disse “não quero mais viver uma vida sem gosto”. Morreu no domingo à noite.

Cena 3: o Garoto da Bolha, filme com John Travolta e baseado em fatos reais. Ausência de funcionalidade do sistema imunológico, o que o obrigava a viver dentro de uma bolha. O filme inteiro é sobre a vida insuportável e solitária do garoto, preso em seu mundo de plástico. A cena final do filme é sua fuga da bolha e o contato com o mundo de verdade.

Essas histórias me vem à memória quando acusam de irresponsáveis (com razão) as pessoas que resolvem fazer festa, abraçar, beijar, transar, ir à praia e fazer compras. Talvez o pensamento simplista delas seja “de que vale a vida sem poder vivê-la de verdade?”.

Para mim é fácil apontar o dedo para essa gente, já que tenho os genes da fobia social e vou passar o resto da minha vida isolado e solitário, mas o que dizer das “pessoas das pessoas”, os extrovertidos, os amorosos, os carentes e os amantes? É justo acusá-los de exigirem o direito de viver uma vida feliz, ao lado de quem amam?

Sim, eu sei. A pandemia, o afastamento, o vírus, a segurança dos OUTROS e não apenas a sua, etc. Tudo isso é verdade é não há como discordar. Eu apenas acho errado condenar ao inferno as pessoas que se rebelam contra uma vida infeliz e encarcerada. Se podemos condenar as atitudes que negligenciam a epidemia também acho que é justo entender quem apenas sonha com uma vida miseravelmente normal.

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À Esquerda

Existem, sim, muitos médicos de esquerda no Brasil, em especial na medicina social, medicina de família, epidemiologia e … paramos por aí­. Entretanto, a gigantesca maioria dos médicos do Brasil é direitista, conservador e – em alguns casos – claramente fascista – como o “dignidade medica” acabou trazendo à tona.

Porém, como poderíamos imaginar algo diferente? Em uma fala que apresentei em 3 países diferentes (Estados Unidos, Escócia e China) mostrei que o estudante de medicina médio brasileiro é branco (87%), mora com pais que ganham 30 salários mínimos mensais (30%), 40% tem irmão ou pai médico, 75% tem pai com curso superior e 65% tem a mãe com ensino superior completo. Como esperar que esses estudantes, egressos da elite brasileira, não reproduzissem as atitudes e os valores do estrato social que os acolheu desde o nascimento? Seria uma brutal ingenuidade esperar da corporação médica algo que atingisse em cheio seus valores mais profundos. Não virá daí­ a linha de frente das reformas que esperamos.

Por esta razão, para mudar a face da medicina brasileira (especializada, elitista, burguesa, branca e conservadora) é essencial mudar a forma de ingresso. É preciso criar cursos populares de medicina voltados aos estudantes pobres e da periferia, com currículo de primeiro mundo, especializado em saúde primária e nos 4 campos fundamentais: pediatria, gineco-obstetrícia, clínica médica e cirurgia para inundar o Brasil de clínicos gerais e médicos de família.

Esse é um dos caminhos – ou um dos mais desafiadores – para sepultar de vez uma medicina burguesa e que atende aos interesses das elites e dos grandes conglomerados hospitalares e farmacêuticos.

Ninguém duvida de que é importante ter um ensino médio de qualidade, mas por que devemos achar que apenas os alunos de periferia e mais pobres precisam disso para cursarem Medicina? Qual a relevância disso para universalizar o ensino da medicina? Minha tese é de que devemos democratizar o ensino para que tenhamos pessoas de todas as classes atendendo a população, e não apenas aqueles produzidas nas camadas mais abastadas e brancas da população.

Não vejo também qualquer problema em treinar alunos em universidades públicas, privadas ou populares para a realização de procedimentos de alta complexidade? Porém, tenhamos em mente que “cirurgias robóticas” ou o uso de tecnologias caras e sofisticadas tem impacto zero na saúde da população; é uma estratégia para auxiliar um número extremamente restrito de pacientes. Pensemos do ponto de vista do incremento de saúde após a introdução de uma técnica médica qualquer (Rx, ultrassom, aspirina, cirurgia robótica, antibióticos, tomografias, quimioterápicos, etc…) e entenderemos que adicionar açúcar a uma solução salina tem muito mais impacto na saúde das populações do que tecnologias sofisticadas e caras como ecografia, MRI e tantas outras.

Estas atitudes – muitas vezes simples e baratas – melhoraram a vida de milhões de pessoas, e não apenas de alguns poucos. Muito mais importante, para qualquer país do mundo – desenvolvido ou não – é uma excelente atenção básica à saúde, com recursos adequados e de forma preventiva e não intervencionista. O que precisamos deixar para trás é um paradigma médico ultrapassado e mercantil, baseada na sofisticação, no dinheiro, no mercado e para a atenção de pouquíssimas pessoas, quando o que precisamos é de uma visão de medicina que seja útil e adequada para todos.

Falta Ivan Illich nas faculdades de Medicina…

“Vidros nas janelas e cuecas limpas fizeram mais pela saúde do mundo do que todos os remédios jamais produzidos pela indústria”

Ivan Illich

Podemos ainda aceitar que o paradigma americano é adequado para o mundo? Pois tenhamos em mente que os Estados Unidos é o 50o país em mortalidade materna e o 52o em mortalidade neonatal, e tem resultados piores do que qualquer país europeu – incluindo aí Albânia, Grécia e Ucrânia. Os Estados Unidos é um dos poucos países (5 apenas) em que a mortalidade materna aumenta!! É o mesmo país onde se pode fazer “cirurgias robóticas”, mas a assistência é restrita a quem pode pagar, pois não é um direito básico. Além disso, são cirurgias “espetaculares”, geram encantamento e deslumbramento, mas na prática não são capazes de modificar o perfil de saúde de nenhuma população. Aqui, onde estou, só a classe média abastada consegue ter médicos na família, pois os custos são estratosféricos. Esse é um dos piores modelos de saúde do mundo e está desmoronando (leiam as notícias daqui!). É possível acreditar que ele pode ser paradigma para alguma coisa apenas porque tem sofisticação tecnológica para poucos, mesmo quando fica claro que não soluciona os problemas de saúde da  gigantesca maioria da população??

Pensemos bem; precisamos romper o preconceito sobre os alunos de periferia que ingressam na universidade, principalmente fazer uma crítica aos argumentos que batem na velha tecla do “perfil de entrada“, a mesma queixa que se mostrou falha na questão das cotas. Os alunos cotistas pobres tem desempenho igual ou superior ao dos outros alunos, e isso é uma realidade já bem conhecida. O que os argumentos anti-cotistas insinuam é que alunos pobres ou de periferia não teriam condições de exercer uma medicina sofisticada, o que é muito arriscado de dizer, já que todas as evidências apontam para a direção oposta.

Quanto à qualidade de vida, alguém ainda acredita que isso é conseguido com cirurgias de alta complexidade? Não, esta é uma visão que está redondamente equivocada. Isso se consegue com educação para a saúde. Comida, emprego, qualidade de relacionamentos, medicamentos simples e saneamento básico. São os engenheiros e os políticos que geram saúde, não os médicos. Somos muito bons para tratar doenças, mas pouco sabemos sobre promover saúde. Aliás… saúde não dá dinheiro, só doenças dão. Essas cirurgias e intervenções dispendiosas, por mais que tenham, SIM, espaço na medicina contemporânea, não são a solução para a saúde da população, mas apenas para poucos casos selecionados. Por certo que devemos ter médicos preparados para seu uso, mas jamais acreditar que é a utilização dessas técnicas que fará a diferença na qualidade de vida de todos.

Para finalizar, a ideia de que há uma necessidade para que a medicina se mantenha com o perfil aristocrático e elitista que eu apontei precisa ser criticada. Não acredito que avançaremos com médicos tão divorciados da realidade brasileira, onde o fosso que os separa da população é tão grande a ponto de não reconhecerem seus idiomas. Os estudantes de medicina oriundos das classes populares deverão ter seus custos pagos pelo Estados e terão o compromisso de dedicação exclusiva aos seus estudos. As necessidades sociais que eles tem não podem ser usadas contra eles, mas como um desafio que a sociedade como um todo precisa transpor.

Além disso, as universidades que preparam estes médicos aos poucos deverão se preparar para a medicina do século XXI, que não vai apostar na sofisticação tecnológica e no mercantilismo, mas na racionalidade dos recursos (leia sobre “slow medicine“, a nova onda, e sobre Saúde Baseada em Evidências!!!) para a atenção da população. Isso sim vai gerar uma onda positiva de saúde, e não apenas o enriquecimento perverso das máquinas de doença geradas pela busca insana de lucro através do sofrimento.

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