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Vozes

É possível falar de humanização do nascimento sem ser político? Seria a humanização da atenção ao parto um tema técnico, científico, positivo, que nada tem a ver com as questões sociais ou com temas mais abrangentes como direitos humanos, reprodução e sexualidade e mesmo o direito à vivência sexual plena?

Lembro de um encontro traumático com um membro do Conselho de Medicina quando este, do alto de sua imperial arrogância, disparou: “Não existe ideologia em Medicina, apenas boa ou má prática médica“. Ou seja: para este conselheiro, a medicina é uma expressão positiva da atividade humana; aplicá-la pressupõe que a verdade precisa ser comprovada a partir de técnicas científicas válidas. Além disso, traz a ideia de ciência cumulativa, ou seja, transcultural, atingindo toda a humanidade, inobstante qual cultura surgiu ou se desenvolveu. Parte da ideia de corpos sem alma, sem história, sem subjetividade, onde um muro se ergue entre os aspectos físicos e as questões anímicas. Por certo, o que este profissional pretende se contrapõe a experiência cotidiana de milhões de médicos que se deparam com as características subjetivas de cada sujeito que os procura. Além disso, é evidente que na manifestação de doenças concorrem aspectos emocionais, psicológicos, afetivos e sociais. Desta forma, na análise das doenças como manifestações de transtornos sociais, a política é uma das ferramentas mais importantes para compreender e tratar o adoecimento.

Partindo deste pressuposto – a influência da cultura e da política na saúde e na doença – eu não acredito ser possível defender a humanização do nascimento sem assumir uma posição ideológica, o que não significa necessariamente adotar uma posição partidária. Mais ainda: eu considero o abandono do debate político um dos grandes erros cometidos pelo movimento da humanização do nascimento nos últimos 25 anos. Sem o saber, adotamos uma posição claramente revisionista, almejando uma ilusória “conciliação de classes” com os detentores do poder, sem nos darmos conta de que, assim como em qualquer luta social, aqueles que tem nas mãos o poder jamais o entregam de forma pacífica. Além disso, a revolução do parto só vai acontecer quando abandonarmos as ilusões juvenis e assumirmos a necessidade de um enfrentamento firme. Sem entendermos que o “direito de parir direito” é uma luta social e que “revolução” significa câmbio de poder, não vamos atingir os fins últimos a que nos propomos.

O mesmo descaso que observo como regra para as vozes femininas na política também observei durante décadas no silêncio das mesmas vozes no que diz respeito ao parto. Portanto, não se trata de silenciar uma mulher em especial, mas reconhecer o temor inconfesso da sociedade patriarcal em escutar vozes dissonantes que possam questionar os “poderes naturais”. Quem teria mais autoridade para questionar como as mulheres são tratadas em seus partos do que elas próprias? Quando gestantes são desprezadas e diminuídas, eu escuto o eco silencioso de centenas de vozes suprimidas, brotando do peito de mulheres assustadas com seus partos, caladas e impedidas de decidir sobre seus corpos. E aqui não ser trata de questionar a fala de Janja sobre o TikTok – sobre a qual discordo – mas de analisar a repercussão violenta contra essa personagem.

Ou seja: os ataques às mulheres que alcançaram, de alguma forma, o poder nada mais são do que reflexos de uma cultura que ainda receia escutar o que elas têm a dizer. Muito do sofrimento que escutamos das mulheres mais velhas está relacionado às palavras não ditas em sua juventude, guardadas no peito, trancafiadas em silêncios dorosos que se transformam em sintomas e lágrimas. Permitir que as energias do parto tenham vazão é cuidar da saúde de todos, tanto quando reconhecer o direito às mulheres de expressarem suas ideias e sentimentos.

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Iconoclastia e nascimento

Eu entendo a tesão da iconoclastia. Durante anos a fio o ideário da humanização do nascimento percorreu este fluxo. Tudo o que víamos eram os erros, a barbárie da medicalização abusiva, o desrespeito com a privacidade, a expropriação do protagonismo, a objetualização, a coisificação humilhante, o abandono e a insensibilidade com as múltiplas facetas de um evento tão rico e plural. Queríamos, com evidente furor revolucionário, destruir o velho e erguer o novo sobre seus escombros. Queríamos limpar o nascimento das “pseudociências” que o controlam. Tínhamos a fé firme na revolução do saber, através do ensino, da demonstração da Verdade, dos estudos, dos periódicos, das metanálises deslumbrantes e arrasadoras. “Soubessem eles o que sabemos e a violência acabaria, como um facho de luz percorrendo o espaço ilumina tudo o que toca.”

Nossa maior riqueza era o vigor transformador, filho dileto da indignação. Queríamos transformar o mundo mudando a forma de nascer. Apostávamos no poder libertador da ciência e da informação. O erro, assim o entendíamos, era o resultado direto da ignorância. Traríamos nós, então, a “boa nova”, o Evangelho da humanização e sua potencialidade de, mudando o parto, fazer nascer uma humanidade verdadeiramente cidadã. Sim, a nós faltava a compreensão materialista das forças econômicas, as verdadeiras proprietárias do parto. Ao nosso ver, para que ocorressem as necessárias mudanças, era preciso combater, acusar, agredir, lutar, apontar dedos, denunciar. E, não há como negar, para aqueles que conheciam a prática de partos que brotavam da simplicidade fisiológica da proposta humanizante, era fácil perceber o contraste chocante com a realidade cotidiana. Eram dois mundos tão distantes que único traço unificador era o nascimento de um bebê, mas por caminhos tão distintos que não seriam colocados na mesma categoria por um visitante do espaço sideral. Confundiriam uma cesariana com a simples retirada de um tumor, enquanto um parto, na penumbra e no ritmo sensual da natureza, seria facilmente confundido com…. o sexo.

Éramos cães correndo atrás dos pneus, latindo fervorosamente para que parassem com a selvageria tecnocrática dos nascimentos artificializados. Para aqueles contaminados pelo vírus da humanização o barulho era, a cada dia, mais insuportável. Todavia, com o tempo e a insistência, os gritos foram aos poucos sendo ouvidos pelas mulheres, seus parceiros, enfermeiras, obstetrizes, as doulas e, de forma muito tímida, pelos poucos médicos que se aventuravam a questionar os dogmas da corporação, mesmo sabendo que o ódio contra eles seria implacável.

Depois de tanto grito, o carro diminuiu a marcha e o motorista agora pergunta: “afinal, o que desejam vocês?”

Estava claro que manter-se criticando os erros e absurdos do velho paradigma não produziria nenhuma transformação consistente e duradoura. As soluções aos poucos foram surgindo. Cursos de obstetrícia (parteiras de entrada direta) sendo inaugurados, novas casas de parto, equipes de parteiras domiciliares, a luta pelo protagonismo do parto garantido à mulher, a vinculação firme com a saúde baseada em evidências e a reformulação de alguns centros obstétricos do país. Todas iniciativas muito boas, mas ainda incapazes de gerar impacto num pais gigante, com residências obstétricas anacrônicas, poucas enfermeiras, um modelo de parto sustentado pela ciência capitalista e uma hierarquia vertical e autoritária coordenando as relações entre os pacientes e seus cuidadores. Infelizmente, a adesão às propostas de financiamento por instituições ligadas ao imperialismo, como a Fundação Ford, a Open Society e a Fundação Bill e Melinda Gates, seduziram por muito tempo aqueles que tinham interesse na construção de um novo modelo de assistência ao parto, o que foi motivo do meu afastamento desta organização. Entretanto, apesar dos percalços, o debate está mais aceso do que nunca, e a consciência sobre os direitos sexuais e reprodutivos da mulher é um caminho sem volta. Nos parece claro que “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem” (António Gramsci). Entre eles a perseguição implacável e cruel contra os profissionais que ousam anunciar que o autoritarismo no parto precisa ser extinto.

Acredito, agora de forma já amadurecida, que a solução se dará apenas com a adoção de um modelo de luta popular, centrado nas mulheres, exigindo – jamais pedindo – uma transformação radical na estrutura da assistência ao parto no Brasil, com recorte de classe e com caráter sistêmico. Penso também que a iconoclastia de outrora que ainda sobrevive, assim como a guerra contra as “pseudociências”, serve aos interesses dos poderosos, os que controlam o nascimento sem ter uma vinculação com a completude psicológica, emocional, social, material e espiritual do nascimento. A visão moralista da humanização do nascimento precisa ficar no passado, para entrar na fase de estabelecer-se como novo paradigma.

Com o tempo começa a ficar claro que derrubar mitos é muito mais fácil do que construir novos templos. Entretanto, mesmo reconhecendo o papel da indignação na construção dos novos paradigmas, é forçoso entender que o local de destaque cabe àqueles cujo trabalho se concentra em criar o novo apesar das dificuldades, agindo como “um velho marinheiro que durante o nevoeiro, leva o barco devagar”.

Tá legal?

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Comedoras de Placenta

Mulher comendo

Trabalho com humanização do nascimento, mas tenho pouquíssima experiência em placentofagia. Na verdade apenas vi isso, em salas de parto, como uma espécie de brincadeira entre o casal, algo para servir de laço entre eles. Sei que existe este costume entre algumas pessoas, inclusive aqui no Brasil, especialmente algumas parteiras tradicionais do nordeste, mas não acredito que seja uma prática muito disseminada.

Veja bem, até mesmo entre os animais a placentofagia é relacionada muito mais às questões ecológicas e em, menor grau às determinações espécie-específicas. Isto é: não dá para se dizer que os leões, por exemplo, comem a placenta, ou os babuínos, gorilas ou chimpanzés como uma característica da espécie. Para estes mamíferos o uso alimentar da placenta, quando ocorre, é feito por duas razões específicas principais: obter reserva alimentar em contextos de falta de alimento ou para afastar predadores, que poderiam ser atraídos pelo odor de sangue. Assim, muitas espécies em cativeiro (onde não há risco nem fome) jamais comem a placenta. Por outro lado, na vida selvagem isso pode ocorrer mais do que se observa.

No ser humano nenhuma das justificativas acima se adaptaria à placentofagia. Não temos predadores que se atrairiam pelo cheiro de sangue  nem parece razoável usar 700 gramas de carne para suprir deficiências alimentares absolutas. Portanto, o uso é principalmente simbólico, mas pesquisas sobre seus efeitos medicinais poderiam nos oferecer informações importantes para tratamentos de transtornos do puerpério, entre outros.

Qualquer ato simbólico, incorporado em um ritual, pode parecer  “bizarro” para algumas pessoas, mas pode ser facilmente incorporado por outras culturas. Para alguns, os rituais de batismo ou casamento são igualmente estranhos e até mesmo degradantes. Se quisermos ter uma visão mais abrangente diante da enorme diversidade de rituais existentes no planeta,  não haverá nada de muito estranho em alimentar-se ritualisticamente do envoltório recentemente expelido de um bebê. Compare isso com o corte do perineal (episiotomias) ou a extirpação do prepúcio (circuncisão,  realizada pelos semitas e por grande parte da população dos Estados Unidos), que são cirurgias ritualísticas e mutilatórias da medicina ocidental, e perceberás que, subitamente, a placentofagia se torna muito mais inocente do que estas práticas.

Assim sendo, fica fácil perceber que as críticas à placentofagia são carregadas de preconceitos. Porém, a carga recente contra essa prática mira as placentas que são “devoradas”, mas na verdade tenta atingir as mulheres que procuram fazer do seu parto um processo de empoderamento pessoal. Reivindicar o protagonismo às mulheres no momento do parto passou a ser um “caso de polícia”.

Perceba com cuidado. Retire os véus que cobrem a questão das “mulheres comedoras de placenta” para enxergar o que se esconde por detrás do meramente expresso na placentofagia. Da mesma forma como algumas mulheres queimaram sutiãs e usavam minissaias nos anos 60 e 70, seria um erro grotesco acreditar que tais manifestações eram direcionadas à moda ou à “liberdade de movimentos”. É claro que não; as queimas e as pernas à mostra eram SÍMBOLOS de uma demanda muito mais séria. Tratava-se do grito contra a opressão de uma sociedade patriarcal, chauvinista e machista que sufocava a natural expressão do feminino. E, tais movimentos, mudaram a cultura ocidental, como podemos perceber.

Hoje em dia, as “devoradoras de placenta” estão apenas sinalizando que o protagonismo do parto lhes pertence; que o parto precisa ser regulado por um outro paradigma. Tratá-las como seres bizarros e mulheres “malucas” é perder a perspectiva e o momento histórico de “revolução” no parto.

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