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Senectude – ou Crepúsculo

Chega um tempo em que a fragilidade dos corpos nos obriga a abrir mão de um dos bens mais preciosos: a autonomia, valor que tanto exaltamos quando tratamos dos direitos humanos mais elementares. Todavia, em algum momento da existência precisaremos deixar a autonomia em nome da manutenção da própria vida. Esse é um tema que percorre a vida de quase todos, e eu mesmo passei isso com meus avós paternos e minha mãe. Em um determinado momento nossos familiares – em especial os avós e depois os pais – perdem sua independência e sua autonomia em função da fraqueza, de alguma doença, da idade avançada ou das perdas cognitivas. A forma de reagir a esta situação é variável, mas ela estará inscrita nos detalhes de toda a vida pregressa de quem envelhece, e por isso é muitas vezes possível prever como cada um lidará com este evento.

Muitos, como meu avô, lutaram contra a inexorabilidade da sua dependência; resistiu o quanto pode, mas foi literalmente carregado à força para fora de casa. Outros, como minhas avós, minha mãe e minha sogra, aceitaram de forma mais tranquila, como se esta passagem fosse uma parte natural da vida – alguém cuidaria delas como elas cuidaram de tantos durante suas vidas.

Talvez aqui seja possível estabelecer uma diferença essencial entre a vivência da senescência para os homens e para as mulheres, mesmo sabendo que esta vivência será sempre única e pessoal. Para os homens a perda da autonomia é muitas vezes vista como um golpe mortal em seu amor próprio. Retire-o de seu domínio e ele se tornará vulnerável, fraco e impotente. Por seu turno, muitas mulheres (todas da minha família) se comportam de forma dócil e aceitam o fato de que, em algum momento, é chegada a hora de serem cuidadas e amparadas, da mesma forma como o destino determinou que cuidassem de tantos filhos e netos. Já meu pai sempre disse que não aceitaria os cuidados de ninguém. Deixou isso claro quando ficou viúvo aos 90 anos e não aceitou se mudar para a casa de qualquer um dos filhos. Quando, por fim, adoeceu, morreu muito rápido, sem se submeter à “tortura” de viver sob os cuidados de alguém. Antes dele meu avô, por sua vez, xingou, sapateou e nunca perdoou meu pai por tê-lo retirado de sua casa, mesmo quando sequer conseguia se mover. Nunca aceitou “viver de favores”.

Para o homem sua casa é seu mundo, e de minha parte, já reconheço de que material sou feito. Portanto, não tenho dúvida alguma de que também vou resistir até onde tiver força. Viver sob o cuidado alheio é humilhante para quem sempre valorizou a liberdade e a autodeterminação.

Algum momento, entretanto, haverá em que alguém chegará ao meu ouvido e dirá: “Pai, não dá mais. Chega. Não vamos aceitar ver você sofrendo por este orgulho insano. Você terá que sair de onde está e ficar sob os nossos cuidados”. Nesse momento eu saberei que não tenho como me defender e, mesmo resistindo, serei obrigado a aceitar. Diante desse destino inescapável, eu já me preparo para perdoar meus filhos e netos pela palavras duras que sei que vou ouvir; é melhor fazer isso enquanto ainda existe lucidez suficiente. Aceitar o declínio da vida é preparar-se lentamente para a morte. Antes mesmo, quando percebemos nossa sutil e crescente desimportância na tessitura da vida, já é o momento de compreender que estas são as suas sábias regras, e que cabe tão somente aceitar o quinhão que a nós é determinado.

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No meu tempo…

Não peguei a época dos “pau amigo” ou das “amizades coloridas”. Sou do tempo em que algumas instituições ainda se mantinham firmes, mesmo que já fosse perceptível sua insidiosa senescência. Namorar – para só assim poder transar – era uma instituição ainda viva. “Ficar” era manter-se estático em algum lugar. “Tu vais ficar aqui sem se mexer” dizia minha mãe. E para começar a namorar havia também os devidos rituais. Não havia coisas vagas como “a gente tem saído juntos”. Você era namorado(a) ou não, mas para namorar tinha que “pedir em namoro” e, acreditem, não era fácil. Logo depois da menina aceitar podia pegar na mão. Beijar levava algumas semanas. Os tempos, como sempre, eram determinados pelas meninas. Para nós só cabia choramingar “insiste em 0x0 e eu quero 1×1″. Transar com a namorada era um sonho acalentado por meses…

“Ora, direis, quanto atraso”. Quanta interdição para o livre fruir do desejo. Corpos fechados, proibidos, desejos cerceados. Frustração, cafonice, pecado, culpa. Ave Maria…

Hummm… há controvérsias. Para aqueles que supunham que nossa angústia era baseada nas interdições do corpo, na supressão da livre expressão sexual, a distensão foi frustrante. A facilidades abriram as portas do prazer às custas do sufocamento do gozo. Hoje ficar, beijar e transar são fáceis; no meu tempo eram conquistas de caráter épico. Naquele tempo era mais fácil “aprender japonês em braile” do que ela se decidir a dar.. ou não. A dificuldade nos fazia valorizar tais eventos de uma maneira que não vejo mais na descrição que os jovens fazem. Para nós qualquer decote, um vento sorrateiro levantando a saia plissada da escola e um primeiro beijo mereciam narrativas fantasiosas e ricas em detalhes. Hoje valem um post sonolento e banal no Instagram.

Eu sei, é papo de velho, mas para que mais serviriam os velhos senão para emprestar sua perspectiva de mundo e colocar as certezas de hoje em desafio? Se não é mais possível trancafiar os corpos como outrora resta-nos entender que sua abertura e o romper das amarras não nos livrou da angústia e nem nos levou ao Nirvana.

Ave Maria…

PS: Nem me dei conta do perigo de publicar esta crônica no contexto da abstinência sexual promovida pela ministra Damares. Mas, como eu mesmo disse, voltar a fechar os corpos é impossível. Se a aventura libertária do sexo não nos deu o paraíso imaginado, seu fechamento trará apenas drama, dor e culpa. A ideia de promover a abstinência entre os jovens nos dias de hoje é absurda do ponto de vista de saúde pública. A política desse governo se mostra insensata e moralista e apenas reproduz o culto à ignorância. A fantasia do retorno a um passado de “respeito” e “contenção” é um suicídio social e uma tragédia para a juventude.

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