Arquivo da tag: Tovar

A Febre do Futebol

Eu lembro que na minha época de garoto, na virada dos anos 60-70, os salários dos jogadores da dupla Grenal eram semelhantes aos proventos de um médico ou advogado bem sucedidos; eram salários de classe média. Naquela época o dinheiro que circulava no futebol era pouco, mas a economia do país também era muito menor, uma fração do que é agora. Não havia ainda transferências de jogadores para a Europa, algo que só começou pra valer nos anos 80, com as vendas de Falcão para a Roma, Maradona para o Napoli e Zico para a Udinese – três grandes craques vendidos para times de segunda linha do futebol europeu. Lembrem que a grande seleção brasileira de 1970 tinha 100% de jogadores jogando no Brasil, inclusive o gremista Everaldo.

“Naquela época o futebol era muito mais humano”, como dizia meu irmão e saudosista profissional Roger Jones. Quando estava no colégio, todos os dias eu passava na frente do edifício onde moravam dois jogadores titulares do grande time do Internacional dos anos 70 ‐ Carpegiani e Tovar – que ficava na esquina da Av. Getúlio Vargas com a Rua Botafogo. Era (ainda é) um edifício simples, parecido com o que minha família morava algumas quadras adiante, no mesmo bairro Menino Deus que encantou Caetano Veloso. Na rua dormia o carro do Carpegiani, que era um “opalão” verde. Sim, nos anos 70 os carros dormiam na rua porque os edifícios mais antigos não tinham garagens. A gente conhecia o carro, passava por ele todas as manhãs no caminho para o Infante Dom Henrique, mas jamais pensamos em vandalizar, apesar de sermos gremistas. Esse ódio de torcidas ainda não tinha nascido, e o mais radical que existia era a flauta, o deboche e a galhofa, mas não a violência.

Outro fato curioso aconteceu quando eu já estava na faculdade. Ainda morando no Menino Deus, eu tinha uma namorada no Partenon. Aliás, a mais linda namorada que eu já tive, além de ser a única. Eu costumava pegar um ônibus, o T2, para ir na sua casa e, em uma dessas viagens, sentaram-se no último banco do T2 e logo atras de mim, dois jovens negros. Começaram a conversar e pelo conteúdo da fala percebi que eram jogadores do Internacional. Passados mais alguns minutos me dei conta que um deles era o zagueiro central titular do Inter que estava falando do interesse do Bahia em comprar seu “passe”. Hoje em dia, quando existem páginas dedicadas a descrever os carros impressionantes dos jogadores, é inacreditável pensar que há 40 anos um jogador titular de um grande clube pudesse andar de “busão”.

O futebol está passando por uma crise existencial muito grave, mas ela não se desenvolve em um vácuo conceitual. Ela é fruto da crise do capitalismo, que se manifesta em todas as dobras do tecido social. Os valores astronômicos pagos a jogadores – em boa parte atletas medíocres – e a eliminação do povo das arquibancadas das modernas arenas são uma demonstração clara da necessidade de alienar o gozo da vida a seus representantes, os heróis, gladiadores modernos, que usufruem – por nós – do gozo que nos é sonegado. Para isso pagamos valores obscenos, imorais e indecentes. Os jogadores não tem culpa disso, são apenas os vetores dessa nossa angústia, nossa insatisfação, nossa dor. “Se minha vida é um lixo, pelo menos meu time é campeão”, diz o torcedor padrão. Se não vejo sentido ou esperança na luta de classes, ao menos pagarei minha mensalidade para que minha equipe seja a grande vencedora.

Eu não acredito que a bolha do futebol vá estourar antes de uma grande crise global do capitalismo. Alguns países, como a Argentina, já saltaram na frente. Seus grandes craques já saem de lá muito cedo, empurrados pela crise econômica grave causada por esse mesmo capitalismo concentrador decadente. Não há dúvida que, mais cedo ou mais tarde, o mesmo vai ocorrer no Brasil e no mundo. O futebol também terá um choque de realidade da mesma forma como a “Febre das Tulipas” terminou na Holanda, e teremos valores circulando no futebol mais próximos da realidade do povo que o sustenta. Quem sabe no futuro os jogadores vão voltar a morar perto da sua casa e terão carros comuns na garagem.

Veja mais aqui

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Ludopédio e Saudosismo

“Contando com jogadores como Gabigol, Arrascaeta e David Luiz no elenco, o Flamengo divulgou balanço em 2021 que aponta que a folha salarial foi de R$ 199,1 milhões por ano, algo em torno de R$ 16,6 milhões por mês. Ou seja, sozinho, Neymar recebe por ano cerca de R$ 17 milhões a mais que todo o elenco flamenguista” (UOL, Julho de 2022)

A existência desse tipo de aberração, onde um único jogador ganha na Europa muito mais que todo o time mais caro da América Latina não é um problema do futebol, mas uma decorrência natural da sociedade bizarra construída pelo capitalismo. Não é o futebol, somos nós. Essa situação era mais do que previsível, na medida que o capitalismo fecha as portas para a realização pessoal do cidadão comum, restando a ele apenas a projeção. “Eu não tenho valor, mas meu time é campeão”.

Reza a lenda que pesquisadores adentraram na África bravia em meados do século passado e encontraram uma tribo nativa muito primitiva. Passaram a trocar experiências e presentes com o uso de um intérprete da região. Num dado momento um pesquisador ligou o rádio de ondas curtas e os aborígenes escutaram pela primeira vez a música captada de uma estação distante através das ondas de rádio. Perguntado sobre o que achava daquela “máquina de música” o chefe da tribo respondeu:

“Que vida triste a de vocês que precisam usar caixas cantantes ao invés de cantarem vocês mesmos”.

Nós não nos divertimos mais jogando futebol com a garotada (ou a velharada) do bairro como fazíamos antigamente, improvisando meias de mulher enroladas como bola. Não há mais “campinhos”, várzeas, terrenos baldios onde se possa jogar nosso sagrado ludopédio. Terceirizamos a emoção do gol para os ídolos, figuras geralmente desprovidas de qualquer qualidade além do talento futebolístico, alçados, entretanto, à condição de “gênios” ou “semideuses”. Triste sociedade que paga fortunas para que os escolhidos gozem por nós.

Quando eu era garoto os jogadores eram seres humanos. Frequentavam lugares comuns, como padarias, mercados ou cinemas. No edifício na esquina da Getúlio Vargas com a Botafogo (Menino Deus, bairro que Caetano cantou) moravam Carpegiani e Tovar – campeões nacionais pelo Inter – e o Opalão verde do Carpegiani dormia na rua; a gente passava por ele quando ia pra escola, o Infante Dom Henrique. Falcão (do Inter) dava carona escondido para o Iúra (do Grêmio) até o Estádio Olímpico; eram amigos pessoais, mais ferrenhos rivais em campo.

Uma vez eu encontrei no ônibus – o famoso T2 – altas horas da noite um zagueiro titular do Internacional conversando com um amigo. Nos Grenais a distância entre as torcidas era de 3 metros, separados por duas linhas de “brigadianos” e metade da arquibancada era oferecida para o adversário. Todos saiam juntos do estádio, e as brigas eram raras.

Mas, repito, é errado pensar que foi o futebol que mudou; o futebol nada mais é do que o espelho da sociedade onde está inserido. Foi a sociedade, o capitalismo e sua influência nefasta que transformaram esse esporte num negócio de milhões. O futebol, enquanto veículo da angústia social, transformou-se a partir das mudanças sociais, que nos fazem jogar a fragilidade de nossas vidas nas mãos (e principalmente nos pés) de nossos ídolos.

“Rollerball”, filme de 1975 com o falecido James Caan, fala dessa realidade distópica, numa sociedade futurista onde os jogadores são gladiadores modernos que morrem em nome do circo midiático. Todavia, é preciso reconhecer que não existirá nenhuma mudança no futebol sem que haja uma transformação profunda na sociedade. Até lá veremos jogadores medíocres e suas fortunas, gastando seu dinheiro em baladas milionárias, cercados de garotas de capa de revista, usufruindo dos milhões que são pagos pela nossa neurose.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Reminiscências e Futebol

Na minha infância no bairro Menino Deus (aquele que o Caetano gostou), futebol era muito importante para a garotada, mas a gente também jogava muita bola, porque havia muitos campinhos em terrenos baldios. Hoje nestes “estádios” estão edifícios onde mora a pequena burguesia da província. Aquela foi uma época de domínio do Inter, de meados dos anos 70 até o glorioso 1981, quando o Grêmio venceu o São Paulo na final e conquistou seu primeiro torneio em nível nacional. Dois anos depois conquistaria a América e o mundo, algo impensável na minha infância.

O Menino Deus era como uma pequena cidade do interior. Na esquina da minha rua, dona Linda e a família Ruschel colocavam cadeiras de praia na calçada para tomar chimarrão ao por do sol. As mães das crianças da Vicente e da Botafogo se conheciam. O supermercado Pavan era um ponto de encontro e o colégio Presidente Roosevelt era onde todos estudávamos (nós, os pobres, pois os chiques iam para o Anchieta). Meninos usavam azul e meninas usavam rosa; a diversidade ainda estava para ser inventada.

No meu bairro moravam muitos jogadores do Inter e a gente sabia onde eram seus endereços. O Figueroa, por exemplo, morava no prédio das “escadinhas” no morro em frente ao Beira Rio. Tovar e Carpegiani moravam no prédio na esquina da Botafogo com Getúlio Vargas. Aliás… Elias Ricardo Figueroa Brander foi o jogador mais badalado do Inter durante uns 10 anos, de 1971 até sua saída no final da década. O salário dele era de incríveis 5 mil dólares. Sim, mesmo com as diferenças de câmbio é possível ver como o futebol era algo muito mais próximo do cidadão comum.

O dinheiro em 1977 era o Cruzeiro. Um dólar valia 14 cruzeiros, portanto Figueiroa devia ganhar 70 mil cruzeiros mensais, o maior salário do clube. Naquele ano um fusca zero Km custava Cr$ 45.215,00. Já um carrão da época, o Dodge Charger, custava Cr$ 97.260,83. Assim, o melhor jogador do Inter ganhava o suficiente para comprar um carro zero cada mês, nem fusca nem “Dojão”, mas entre esses dois. Tipo, um opalão.

O salário mínimo em 1977 oscilou ao redor de Cr$ 1.100,00, portanto um jogador famoso ganhava 70 vezes este valor. Hoje em dia seriam 80 mil reais de salário, mas um jogador de ponta, aqui mesmo na nossa cidade, ganha 10 vezes esse valor.

Podemos dizer que o futebol mudou um pouco, mas a neurose social que sustenta essa disparidade entre um assalariado e um astro de Futebol foi multiplicada por dez.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais