Arquivo do mês: janeiro 2018

Síndrome de Estocolmo

Há muitos anos eu já usava a metáfora da Síndrome de Estocolmo para descrever o relacionamento entre as mulheres e os representantes do modelo tecnocrático de atenção ao parto. Ela cabe – mesmo reconhecendo os limites de qualquer analogia – por mostrar a delicada tessitura de relacionamento entre mulheres “cativas” e as figuras de poder que governam suas ações.

A metáfora também é útil para desvelar o fato de que, mesmo sendo uma relação claramente opressiva, existe um circuito de afeto que circula entre oprimido e opressor. Para que isso seja implementando muitas histórias e mitos são criados, em especial as “histórias de hospital”, reforçadas pelo pessoal de apoio como enfermeiras e suas auxiliares, onde os médicos são, via de regra, pintados como cavaleiros heroicos que salvam donzelas condenadas pela crueldade de sua natureza madrasta. Nada que já não esteja nos contos de fada.

O problema, segundo Marsden, é que esse afeto exagerado, por sua natureza amorosa profunda, facilmente se transforma em ódio.

Meu bebê quase morreu por ser muito grande (quase 4 kg), mas foi salvo por uma cesariana” ou também “Graças ao Dr Frotinha estamos vivos pois ele notou na palpação que o cordão estava enforcando minha bebê“. Quem é da área conhece centenas dessas histórias de auto glorificação contadas pelos profissionais, e sabe também o quão difícil – por vezes impossível – desfazer noções erradas nas pacientes por causa desses mitos criados pelos próprios protagonistas, e sobre fatos que muitas vezes eles mesmo criaram.

Mulheres são cativas de um sistema misógino e depreciativo de suas qualidades e a maneira mais engenhosa de manter esse sistema funcionando é faze-las acreditar que a sua servidão e cativeiro lhes beneficia, e que tudo é feito para seu próprio bem. Logicamente alguns vão se insurgir contra esse paradigma e tentarão mostrar que o Rei está nu, mas serão facilmente esmagados e engolidos pela máquina que controla o sistema, como o protagonista Winston Smith, de Geroge Orwell, em “1984”. Nunca esquecerei que Winston não foi executado pelo Big Brother, apenas deixado livre a vagar para ser considerado por todos como um “louco”.

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Suicídio

O despreparo para lidar com a morte é uma das características mais dramáticas da formação médica ocidental. As dificuldade em lidar com o nascimento e com a autonomia dos pacientes lhe seguem. Entretanto, a morte é o maior tabu. Morte é fracasso, erro, fim. Perdemos todos, paciente e profissionais, derrotados pelo fantasma do fim. Morte mostra nossos limites e nossa falibilidade última. Não salvamos a todos e sempre haverá um truque do destino a nos trair.

O suicídio é onde testemunhamos essa incapacidade de forma mais gritante. Não aceitamos que alguém deseje se atirar no abismo do qual nos esforçamos para salvá-las. A nossa abordagem com os suicidas é, via de regra, baseada em julgamentos, em uma postura moralista e opressiva.

Um episódio ocorrido no Pronto Socorro, há 35 anos, foi relatado a mim por colegas de outra escala de plantões. Um colega estudante atendeu um sujeito que havia tentado o suicídio com um revólver de baixo calibre dando um tiro na própria boca. A tentativa foi frustra: a bala apenas transpassou sua bochecha. Diante disso, o colega do plantão disse ao paciente que aquele tinha sido “um trabalho mal feito”, e que o correto seria atirar de cima para baixo e com um revólver mais potente. O homem escutou calado enquanto tratavam do seu ferimento. Um mês depois o paciente volta ao pronto socorro tendo realizado o trabalho da forma correta. Ao saber disso o colega se defendeu dizendo que “poupou o trabalho de muita gente”.

Os aspectos psicológicos da atenção médica sempre foram negligenciados durante a minha formação. Mais do que isso: qualquer tentativa de abordá-los era vista como “fraqueza”, falta de “seriedade acadêmica” ou “frescura”. Em se misturando os dois temas – autonomia do paciente e morte – o buraco era gigantesco, um vazio de palavras, conceitos, preparo e, acima de tudo, empatia.

Encarar a morte dentro da vida e enxergar o suicídio como uma tentativa desesperada de escapar à dor é um grande desafio. Como a depressão, em especial, não aparece em nenhum exame de laboratório ou de imagem somos levados a desacreditar em sua própria existência, rotulando as dores da alma e os desejos de acabar com a vida como carências pontuais.

Nada poderia estar mais errado. A dor é real e corrosiva, a ponto da morte se tornar menos dolorosa que ela. Enquanto não houver preparo para a abordagem empática de paciente diante dos dilemas do aborto, do suicídio e dos transtornos mentais jamais conseguiremos oferecer o alívio e o auxílio que são as nossas tarefas mais primordiais e essenciais.

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Distanásia

A “distanásia”, compreendida como a terapêutica de manutenção artificial da vida para além de uma esperança ou uma recuperação, é uma “praga” que não foi introduzida pela medicina, mas pela cultura. Quem trabalha em UTIs sabe como é o peso de tomar decisões sobre a manutenção de uma vida em estado vegetativo sem esperança de retorno.

Lembro de um caso na Santa Casa de Porto Alegre nos anos 80. Paciente idoso, em coma, múltiplos transtornos de saúde, diabético, pós AVC. Família pobre. Os filhos e netos se revezavam nas visitas, que eram “caras”, pois trabalhavam durante o dia e vinham de uma cidade vizinha para visitar o velhinho. Certa vez a filha teve um acesso de raiva e desesperança e passou a nos questionar porque daquela “indignidade”, porque não permitiam que ele se fosse “sem sofrer”, qual a razão de prolongar inutilmente uma vida que não mais voltaria. Meu colega (eu era estudante na época) escutava com atenção e balançava a cabeça. Por repetidas vezes dizia: “Enquanto houver um fio de vida lutaremos por ela”. A tudo eu escutava, mas os argumentos da filha me pareciam sensatos e justos. O que estávamos realmente fazendo? Prolongando funções vitais artificialmente em um laboratório? Qual o sentido para o sujeito e sua família de um coração que ainda bate, mas que nenhuma emoção ou sentimento transita entre este corpo e nós?

Depois do desabafo ela se pôs a chorar e se retirou. Meu colega preceptor apenas me falou: “É o que nos cabe dizer“, e voltamos aos nossos afazeres. Entendi que ele também concordava com os argumentos da filha e compartilhava sua angústia, mas seu papel como médico não lhe permitia ler um outro script que não o “mantra da vida sagrada” que ele havia repetido de forma maçante para a pobre moça.

Uma semana depois o velho morre, naturalmente, durante a madrugada. “SPP” (se parar, parou) se dizia na época. Após uma brava luta contra o desenlace do qual só podemos adiar, depôs suas armas e entregou-se para a vida de lá. Logo após a constatação de morte saímos para fora da UTI e informamos a família.

A filha mais velha se aproximou de nós e disparou: “Eu sabia que ele ia morrer nessa pocilga. Vocês o mataram. Não permitiram sequer que ele acordasse para que fosse possível uma despedida digna. Vocês vão ver, vamos tirar isso a limpo”.

Mas, mas…. a mesma filha que uma semana antes pedia para abreviarmos o sofrimento inútil e custoso do seu pai agora nos acusa exatamente quando seu pai consegue finalmente descansar?

“Exatamente, disse Max, meu colega. Suas acusações nada mais são que um artifício psicológico para se livrar da culpa corrosiva que sente por estar tão aliviada com a morte do pai. É por essa razão, acima de qualquer outra, que mesmo concordando com todos os argumentos que ela havia nos apresentado, ainda não é possível abrir a guarda e encarar a morte como fazendo parte da vida. Os mesmos pacientes que se solidarizam facilmente podem nos apedrejar.”

Max fez uma pausa e continuou.

“É triste, mas a mudança não virá de nós…. virá de todos, ou não virá. Enquanto essa nova postura diante da morte não chega não será possível abandonar o clichê anacrônico de “preservar a vida acima de tudo”, mesmo quando esta não passar de meras funções vitais de um sujeito que há muito se foi”.

Para mais informações sobre o tema, leia o artigo da Prof Maria Júlia Kovács aqui

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Arquivado em Histórias Pessoais, Medicina

Brasil dividido

Li o texto de Vera Iaconelli na Folha de São Paulo de hoje, 2 de janeiro 2018, “Ódio ao Brasil” e de pronto concordei com sua tese sobre um Brasil que cultiva ódios e se distancia das nações mais democráticas por se manter atrelado a uma divisão arbitrária em sua sociedade. O debate sobre sermos um “país majoritariamente negro“, que eu discordei, é um detalhe irrelevante. Eu me associo à sua visão de país dividido, assim abraço a tese de Jessé Souza que acredita que somos uma sociedade que jamais se recuperou de “maio de 88”.

Sim, não errei de ano. Não me refiro à “maio de 68” em Paris, mas 13 de maio de 1888, data da promulgação da Lei Áurea. Nunca conseguimos nos recuperar plenamente do trauma do fim da escravidão. Jamais abandonamos a ideia inconsciente de uma sociedade dividida entre cidadãos e e escravos, entre gente e sub-gente; entre senhores e serviçais. É esse nojo do Brasil mestiço que esteve palpitando nas manifestações contra Dilma, naquele mar que misturava o verde e o amarelo nas camisetas com o branco da pele, e por cima daquelas faces raivosas uma fantasia de moralidade e combate à corrupção.

O silêncio das panelas é a prova insofismável de que nunca houve uma real rejeição à corrupção. O que movia essa parte mais branquinha do Brasil era o rechaço a um projeto de pais mais igual, mais colorido, mais integrado. O pecado dos governantes de antes foi tocar no nervo exposto das castas sociais.

Lembrei de um colega dos meus tempos de médico militar. Sempre muito vaidoso, cultivava uma cabeleira fora dos padrões, mas para mantê-la parecia ter costas largas com os coronéis. Sempre se comportava como um Lord inglês perdido no meio de tupiniquins. Diz-se dele que, apesar do salário médio dos oficiais militares, adorava ostentar. Quando compareceu à festa de 10 anos de formatura da medicina em sua cidade teve o cuidado de chegar na festa com um carro importado. Alugado, mas ninguém precisava saber.

Uma vez durante as férias economizou o suficiente para viajar para a Europa com a esposa. Na volta me disse uma frase que nunca esqueci, referindo-se a Paris: “Aquilo sim que é cidade, e não essa chinelagem daqui. Eu merecia ter nascido lá, e não no meio dessa porcaria”.

Essa frase me marcou, mesmo passados quase 30 anos, porque resume a ideia de uma porção considerável da classe média branca brasileira. Parece a eles que acabaram de desembarcar no Brasil vindos do velho continente e perceberam que esse país está cheio de uma gente estranha, escura, ignorante e suja. “Aqui não é o meu lugar”, dizem eles de costas para o Brasil. Sua postura é de uma eterna distopia; estão no lugar errado, cercados de gente inferior.

Deus é um cara gozador
Adora brincadeira
Pois pra me jogar no mundo
Tinha o mundo inteiro
Mas achou muito engraçado
me botar cabreiro
Na barriga da miséria nasci brasileiro
(e ainda no Rio de Janeiro!!!)
– Chico Buarque –

Pois eu digo que esse Brasil que desprezam só é assim porque uma parte muito grande da classe média continua sonhando ser o que não é, além de cultivar uma postura xenofílica e pedante.

Na verdade é o Brasil que não precisa mais dessa classe média arrogante e egoísta.

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