Arquivo do mês: maio 2024

Coco

Eu acredito que Coco (ou “A Vida é uma Festa”) é, disparado, o melhor filme da Disney/Pixar. Eu já assisti umas dez vezes com os meus netos. A história é toda lógica, bem construída, coerente e trata com leveza da questão da morte e da memória. Enfatiza a importância do perdão e o significado da família. Um filme maravilhoso.

Existem muitas formas de analisar este filme, e a mais natural é apreciar a linda homenagem feita ao México e a cultura deste país. Entretanto, eu gosto de analisar outro aspecto relevante: sua teleologia espiritual. O filme descreve basicamente dois planos: o plano físico onde Miguel vive com sua família e o plano dos mortos ou espiritual, onde vivem seus antepassados mais próximos e recentes. Porém, os antepassados mais antigos, aqueles dos quais ninguém mais se lembra (como o tataravô do seu bisavô), acabam “morrendo” no plano dos mortos e indo para um lugar “desconhecido”, aparentemente sem volta. O filme deixa essa dimensão última como uma pergunta sem resposta. Há um personagem que, muito enfraquecido e desenergizado, acaba falecendo no plano dos mortos e tornando-se apenas uma luminescência (como se um corpo etéreo fosse dissolvido e sobrasse apenas o princípio espiritual). Para a mitologia do filme, isso ocorreria quando ninguém mais no plano físico se recorda deles e a eles presta homenagem no “día de los muertos”. Para alguns essa “morte” poderia ser entendida, se assim o quisermos, como a volta ao plano físico, no processo de reencarnação, segundo as concepções espiritualistas. Seria uma perspectiva bem razoável.

Já o plano dos mortos – onde estão os parentes de Miguel – seria como um “purgatório” católico ou o “umbral” dos espíritas. Ou seja, um plano imediatamente adjacente a este mundo, próximo em seus valores e conexões. O filme descreve também a possibilidade de algumas pessoas entrarem em contato com os mortos, como fez Miguel ao tocar o violão de Ernesto de la Cruz (o famoso músico do enredo) no dia dos mortos. Isso ocorre em condições especiais – como o “channeling” ou a mediunidade, que permitiria o contato entre os planos.

Outro ponto importante do filme é o personagem Dante, o cãozinho que acompanha Miguel no mundo dos mortos. O filme mostra que estes cães trafegam com naturalidade entre os planos, como se fosse um só, mostrando como os animais domésticos têm uma sensibilidade apurada às energias sutis do plano extrafísico, como é comum escutarmos no universo de crenças populares. Dante é um cão da raça Xoloitzcuintli, mais conhecido como Xolo. Seu nome só pode ser em homenagem à Dante Alighieri, poeta, escritor e político florentino que viveu entre os séculos XIII e XIV e escreveu a Divina Comédia, livro onde descreve sua aventura após atravessar o Aqueronte e adentrar o mundo dos mortos. O filme é muito respeitoso com a cultura mexicana, passando por “Lucha Libre” (sou apaixonado), Frida Kahlo, os Mariachis, Diego Rivera, seus grandes músicos, artistas, cidades, arquitetura e até a turma do Chaves em alguns cameos que aparecem rapidamente.

Como todo grande país, as metrópoles mexicanas acabam se amalgamando à estética das grandes cidades mundiais. Eu achei o “DF” parecido em gigantismo com São Paulo, apesar das óbvias diferenças. Porém, é nas cidades menores, conversando na rua – no meu caso com parteiras tradicionais – que podemos perceber a riqueza cultural deste país, suas idiossincrasias, seus dramas, assim como os problemas estruturais daquela sociedade, que são em vários aspectos semelhantes aos problemas que enfrentamos no Brasil. Minha amiga Robbie, que fez o trajeto Austin – Laredo – Nuevo Laredo, atravessando de carro a fronteira entre Estados Unidos e México dezenas de vezes (inclusive comigo), sempre dizia que entrar no México pela fronteira texana é uma gigantesca experiência cultural. Dizia ela (que é gringa raiz): “De um lado tudo é limpo, organizado e visceralmente feio; você cruza a fronteira e tudo passa a ser desorganizado, sujo e lindo”. Nesse aspecto, o México é mesmo um país irmão do Brasil – tán lejos de Dios y tán cerca de los gringos – mas eles ainda carregam a cruz dessa fronteira física. Nós, pelo menos, estamos geograficamente mais distantes.

Há poucos dias eu falava para os meus netos mais velhos (de 11 e 8 anos) da nossa viagem ao México em 2019, quando eles ainda eram bem pequenos. Queria que eles nunca esquecessem essa experiência para poderem voltar um dia e reviver aquelas experiências. Oliver, o mais velho, lembra bem de Chichén itzá, de Koba, de San Miguel de Allende, de Tepoztlán (e do Tepozteco) e da Cidade do México. O menor lembra apenas dos cenotes e Isla Mujeres. Mas eu sei que o México, mesmo que ainda não o percebam, tocou suas almas. Acho que, apesar dos aspectos instigantes da teleologia espiritualista do filme, essa é a principal razão por eu gostar tanto de “Coco” da Pixar: o filme foi muito feliz em mostrar a vastidão da cultura mexicana. Quando somos obrigados a escutar um demagogo idiota como Trump desmerecer os imigrantes do México isso me dá uma profunda tristeza, em especial por perceber a decadência gritante do Império americano e sua cultura consumista e a ignorância constrangedora que esse tipo de desprezo demanda.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Impressões

Esses dias alguém me mostrou a foto de um antigo colega de faculdade, uma pessoa a quem não vejo há mais de 35 anos. Quando vi sua imagem lembrei de imediato de duas situações em que estivemos envolvidos nas quais ele não foi muito legal comigo. Uma das ocasiões foi nas reuniões de preparação para a cerimônia de formatura e outra ocorreu durante o atendimento de um parto, já na residência. Minha reação inicial foi um pensamento ao estilo “Não gosto desse cara, ele é arrogante e prepotente”.

Logo depois de pensar isso me dei conta que esse tipo de julgamento é brutalmente injusto. Não é concebível tratar uma pessoa – mesmo em pensamento – como se ela tivesse um caráter estanque, imutável, congelado há quase 40 anos. Não seria correto imaginar que uma fotografia distante no tempo pudesse ser a definição mais acabada do caráter de alguém. Como acreditar que a vida que teve não o jogou para lugares distantes, perspectivas diferentes, novos valores e posturas? Por que deveria ser aquela a imagem que o definiria? Ato contínuo, lembrei de uma atitude estúpida que tive com uma colega na mesma época – entre a formatura e o início da residência – e senti vergonha de pensar que ela poderia ter cristalizado essa ideia de mim, julgando-me um grande idiota, da mesma forma como fiz com meu colega de aula.

Somos muito dissimulados em nossas ações cotidianas, e temos máscaras muito bem construídas. A impressão que deixamos em nossos encontros fugazes como regra é enganosa, tanto para o bem quanto para o mal. O verdadeiro eu não pode ser vislumbrado à vista desarmada, e se o fosse não seria uma vista agradável. O simples fragmento de um encontro não é capaz de mostrar senão uma foto imperfeita e embaçada da nossa alma. Qualquer análise de um sujeito por esta breve percepção seria tão injusta quanto avaliar a beleza de uma sinfonia por uma nota isolada, aleatoriamente escolhida.

Em verdade, estes julgamentos falam muito mais de nós mesmos do que destes personagens passageiros da nossa linha do tempo. Eles, a mais das vezes, aparecem em nossa vida apenas para ressaltar as nossas próprias falhas, medos, dificuldades e limitações.

Por esta singela razão eu tenho grande admiração por aqueles que falam coisas boas de quaisquer pessoas que tenham cruzado sua trajetória. Mesmo sem o saber, esta visão positiva, compreensiva e condescendente com as falhas alheias deixa transparecer a própria luz de suas almas. Como dizia minha mãe “a boca fala do que o coração está cheio”, e o que dizemos daqueles ao nosso redor é o melhor espelho do que, em verdade, somos.

Deixe um comentário

Arquivado em Histórias Pessoais

Aos velhos

Meu conselho aos idosos:

Você está ficando velho como qualquer mortal; aceite numa boa. Não procure fingir, todo mundo está notando (até aqueles que dizem “mentira que já tens tudo isso!!”) Velhos são sobreviventes, portanto vencedores. Lembre que no longo prazo todos estaremos mortos e o importante da vida é viver o que há para ser vivido – seja bom ou não. Não estamos aqui pela felicidade, mas pela experiência. Sinta todos os sabores, aproveite todas as dores e não deixe escapar sequer as frustrações.

Faça dessa jornada a aventura que você merece viver. Em pouco tempo seu fulgurante vigor – que por tanto tempo lhe pareceu interminável – terá desaparecido. Um pouquinho mais e você será um nome numa lápide. Faça do tempo que lhe resta o melhor para todos à sua volta; esta é a melhor forma de imortalidade.

Deixe um comentário

Arquivado em Pensamentos

Put the candle…. back!!

Em 1974 eu era um adolescente que gostava de cinema e de comédia. Fui ao cinema sozinho – o que eu costumava fazer naquela época – para assistir um filme sobre um famoso monstro da literatura, um sujeito formado por partes de distintos cadáveres costurados. Sim, eu não sabia que se tratava de uma comédia, e só no decorrer do filme me dei conta que não se tratava de um filme de terror, o que ocorreu já nos primeiros minutos, na cena da aula de neurologia. Esta surpresa deixou a experiência ainda mais interessante. O filme que fui assistir era “Jovem Frankenstein“, de Mel Brooks.

Numa época anterior à internet não havia muitas informações dos filmes, além do cartaz na frente do cinema e dos comentários nas colunas do jornal. Inicialmente acreditei se tratar de uma biografia ficcional do médico Victor Frankenstein quando jovem, e as razões pelas quais ele tentou recriar vida a partir de tecidos mortos. Eu não estava muito longe da verdade; a história era sobre Frederick “Fronkonstin“, neto do famoso médico, que foi instado a voltar ao castelo do avô para receber sua parte na herança. Esse neto – o genial Gene Wilder, cocriador do roteiro junto com Mel Brooks – renegava a memória do avô, a quem considerava um maluco sem qualquer credibilidade. Seu retorno à Transilvânia o faz reconhecer a veracidade e a correção dos estudos do seu antepassado. Estimulado pela descoberta, decide seguir seus passos e criar um novo monstro.

A história clássica, escrita há mais de 200 anos, está centrada no mito dos zumbis – ou a fantasia de recriar algo que, depois de morto, voltaria a viver. Ao contrário da criação dos zumbis, onde a feitiçaria ocorre por maldições, poções mágicas ou encantamentos, no romance do século XVIII a bruxaria se dá pela ciência, abusada e arrogante, que decide desrespeitar a “ordem natural das coisas”. O resultado só poderia ser uma monstruosidade. As múltiplas interpretações para a obra de Mary Wollstonecraft Shelley vão desde as relações de trabalho na Inglaterra no conturbado período da revolução industrial até os conflitos intrapsíquicos que insistem em manter vivas relações afetivas que há muito deveriam ter sido sepultadas.

A criação do romance se deu através de um desafio: contar uma história de terror durante uma noite chuvosa na casa do Lord Byron, onde também estava seu futuro marido Percy Bysshe Shelley. Pois foi em uma madrugada regada à vinho e com o barulho entorpecente da chuva como sinfonia que, em 16 de junho de 1816, Mary teve a ideia de contar a epopeia de um jovem estudante de medicina costurando membros que havia roubado de uma sepultura para fazer a carne morta retornar à vida. Desta forma, a garota de apenas 18 anos criou o clássico Frankenstein. A ideia virou um conto e depois, estimulada pelos amigos, tornou-se um romance cujo sucesso já ultrapassa dois séculos.

Certo, sem spoilers. Toda a trama do filme de Mel Brooks de 1974 é sobre a recriação do monstro. Entretanto, há razões para esta ser considerada o maior filme de maior comédia de todos os tempos. Os atores são incríveis: Gene Wilder, como Frederick; Clóris Leechman, como Frau Blücher (dá para escutar o relinchar dos cavalos ao pronunciar seu nome); Marty Feldman como Igor; Madeleine Kahn como Elizabeth e Peter Boyle como o monstro são espetaculares em suas performances, sem falar de Teri Garr, como a estonteante assistente Inga. E tem até uma pontinha do Gene Hackman como o cego que abriga o monstro. O roteiro é lindamente costurado, as gags são maravilhosas, as situações criadas no enredo são hilariantes.

O filme foi todo filmado em preto e branco, uma exigência de Gene Wilder para recriar a estética lúgubre do filme “noir” de Frankenstein com Bela Lugosi de 1943 (Frankenstein meets Wolfman). Essa característica adicionou um enorme impacto estético ao filme. Eu saí do cinema profundamente comovido, e fiquei com a música tema do filme durante anos na minha cabeça (um solo dolorido de violino composto especialmente para o filme pelo maestro John Morris). Infelizmente eu seria obrigado a esperar mais de 10 anos pela oportunidade de assistir novamente esta comédia. Nos anos 70 as únicas possibilidades de rever um filme eram passar de novo no cinema (improvável), uma apresentação com debate na faculdade (porque uma comédia, e não Godard?) ou assistir de madrugada no “Corujão” da Globo (raríssimas vezes o filme era um clássico). O vídeo cassete só se tornou viável no fim dos anos 80. Hoje em dia o filme está disponível a um simples clique do mouse.

Esta semana o clássico de Mel Brooks e Gene Wilder completou meio século de existência, e por isso resolvi contar a importância desse filme na minha juventude. Pedi que meus filhos vissem ainda pequenos, e eles adoraram. Mostrei aos meus netos há poucas semanas e eles também acharam muito engraçado, e por isso acho que se trata de um filme eterno. Ele continua engraçado transpondo gerações. Eu me sinto muito orgulhoso de apertar minha cara na porta de casa e ouvi-los dizendo:

“Put…. the candle…. BACK!!!”

Deixe um comentário

Arquivado em Causa Operária, Pensamentos