Memórias do Homem de Vidro – 17

O Sorriso da Pecadora

E aí encaminharam a mulher em direção a um grande muro de pedra. Seu corpo seminu e o cabelo raspado contrastavam com a dureza da rocha por detrás. Era jovem e, apesar dos castigos, mantinha ainda uma formosura de traços. Seus olhos eram fundos, como fundas era sua dor e sua angústia. As mãos trêmulas seguravam o resto que sobrara de suas vestes, destapando os pés magros e su­jos. Seu pranto era seco; seu olhar perdia-se por detrás da multidão que ora gri­tava. Parecia procurar na distância infinita algo ou alguém que de antemão sabia que não viria. Seu olhar vítreo vagava por sobre as cabeças, desatento aos deta­lhes. Finalmente, voltou seu rosto para baixo e seus joelhos dobraram-se pela exaustão.

— Vadia! — disse alguém, imerso na confusão de vozes.

— Vagabunda! — gritaram outros, e essas palavras ricochetearam na pedra bruta, golpeando-lhe nas costas. A dor das sílabas ferozes era maior do que as dores que seu corpo esquálido já suportara.

A adúltera esperava o seu final. A espuma de ódio no canto dos lábios dos que ali se perfilavam com pedras nas mãos mostrava-lhe que nada poderia impedi-los. Seu fim estava próximo. A leitura da sentença fora breve, assim como breves foram seus pecados. A mão dura da lei repousaria sobre seu corpo e seu espírito. Assim estava escrito, assim se cumpriria. As mãos carregadas de pedras se ergueram para o alto, à espera do aviso. Um silêncio. A pedra dura, o corpo vergado. A cabeça baixa. O pranto surdo. Ninguém falou, ninguém respirou. O mundo, entre um segundo e outro, parou para assistir. À espera do sinal esperado por todas as raivas; o aviso para que as pedras se lançassem ao ar, cruzassem o espaço e esmagassem o corpo frágil da pobre mulher. Ela mantinha seu olhar parado, sabendo que nenhuma palavra seria sufi­ciente, nenhum gesto ajudaria. Seu destino estava determinado pela incompreen­são e pelo ódio despertado. Ninguém poderia salvá-la. Aguardava com resignação silente o seu momento derradeiro.

Sua cabeça baixa ergueu-se pela última vez. Seu olhar perdido fixou-se em um horizonte que jazia próximo de onde as coisas começam e terminam. O corpo aprumou-se e os lábios moveram-se sutilmente. Naquele momento de espera, na­quele fragmento de instante antes da tempestade de rochas, ela fechou os olhos e…

Sorriu…

Sorriu a dor de perder a vida. Sorriu a dor de morrer por ter amado. Sorriu a dor do prazer. Sorriu a dor da liberdade. Sorriu o adeus aos seus. Sorriu porque lembrou daquele breve momento em que amou de verdade, transgrediu e gozou. Sorriu o riso dos loucos e dos libertários, o riso da graça e da desgraça. Seu sorriso era o sinal. Um sinal da culpa; uma confissão. Sorriu também pelos filhos que não tivera e pelos que sempre quis acalentar. Sorriu pelo leite que não verteu de seus belos seios, e das noites que não dormiria aconchegando seus filhos. Sorriu pelos homens, bons e maus, a quem seu corpo ofereceu repouso e sossego. Sorriu por tantos que auxiliara entregando seu carinho e seu calor. Naquele exato instante, ela se libertou. Olhou para a multidão com as pedras al­çadas ao ar e pôde entender com clareza o significado de sua dor. Não mais pa­deceria por desconhecer o significado e o sentido no seu sofrer. Era seu momento de ascensão. Liberta, já podia desembaraçar-se do fardo de seu corpo cansado.

Mas seu sorriso foi também o sinal que liberou a torrente de ódio. As pedras ras­garam o ar, assobiando uma música feroz. Uma chuva de cascalho e rancor. No ar, o cheiro do sangue misturava-se lentamente com a poeira. A multidão aos poucos se aproximava da mulher, para não desperdiçarem nenhuma rocha lan­çada. A carne dilacerada. O corpo aos poucos se desfazendo. Terra, lágrimas, sangue. Mas o alvo já nem era mais seu corpo. Aqueles que estavam presentes procura­vam aniquilar aquele sorriso, que se mantinha vivo e instigante. Por mais que as pedras procurassem atingi-lo, ele continuava ali, incólume. Saiu do rosto da pobre mulher, volitando por entre a multidão, e fixou-se nas retinas de cada um. As pe­dras já não mais o alcançavam.

Os executores ainda gritavam excitados, vociferavam, levantavam as mãos para o alto. Da pobre pecadora já não se ouvia a respiração. Nenhum movimento se per­cebia em seu corpo. A torrente de pedras e gritos parou depois de alguns minutos. Aproximaram-se do corpo imóvel. Um silêncio machucou os ouvidos, para obser­var se a vida ainda habitava naquele ser. Nada. O rosto disforme, as carnes abertas. O brilho da espada do soldado reluziu no peito. Seus seios à mostra ainda tinham o viço e a cor de outrora. Seu busto nada sofreu, como que poupado por sua beleza. Consumada a execução, seu corpo morto agora era carregado para longe. Os presentes aos poucos iam se afastando. As pessoas, de cabeça baixa, tenta­vam tirar de sua lembrança aquele sorriso, aquele enigma. O que a fez sorrir? Por que alguém arriscaria tudo, até a própria vida por um momento.

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Max deixou o pedaço manuscrito de papel sobre a mesa enquanto nos olhava, aguardando os comentários. Nadine havia avisado que seriam nossos últimos momentos juntos naquele dia, porque a noite já havia colocado seu negro cobertor sobre nossas cabeças. Max insistira em que déssemos nossa opinião sobre o texto que guardara para nos apresentar. Disse-nos que este seria um capítulo do livro que estava a escrever. Precisava da opinião dos amigos.

Nadine olhou-o, ainda repousando a mão sobre o queixo, e lhe disse:

— Querido colega… Entendo a dramaticidade do que você descreveu. Cheguei a sentir na pele a dor de morrer assim. Penso que todos levamos conosco um pouco da memória planetária, que faz com que tenhamos impressas em nossos corpos e mentes as sensações que nossos antepassados vivenciaram. Acho que a história carrega uma metáfora poderosa. Ela trata da possibilidade heroica de transgre­dirmos os nossos limites em nome de algo superior e nobre. No caso da adúltera pecadora, o amor era esse limite. Ela sabia que “amar/pecar” seria entendido como uma agressão ao modelo patriarcal estabelecido, e que mesmo diante da possibilidade de morrer ela preferiu arriscar, em nome de algo que ela entendia como sublime e valioso.

Resolvi também comentar o texto de Max. Sabia que era hora de ir, pois o escuro já dificultava nossa visão dos letreiros da rua em frente. O dia foi de intensas emo­ções de reencontro, e penso que Max deixara a leitura de seu texto para o fim porque queria nossa opinião sobre seu projeto de escrever um livro.

— Acho que podemos inserir sua metáfora em muitas circunstâncias banais e cor­riqueiras de nossa vida. A pecadora pode ser qualquer um de nós defrontando-se com as nossas paixões. O próprio nascimento humano pode ser visto nesse con­texto, se pudermos entendê-lo como um processo de profunda capacidade trans­formativa para uma mulher. E o nascimento humano carrega essa potencialidade, desde que se entenda a possibilidade libertária e empoderadora que ele traz con­sigo. Para uma mulher ser protagonista de seu próprio parto, ela precisa desafiar os limites impostos por uma sociedade que se assenta sobre valores outros, e que não admite que esses sejam subvertidos. A pecadora, em uma visão humanista, é aquela mulher que se decidiu por aceitar e incorporar por inteiro a tarefa de ser mãe, com tudo o que isso possa significar. É apoderar-se de um evento que sem­pre foi seu, mas que a sociedade tecnocrática acabou afastando dela. Esse res­gate é inegavelmente um gerador de conflito, e por isso muitas são vistas como “radicais”, “egoístas” ou outros adjetivos negativos que a sociedade utiliza para quem tenta desobedecer a seus ditames.

Nadine sorriu para mim, e Max terminou sua cerveja.

— “Pecadores”, entretanto, são também os médicos — continuei — que oferecem suporte e atenção a essas mulheres na sua busca por partos mais seguros e em­poderadores. Oferecer seu trabalho, sua profissão e sua face aos ataques de to­dos aqueles que se sentem prejudicados com essa transferência de poder os co­loca igualmente na condição de hereges transgressores. Entregar às mulheres essa força e essa possibilidade de protagonismo é considerado por muitos uma afronta. Muitos não hesitariam e apedrejariam sem nenhuma piedade. Outra me­táfora que me parece criativa é o momento de ascensão. Esse momento está pre­sente em inúmeras tradições religiosas, como a cristã, a budista e outras, e nos fala da possibilidade de alçar um patamar superior de compreensão da vida atra­vés da dor, da provação e do martírio. A pobre pecadora, diante do sofrimento que lhe foi imposto, teve a oportunidade de entender a vida e suas infinitas conexões no momento em que estava se despedindo dela. Essa possibilidade transforma­dora e renovadora está presente em muitos desafios que enfrentamos pela vida, principalmente no nosso contato com a morte. O parto pode ser também enten­dido como um momento de profunda provação, em que os valores humanos são colocados à prova. Nesse complexo rito de passagem, muitas mulheres se “des­cobrem” e ascendem a um estágio superior em suas vidas. Esse talvez seja um dos aspectos mais fascinantes do nascimento humano: seu potencial criativo e transformador.

Max mantivera-se em silêncio. Queria nos mostrar seu ponto, sua preocupação e talvez uma dor. Sabia que uma sociedade tecnocrática como a que vivemos não perdoa as pessoas que oferecem uma visão alternativa ao modelo dominante. “É duro passar a vida remando contra a maré, meu caro”, dizia-me ele. Bem sei disso. A postura contra-hegemônica na área da saúde é vista como algo intimi­dante, e tanto Max quanto eu já havíamos sentido a dureza das pedras lançadas por aqueles que não aceitam desvio dos dogmas fundamentais que sustentam nosso sistema de crenças. Nadine mesmo falava que, apesar de acreditar em muito do que dizíamos, não tinha coragem de assumir uma postura franca em di­reção ao humanismo, exatamente porque não existe um sistema de suporte aos médicos que agem orientados pela medicina baseada em evidências. Ela dizia: “Se você assistir partos normais, corre o risco de ser processado e cair em des­graça. O mesmo não ocorre se você fizer cesarianas, mesmo que tenha resulta­dos muito piores”. Ela temia ser apedrejada, mesmo seguindo normas seguras, superiores e atualizadas.

Impossível não compreender suas razões. Não conseguimos ainda criar um mo­delo que proteja aqueles que buscam o melhor para seus pacientes através de uma abordagem sistemática e científica. Quando problemas inevitáveis ocorrem durante o transcorrer de um parto, somos julgados por nossos pares, que na maio­ria das vezes estão a defender o seu modelo, o seu paradigma, que em geral se assenta exclusivamente na manutenção do poder sobre o nascimento. Sem uma integração entre mídia, entidades médicas, ministério público e judiciário, nunca conseguiremos nos proteger do oportunismo que cerca boa parte dos processos contra obstetras.

Max tinha enorme preocupação com isso, e dizia que apenas um esforço muito grande de toda a sociedade seria capaz de nos livrar do horizonte negro que se aproximava. Nossa taxa de cesarianas ainda era uma das maiores do mundo, as­sim como as taxas de morbi-mortalidade neonatal. A associação entre esses dois medidores de excelência em assistência nunca foi encarada por Max como uma coincidência. O sistema de seguro médico ameaçava entrar no Brasil com sua potencialidade destruidora, a exemplo do que ocorreu com os Estados Unidos, onde a “indústria do erro médico” solapou toda e qualquer possibilidade de modifi­cação das péssimas cifras de atenção materna e neonatal a curto prazo. Apesar de os Estados Unidos terem o maior orçamento de saúde do mundo, não estão entre os 40 países com os menores índices de mortalidade materna. Lá principal­mente, mas também gradualmente no nosso país, médicos trabalham com medo, apavorados e distantes de um envolvimento com seus pacientes. Nada mais afastado do ideal de cumplicidade e auxílio apregoado pela profissão médica.

Max sentia na pele a dor das injustiças. Sabia que trilhar o seu caminho de desa­fios lhe custara um preço demasiado alto. As pedras eram os olhares, as críticas injustas e infundadas, os comentários maldosos na sua ausência, a desconsidera­ção de alguns colegas. Entretanto, percebera também que não havia escolha, porque a estrada pela qual se decidira era de mão única. Diante das pedradas que a estrada da vida lhe ofereceu, seu único recurso era oferecer seu sorriso e sua compreensão.

Olhei meu amigo abraçar-se a Nadine. Era hora de ir. Lá fora a noite nos convi­dava para o repouso. Nadine estava com os olhos úmidos. Abraçava-se a Max como a tentar agarrar um pedaço de seu passado, onde tudo eram esperanças e sonhos. Max sorria e dizia que voltaríamos a visitá-la em breve. Olhei Nadine mais uma vez e tentei descobrir qual dor se escondia por detrás do azul dos seus olhos. Deixei minha curiosidade de lado e abracei minha querida amiga, sentindo seu coração perto do meu.

— Ric — disse ela. — Voltem mais vezes. Temos tanto a conversar, tanto a lem­brar…

Eu também trazia meus olhos mareados, e prometi que voltaríamos a nos ver em breve. Max me aguardava na porta e juntos saímos do hospital. Olhei Nadine mais uma vez e lhe acenei. Ela devolveu o aceno com um sorriso. Max despediu-se de mim na primeira esquina. Abracei meu parceiro e combina­mos mais uma vez reencontrar Nadine e reviver os velhos e bons tempos. Antes de se afastar, ele ainda me falou:

— Você não falou de sua dor para Nadine. Por quê?

Olhei para meu velho amigo e lancei-lhe um sorriso triste, que brotava das feridas profundas que cada um de nós carrega.

— Não gostaria que a tristeza pela injustiça que passei contaminasse nosso reen­contro. Fiquei tão feliz de ver de novo meus velhos companheiros que não queria que nossa conversa fosse dominada pela indignação ou pela mágoa. Nadine é uma doce amiga, não queria que se entristecesse por minha causa.

Max bateu nas minhas costas e segurou fortemente meu ombro.

— Prometa que vai escrever aquele livro. Você não pode sofrer em silêncio. Mui­tos colegas poderão entender o que aconteceu com você. Sua indignação não pode ser silente, pois dessa forma não conseguiremos modificar o modelo ana­crônico e machista que controla a nossa obstetrícia. Escreva, meu amigo; escreva tudo. Prometa.

Balanço a cabeça afirmativamente, prometendo diminuir o peso da injustiça que carregava, descarregando-o nas páginas escritas. Max despede-se de mim na primeira esquina. Abracei meu parceiro mais uma vez. A rua à minha frente está mais escura do que de costume. Os faróis e as buzinas me atrapalham quando revivo mentalmente as cenas do dia. Relembro as piadas e as histórias de Max e não consigo evitar uma risada. Senti um pouco de cansaço e certa sonolência, para logo depois lembrar que ainda havia centenas de e-mails para responder em casa. Meu celular toca uma única vez e recebo o aviso de uma mensagem de texto. Aperto as teclas do aparelho e leio no visor de cristal líquido:

“Patu Saleh, Max.”

Claro, companheiro… Patu Saleh!

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Memórias do Homem de Vidro – 16

Asfalto

Tentei fazer a ligação do meu mouse no computador novo, mas percebi que a co­nexão era inadequada. Inútil insistir. Com as mãos na cintura, eu vislumbrava o ventre cibernético do computador aberto à minha frente. Suas entranhas expostas não me traziam esperanças, mas me ofereciam a ilusão ingênua de controlar seu funcionamento. A conclusão era dura e inevitável: meu dispositivo era PS2, e a única porta acessível era uma serial. Eu necessitava de um adaptador, e talvez pudesse encontrá-lo no shopping. Ok, pensei eu, já conformado com o meu passeio compulsório. Aproveito e visito uma livraria. Quem sabe encontro alguma novidade, ou pelo menos leio o meu livro enquanto tomo um café expresso. Tento acordar Bebel para me fazer com­panhia, mas a festa da noite anterior a mantinha agarrada aos braços de Morfeu. Mais tarde agradeci por ela estar presa a este sono de pedra.

A tarde fria já mostrava seus estertores, colorindo de púrpura o céu da cidade. O vento cantava uma fria melodia na fresta aberta da janela do carro, enquanto os faróis dos automóveis lentamente iam se acendendo, produzindo uma dissonância ofuscante de luzes. O rádio é a companhia que me resta, e acompanho o som das músicas com minha voz desafinada. “E é só você que tem a cura do meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi”. Renato Russo fala da saudade daquilo que ainda não vivera, enquanto eu forço a vista para po­der enxergar a mudança nas tonalidades da rua. Penso na força de um ídolo que se foi, e que, ao morrer, tinha a mesma idade que eu. Novo, pensei. Vítima do desregramento que atinge os mais sensíveis, ainda jovem sucumbiu a um turbi­lhão de paixões avassaladoras. Sua poesia ainda encanta os “meninos e meninas” da geração que nem chegou a conhecer.

Meu caminho em direção ao shopping necessariamente passava pelo estádio de futebol. Aos poucos, vislumbro o topo das torres imensas que guardam os holofo­tes, e sua visão me trouxe à memória minha velha tese de que os estádios tentam reproduzir a estrutura dos castelos medievais, em uma intrigante fidelidade à ar­quitetura das cidadelas. O fosso, as torres sentinelas, a ponte levadiça, os guar­das, o povo alucinado e os exércitos digladiantes: tudo isso me aparecia de forma evidente nas partidas de futebol. Ali os clãs se reuniam para as batalhas, que o processo civilizatório sublimou nos jogos esportivos. Entretanto, o calor dos em­bates futebolísticos frequentemente produzia em mim a memória corpórea de um tempo passado nem tão distante, em que os “gols” eram muito mais sangrentos e as vitórias, realmente “arrasadoras”. Felizmente nossa impulsividade testosterô­nica e guerreira já havia encontrado outras formas mais sutis de expressão.

Quase em frente à curva do estádio, a intuição me fez mudar de rumo. Empurrada por uma vontade repentina, minha mão escorregou no volante e decidi não con­tornar o velho campo de futebol pela esquerda, mas manter uma linha reta e se­guir em frente para somente mais adiante virar em direção ao shopping. Poucos minutos depois, eu ainda questionaria as razões pelas quais tomamos decisões fortuitas, mas que posteriormente nos instigam a imaginação por guardarem uma causalidade aparentemente inexplicável. Ao passar o semáforo, percebi uma aglomeração próxima a um “bailão”, que é uma espécie de boate gauchesca muito ao gosto do povo. Uma pequena multidão acotovelava-se em frente a um posto de gasolina. Diminuí a marcha e me aproxi­mei para ver do que se tratava. Havia um popular, não um policial ou agente de trânsito, a pedir que os carros desviassem. Logo percebi que as pessoas se amontoavam em torno de um corpo caído ao chão. A ausência de agentes policiais me alertou para o fato de que o acidente devia ter ocorrido há alguns minutos apenas, e sequer houvera tempo para que alguma autoridade fosse acionada. Os transeuntes se agrupavam em torno da pessoa caída, me impedindo de ver detalhes do que havia acontecido. Abri o vidro do carona e gritei para o senhor que, com um lenço, fazia sinal para os carros que trafegavam:

— Amigo, eu sou médico. Alguém aí precisa de auxílio?

Ele curvou o corpo para frente, e forçou a vista para me enxergar dentro do carro. Ajustou os óculos com a mão que não segurava o lenço, ainda balançante, e res­pondeu incontinenti:

—- O senhor é médico? Sim, acho que precisamos. Houve um atropelamento. — Voltou-se para trás e, dirigindo-se à turba, gritou:

— Afastem-se. Este senhor é médico. Abram espaço!

Manobro meu carro no posto de gasolina em frente. Corro em direção à multidão, mas ainda preciso avisar: “Sou médico, deixem-me chegar perto”. Uma mulher jazia imóvel no asfalto. Minha experiência com atendimentos na rua é estranha. Parece que as coisas sempre acontecem ao meu lado. Já fui socorrista de muitos acidentes de carro e já auxiliei inúmeras pessoas vítimas do trânsito caótico. Parece uma imantação, ou talvez o fato de que aparentemente eu preciso me aproximar dos acidentes. Pareço ter uma vocação para “anjo da guarda”, o que talvez seja uma boa oportunidade de emprego depois que eu partir “desta para uma melhor”.

Desta vez não foi diferente de várias outras. O acidente havia ocorrido alguns mi­nutos atrás apenas. Depois de esbarrar nos indefectíveis curiosos, chego ao lado da pessoa que estava caída. Ajoelho-me ao lado do corpo e sinto a dureza do asfalto contra minhas rótulas. Instintivamente coloco uma mão no pulso e a outra sobre sua testa. Uma mulher, passando dos 50 anos. Vestia roupas simples, mas os sapatos bonitos e reluzen­tes pareciam novos. Sua calça estava rasgada próximo ao joelho, por onde se po­dia observar o amarelo subcutâneo de um profundo corte. Havia uma fratura ex­posta na altura do fêmur distal, e espículas ósseas agrediam as bordas da pele. Minha visão fixou-se na perna da mulher, à procura de sangue, mas não havia nenhum sinal. Como poderia um corte tão profundo, associado a uma fratura, não sangrar?

Pensei no pior. Olhei sua cabeça que, de lado, parecia tentar escutar o negro as­falto. Uma poça de sangue coloria de rubro o chão escuro. Sem movimentá-la, abri bem seus olhos e não percebi nenhuma reação das pupilas, que se encontra­vam imóveis. A dobra de sua orelha estava azulada e fria, mas o resto do seu corpo ainda mantinha o calor. Tinha uma extensa lesão por abrasão nas costas, de um vermelho intenso. Seus olhos, agora semiabertos, pareciam querer olhar um ponto qualquer do outro lado da rua. O som dos automóveis passava por entre as pernas das pessoas, e o círculo ao redor do corpo ia se tornando menor. Por entres os espectros dos curiosos amontoados ao meu redor, eu podia ver os vi­dros dos carros se abrindo para que cabeças fossem impulsionadas para fora, na ânsia de verem do que se tratava. Ao seu lado, uma senhora me falava:

— Ela é mãe da doutora Fulana, que é ginecologista. O genro dela é o doutor Fu­lano. O senhor os conhece?

Os médicos a quem ela se referia eram meus colegas. Sua filha era da mesma especialidade que eu, curiosa coincidência. O genro, outra coincidência, tinha um dos nomes igual ao meu. Não era meu amigo, mas sabe-se lá quantas vezes já havíamos nos cruzado nas galerias dos hospitais. A filha era provavelmente mais jovem do que eu, porque não reconheci seu nome.

— Ela está bem doutor? Estávamos atravessando a rua quando esta motocicleta apareceu de algum lugar. Ela não viu. Como ela está, doutor?

Não havia nenhum movimento respiratório. As pupilas estavam fixas, os olhos imóveis. Parecia ainda procurar algo do outro lado da rua, fixada em um ponto perdido entre a calçada e o horizonte purpúreo. Botei mais uma vez minha mão no seu pescoço na esperança de encontrar pulso carotídeo. Nada. Nem um mínimo sinal de vida. Olho para a amiga, que ao meu lado chora, e vejo nos seus olhos uma súplica. Pede uma esperança, uma chance. É uma bela mulher, passada também dos 50 anos. Está vestida com um casaco de couro mar­rom claro, e um batom vermelho vivo cobre seus lábios.

— Sua amiga morreu. Não há um sinal qualquer de vida. O trauma na cabeça, ou alguma lesão interna, deve ter sido o causador. Eu sinto muito.

Ela abraça-se a mim e chora. Seu soluço é baixo, mas sua dor é algo que sinto na pele. Os curiosos se aproximam mais ainda, e os ônibus diminuem a marcha pró­ximo ao acidente para poder democraticamente saciar a sede das pessoas pelos espetáculos mórbidos. Pessoas me perguntam se ela ainda está viva, e eu digo que devemos esperar a ambulância. O motoqueiro se aproxima e vejo espanto na sua expressão. Parece não acreditar no que vê. Seu olhar procura uma reação na mulher, mas esta não se move. A amiga continua a falar, tentando extravasar sua ansiedade. Diz que não conse­gue ligar para a filha da amiga, mas penso que ela na verdade estava sem cora­gem para isso. Pouca coisa no mundo é mais difícil do que dar uma notícia como essa. Continuo a olhar a pobre senhora, cujo corpo rapidamente parece esfriar junto com a noite outonal que se aproxima.

— Ela saiu para dançar. Estava atravessando a rua para uma aula de dança de salão. Ela está bem, doutor?

Quem me dirigiu a palavra foi um senhor gordo com uma camisa vermelha, já passado dos 70 anos. Talvez fosse um colega de aula; quem sabe um antigo amigo. Finalmente consigo entender para onde a mulher parecia olhar. Do outro lado da avenida um cartaz jazia, pendurado à parede de cimento cru: “Aulas de Dança de Salão”. Seu olhar continuava fixado no cartaz, como que a negar o que o destino lhe impusera. Apoiei a mão no ombro do senhor de camisa vermelha e disse-lhe em voz baixa:

— Ela faleceu, meu amigo. Não há mais nada a fazer.

Minha voz saiu como um sussurro proposital, para não criar confusão. Ele apenas falou “Meu Deus…”. Pedi que trouxesse do bar que existe em frente uma toalha para cobrir a senhora. Não conseguia aceitar os olhares dos passantes, que teimavam em chegar bem perto como que para ver a morte o mais próximo possível. Curvei-me mais uma vez em sua direção. Coloquei minha mão no seu rosto e fechei-lhe as pálpebras, tentando entender o que se passou. Uma pessoa sai de casa para uma aula de dança. Seus sapatos novos e reluzen­tes me diziam que ela era uma mulher vaidosa, caprichosa. Seu cabelo castanho pintado tentava disfarçar os fios brancos que teimavam em aparecer bem próxi­mos à raiz. Quem sabe estava procurando um namorado, uma companhia, ou apenas diversão e risadas marotas com as antigas amigas. Encontrou a morte ao atravessar a rua.

A fragilidade da vida é o que lhe empresta grandeza e fascínio. O fato de que po­demos nos retirar bruscamente dessa existência é o que nos faz pensar que cada momento é único, porque irreprodutível, e que a cada instante travamos uma luta contra nossa finitude. Com minha mão em sua face, tentei mentalizar sua passagem. Imaginei o cortejo espiritual que ao nosso lado deveria estar se realizando. Certamente ela teve em sua vida amigos, amores, familiares e pessoas que, já tendo passado para o lado de lá, a estariam auxiliando. Provavelmente ao meu lado haveria algum tipo de “Serviço de Recepção e Auxílio”, para ajudar aqueles que estavam regressando prematuramente à casa espiritual. Meu futuro emprego, pensei eu. Passei essa vida inteira recebendo os que vêm do outro lado, por que haveria de ser diferente depois de morrer?

Chegam os agentes de trânsito. Com suas “caixinhas falantes”, mandam informa­ções ao Pronto-Socorro. Apresento-me a um deles e explico que a mulher acabou de falecer. Ele transmite a informação para a central, mas confirma que a ambu­lância deve se apressar. Falo com a mulher da central e digo que a mulher não mais respirava, e que o caso era realmente fatal.

Minutos após, a ambulância chega, fazendo alarde. A mulher no asfalto jaz co­berta com a toalha do bar, e o paramédico apenas confirma minhas informações. Nada mais há para fazer.

Levanto-me e abraço mais uma vez a amiga. Pego um papel e escrevo meu nome, para que ela entregue à filha, minha colega ginecologista. Talvez ela qui­sesse perguntar alguma coisa, ou saber como estava sua mãe quando veio a fale­cer. Afasto-me da multidão e olho para o corpo miúdo que começa a ser carregado para a ambulância. Digo mentalmente adeus, pedindo para que ela possa ser bem recebida no lugar para onde está indo. Entro no meu carro e sigo meu caminho. Ligo o rádio. A lembrança de V. instantaneamente me vem à recordação.

“Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”, grita Belchior.

Ela também saiu de casa para uma aula de dança. Queria bailar no ritmo de uma canção há milênios cantada. Queria passar pelo seu rito, sem ser obstruída por uma sociedade que recrimina a autonomia e a liberdade. V. sabia que o caminho da libertação passa pela coragem e pelo enfrentamento. Morreu ao atravessar sua última avenida, atropelada pela inevitabilidade de uma doença imprevisível e im­possível de prevenir e abatida pela infecção contraída no que deveria ser o “san­tuário da antissepsia”. Logo ela, que tanto tentou evitar uma fatalidade ao procurar na humanização do seu parto a forma mais segura de lidar com o evento.

Dobro finalmente em direção ao meu destino. As imagens se multiplicam na minha mente, e eu continuo a pensar na morte e seus significados. A morte é o tabu-mor da medicina. É a maldita palavra não-dita. “Palavras são energia”, já dizia minha mãe. Nós, médicos, não pronunciamos essa palavra de cinco letras, talvez para afastar de nós a sua aura temida. Faz parte da nossa mi­lenar herança mística, e dos rituais que cercam nossa profissão. Não falamos feto morto, falamos “FM”; não nos reportamos ao câncer, e sim ao “CA”, e mesmo nós, imitando os pacientes, falamos das doenças malignas como “aquela doença”. Nossa ojeriza à morte, e ao fim determinado por ela, só pode ser compreendida se adentrarmos a sutileza dos alicerces que sustentam a medicina. Tentamos desviar da boca a palavra amarga, para que não chegue aos corações e mentes a marca indelével da nossa falibilidade. Morte em medicina significa o fracasso último de nosso intento fantasioso de sobrepujar a natureza e seus ditames.

Morrer é tão da vida quanto nascer, e enquanto não pudermos entender as pontas da existência como um tubo que se fecha, jamais seremos capazes de sobrepujar a dor de partir. Zeza ainda ontem me falava da dor de nascer, e deixar para trás aqueles que tanto nos amam e a quem deixamos órfãos de nossa presença espiritual. Também do lado de lá deve haver saudade, senão por que sorririam ao nos ver regressar aqueles que já se foram? Seria o humano fadado a um eterno acenar de cais? Seria a criatura de Deus um eterno suplicante de amores deixados para trás, na longínqua memória de tempos e paixões já idas? Seria a completude da presença constante um idílio mentiroso, tão falso quanto aquele em que a princesa e seu escolhido “viveram felizes para o sempre”? Será a existência maior marcada, em essência, pela fatalidade da partida, a sombra da despedida e a dor de um olhar a perder-se? “Viver é preparar-se para morrer”, diria Sócrates. Sem o desapego às coisas e às pessoas, nossa passagem se torna um mar de aflição e tormento. Viver é prepa­rar-se para a separação, para a distância.

Maximilian uma vez me disse: “Se quiser trabalhar com a vida, entenda a morte. Morrer é o que confere à vida sua grandeza e significado. Esta se torna mais vali­osa quando mais frágil a reconhecemos.” Max era certeiro, e sabia o que era a dor de perder alguém. O destino é realmente surpreendente. Pergunto a mim mesmo qual o sentido disso tudo. O medo da resposta me fez aumentar o volume do rádio. Haverá uma razão para o sofrimento?

Volto para a realidade asfáltica do meu percurso em direção ao shopping e tento me preocupar com a peça faltante do computador, para assim afastar os pensa­mentos dolorosos que tomaram conta da minha mente. Sigo meu rumo olhando o rosto das pessoas nas calçadas. Escondido no carro, os passantes não percebem minha angústia e minha estupefação diante do patético da existência. Tenho ga­nas de baixar o vidro e gritar: “Hei, você aí parado. Você mesmo, na parada de ônibus, de camisa amarela. Podia ser você. Isso mesmo… podia ser você”. Desligo o rádio, e uma música da infância me vem à memória, tomando o lugar da balada romântica. Era uma música evangélica polifônica, à capella, tão ao gosto do meu pai. “Se a morte vier hoje o buscar, como está com seu Deus?”

E se ela viesse?

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Memórias do Homem de Vidro – 15

Febre

— Nem sou eu que o digo — falou Maximilian com o dedo em riste. — Está nos melhores compêndios atualizados de pediatria. E da pediatria mais alopática e conservadora possível: não existe justificativa para baixar a febre de uma criança durante um episódio de hipertermia, salvo situações bem específicas e raras. Digo que a febre deve ficar alta mesmo, porque ela tem evidentes efeitos terapêuticos.

— Você está sendo mais uma vez exagerado, Max.

Nadine cruzou os braços e fechou o cenho. Não acreditava nas condutas exage­radamente conservacionistas que Max frequentemente utilizava. Para ela, o uso das evidências científicas era correto, mas até um determinado limite.

— Exagerado? Não creio — continuou meu amigo. — Exagero seria não entender as limitações de uma mãe e condená-la por usar drogas em seu filho. Nisso cer­tamente estaremos de acordo. Nossa cultura é muito sedutora no uso de medica­mentos, e não usá-los depende de uma postura muito corajosa e determinada, que só se sustenta com informação e atualização constantes. A febre (mas pode­ríamos falar da diarreia, dos vômitos, da tosse, das dermatites, etc.) é um dos mais fabulosos mecanismos de defesa elaborados pelo nosso organismo. O Ric, aqui presente, deve lembrar quando juntos tivemos uma aula sobre febre, em um curso de medicina social. Quando confrontados com as características essenciais da febre, pensamos: “A febre é tudo o que um antibiótico gostaria de ser”. Ficamos ambos apaixonados pelos mecanismos fisiológicos de adaptação produzidos pelo processo febril, e ao mesmo tempo chocados com o que a biomedicina mercanti­lista nos fez acreditar, apenas para nos vender remédios a rodo. A febre é um dos mais belos exemplos dos equívocos produzidos pela incompreensão dos proces­sos adaptativos de que a espécie humana é capaz. Hahnemann, pai da homeopa­tia, cunhou uma frase que, pela radicalidade e significação, nunca mais saiu da minha cabeça: “A doença é a outra face da saúde”. Eu costumo sempre dizer que “a doença é o estado alterado do bem estar”. Ficamos “doentes”, alterados, para preservar nossa “saúde”, equilíbrio.

Nadine espichou o olho para mim, em uma atitude conhecida. Queria ver minha reação às palavras de Max, cuja euforia e paixão pareciam transbordar em cada palavra que pronunciava. Este, sem se deixar interromper pela nossa troca de olhares, continuou seu discurso, mantendo seu olhar fixado em Nadine.

— A hipertermia é uma máquina fantástica de modificações orgânicas. A febre aumenta a velocidade dos macrófagos, que são as células de defesa da linhagem branca, aumenta a diapedese, ou seja, a capacidade dos glóbulos brancos de romper a parede dos vasos e atacar os microrganismos na intimidade dos tecidos. Além disso, aumenta a capacidade fagocitária dos leucócitos, que é a habilidade de “comer” bactérias e vírus. Aumenta o metabolismo intensamente para cada grau acima de 37, incrementando a capacidade de defesa pela mobilização do organismo. A febre nos “põe para baixo” produzindo fadiga, cansaço e debilidade, o que é um fenômeno adaptativo dos mais sábios, porque nesses momentos o indivíduo necessita de repouso e resguardo. Se a febre não produzisse isso, quem se protegeria? A temperatura corporal elevada também é importante na destruição de bactérias e vírus e, além disso, sinaliza aos outros animais humanos a pre­sença de uma doença infecto-contagiosa, o que nos auxilia a preservar os que ainda estão sãos. Qual grávida não recebe orientações, pelo menos no início da gravidez, de não segurar no colo uma criança febril?

— Muito mais há a falar sobre as maravilhas da febre, mas seria enfadonho, ta­manhas são as suas vantagens para o processo de recuperação da homeostase. Atentem, meus colegas, apenas para esta observação: quanto maior a febre, maior a capacidade de adaptação presente e maior a energia do indivíduo. É por essa razão que principalmente crianças pequenas fazem febres altas, e o uso da expressão “fazem” é proposital, porque somos ativos em relação a ela, porque a sua energia vital é muito forte e poderosa.

A tudo eu ouvia em silêncio. Maximilian dominava a todos com sua emoção e seu conhecimento. Era todo paixão e veemência. Nadine, mesmo quando discordava, pedia para que Max lhe desse a sua opinião, porque ninguém escutava Max sem se contaminar pelo seu entusiasmo. Quando falava, agitava os braços, fazia mími­cas, representava, modificava a voz para se adaptar ao personagem que imitava. Eu sempre fui seu fã número um. Pensava que Max era uma daquelas pessoas absolutamente indispensáveis em qualquer ramo do conhecimento, porque unia em um só indivíduo a paixão, o saber e o conhecimento apurado. Tinha energia para combater um sistema em que não acreditava, mas ao mesmo tempo era pró­digo em apresentar as comprovações científicas do que afirmava. Acreditava no conhecimento como elemento de libertação e tinha a medicina como meio de levar consolo diante das agruras de uma vida breve e sofrida, sem com isso considerar-se um emissário divino infenso aos erros e dúvidas. Resolvi romper meu silêncio e ilustrar a descrição que Max nos oferecia.

— Eu tenho uma história interessante sobre febres, e acredito que você gostará dela, Max. Acho que você, Nadine, deverá ter um pouco de paciência. Sei que não é o modelo com o qual você lida, mas escute com atenção, pois talvez isso possa ajudá-la a compreender melhor a minha forma de pensar o adoecimento. É uma breve história sobre as febres e seus significados ocultos.

*   *   *

Há alguns anos, eu morava ao lado da casa em que vivia um casal de russos: Baba, “mamãe”, e Deda, “papai”. Gostavam de ser chamados pelos seus apelidos familiares em russo, até mesmo pelos vizinhos. Ambos fugiram de Stalin, che­gando ao nosso país com seus filhos pequenos após o término da segunda guerra, em 1949. Perderam muitos parentes vitimados pela fome e pelo frio, re­sultado da própria guerra na Rússia. Durante a fuga, seu segundo filho, de pouco mais de dois anos, pereceu de pneumonia durante uma evasão. Ambos tiveram uma vida sofrida e cheia de percalços, mas encontraram no Brasil um lugar tran­quilo em que puderam criar seus três filhos. Deda era um veterinário de renome em seu país, e acabou se tornando um dos introdutores das técnicas de insemina­ção artificial de gado no Brasil.

Pois no meio de uma madrugada sou chamado por Baba para atender seu “Peter” — Deda. Disse-me que ele estava estranho, parado, com o rosto vermelho e “de­primido”. Ele já estava com mais de 80 anos, mas era um homem forte e vigoroso. Lá chegando encontrei Deda deitado na cama. Apresentava o rosto avermelhado e tinha a respiração alterada. Perguntei-lhe o que havia ocorrido e ele respondeu “Nada. Apenas estou com um pouco de falta de ar e me sentindo fraco”.

— Ten tosse? Vômito? Dor de barriga? — indaguei enquanto avaliava seu pulso

A essas perguntas me respondeu negativamente. Baba, por trás dele, fez um mu­xoxo. Olhou-me firmemente, preocupando-se em que o marido não percebesse seus sinais para mim. Fazia “não” com as mãos e apontava para o marido, fe­chando o punho contra o peito, como se estivesse a bombear algo. Entendi que ela estava me dizendo que a emergência do quadro em seu esposo tinha origens emocionais. Verifiquei a temperatura: 40 ºC. Febre alta, que em homeopatia consideramos os episódios febris acima de 39,5 ºC. Como pode um homem de 80 anos produzir tamanha temperatura? Lembrei-me das aulas do curso de homeopatia: “Fique calmo. Este homem está mobilizado”. Ele estava usando toda sua capacidade curativa para buscar a nor­malização do organismo. Era importante respeitar a forma específica como um indivíduo escolhe seu caminho.Pedi que sentasse para que eu escutasse seu coração e pulmões. O coração es­tava acelerado, mas isso era obra da febre. Nada mais de importante ou significa­tivo na ausculta cardíaca. Os pulmões: consolidação em base de pulmão esquerdo. Crepitações finas. Diag­nóstico: pneumonia em base pulmonar esquerda. Temperatura, ausculta pulmonar positiva. Nada mais havia a diagnosticar. Uma pneumonia clássica.

— O que tenho, Ricardino? — perguntou Deda com o seu indefectível sotaque russo.

E agora? Digo o que ele tem de supetão? Peço que vá a um hospital para exa­mes, submetendo-o às rotinas escravizantes e coisificantes das emergências hos­pitalares? Se eu lhe disser o diagnóstico, não vou assustá-lo mais ainda? Por ou­tro lado, posso omitir a verdade?

— Deda — perguntei eu. — Tenho mais algumas perguntas a lhe fazer. São im­portantes para que eu possa entender o que o levou a desenvolver esse quadro febril. Por que o senhor ficou assim? O que aconteceu?

Ele pareceu momentaneamente desconcertado. Não sabia o que dizer. Fez um cara de desentendido, mas foi interrompido por Baba.

— Deda, meu amor. Fale para o Ricardo. Conte do álbum de fotografias.

Seu rosto então se modificou. Ele agora estava sério, taciturno, e as sobrancelhas curvaram-se para baixo. Não era mais possível dissimular os conteúdos afetivos escondidos por detrás do sintoma.

— Fale Deda — insistiu Baba. — Conte ao doutor porque você ficou assim.

Ele começou então a explicar o porquê do seu estado.

— Eu estava limpando a biblioteca, Ricardino. Estava retirando a poeira de antigos livros de veterinária quando encontrei um velho álbum de fotografias da família. Ali estavam as fotos antigas dos meus tios, pais, irmãos e sobrinhos.

Começou a chorar. Posso imaginar o que a visualização de familiares que ficaram perdidos em um passado tão remoto, separados por guerras e oceanos, poderia produzir em um velho sobrevivente de tantas atrocidades.

— Continue Deda — disse eu.

— Pois, enquanto eu folheava as páginas do álbum, olhei para o relógio da biblio­teca que mostrava ser hoje o dia 30. Pois foi exatamente em um dia 30 que o meu genro morreu em um estúpido acidente de automóvel. Ricardino, todas as pes­soas do álbum estavam mortas, até o meu genro, que morreu ainda muito jovem.

Agora estava chorando copiosamente, abraçado pela sua companheira de lutas, alegrias e tristezas.

— E qual foi seu sentimento, Deda? O que você pensou vendo as pessoas que um dia amou naquele álbum, todas já tendo passado para a outra vida? O que sentiu?

Ele parou um pouco para pensar, mas depois me olhou no fundo dos olhos e disse:

— Medo, Ricardino. Muito medo. Muito medo, medo, medo.

Abraçou-se a Baba e continuou a chorar como criança. Esta me lançou um gesto de interrupção, dizendo que ele estava no seu limite. Deda era um homem senti­mental, marcado pelas dores, traumatizado pelas tragédias. Olhou as imagens de morte e saudade estampadas no velho álbum e reconheceu que sua hora um dia chegaria. Pensou na própria morte e no fato de, talvez, deixar Baba sozinha, que por décadas o amparou e auxiliou. Temeu a morte porque percebeu que, por mais que a houvesse enganado nas fugas, no frio, na fome e no próprio pelotão de fu­zilamento que um dia enfrentara, fatalmente ela ainda seria a vencedora. Dela não há escapatória, e as fotos antigas e amareladas de familiares que já se foram es­tavam a lhe mostrar a infalibilidade de seus desígnios. Era a peça que faltava ao interrogatório: a causalidade. A causa emocional pro­funda estava escondida. Poderíamos ter encerrado o encontro médico nas triviali­dades do diagnóstico somático, mas preferimos, tal qual escafandristas, perscrutar as profundezas escuras das motivações inconscientes. Nada mais complexo, po­rém nada mais revelador. O medo de atingir tais profundidades é que nos faz ad­mitir uma medicina tão superficial como a que lidamos na contemporaneidade. A questão é que, de forma espelhar, adentrar a intimidade de um paciente nos faz enfrentar nossas próprias falibilidades e limitações. Quem quer bancar o mergu­lhador de inconsciências em um mundo de rasas e ilusórias aparências?

Nossa medicina faz tal qual a história do homem que perdeu sua chave. Procu­rando insistentemente por ela, acaba esbarrando em um amigo, que se oferece para ajudá-lo. Passada mais uma hora de procura inútil, o desesperançado amigo lhe pergunta: “Tem certeza de que perdeu a chave aqui, embaixo do poste de luz?”. O dono da chave então responde: “Não, eu não perdi minha chave aqui! Perdi lá embaixo na rua, mas lá está tão escuro que resolvi procurar cá em cima, onde está mais claro”.

Fazemos com os sintomas emocionais e psicológicos dos nossos pacientes o mesmo que o protagonista da historieta faz com o breu que esconde sua chave. Fugimos da escuridão das incertezas e das dores profundamente escondidas, porque elas nos amedrontam e afugentam. Preferimos a claridade ilusória de exames laboratoriais e sinais clínicos manifestos aos sentidos. Mesmo sabendo da importância dessas características somáticas na elucidação dos mistérios di­agnósticos, é certo que elas representam apenas a ponta do iceberg que constitui o sofrimento construído pelos pacientes. A humildade de encarar um universo re­côndito dentro de cada ser que sofre é a principal ferramenta para se encontrar uma forma mais completa e abrangente de auxílio. Somente munindo-se da cora­gem fundamental para encarar a escuridão dos nossos sentimentos é que pode­remos, também, ajudar a quem nos solicita assistência e conforto.

Estava feito o diagnóstico, e o tema essencial do quadro era o medo. Crise de medo, febre alta, pele quente e seca, consolidação pulmonar em base esquerda, sede, aparecimento abrupto da sintomatologia. Um remédio brotava, dentre muitos que eram sugeridos: Aconitum napellus. Falei com Baba e perguntei se devia lhe dizer exatamente o que tinha. Ela res­pondeu que, se fosse possível, seria preferível omitir a expressão “pneumonia”, para não deixá-lo ainda mais atemorizado. Concordei com a ideia, mas expliquei que lhe diria exatamente o que tinha, procurando não amedrontá-lo mais ainda com essa palavra.

— Deda — disse eu de forma pausada. — Há uma infecção na base do seu pul­mão esquerdo. Você está com febre alta, mas não há justificativa para diminuí-la. Ela está cumprindo uma função importante no seu sistema de adaptação e defesa. Prefiro que ela se mantenha como está, ok? Estou lhe receitando um medica­mento homeopático que o senhor vai tomar de duas em duas horas. A febre ainda vai continuar mais um pouco, mas quero que o senhor comece agora a medica­ção, por isso eu lhe deixo os glóbulos que trouxe na minha botica. Combinado?

Ele concordou. Mexeu com a cabeça afirmativamente sem dizer palavra alguma. Ainda estava afetado pelas emoções. Baba passava a mão em sua alva cabeça, e lhe dizia palavras carinhosas em russo. Levantei-me e, quando estava para sair, ele ainda me disse:

Ricardino, eu vou ficar bom dessa pneumonia, não é?

Tive que rir. Não adiantaram os meus truques. O velho veterinário não ia se deixar enganar dessa forma. Era idoso, mas estava longe de ser bobo.

— Não, Deda — disse eu sem conter o sorriso. — Não é dessa vez que vão levá-lo.

Voltei à sua casa naquela mesma manhã. Encontrei Deda ainda abatido, mas sentado na mesa da cozinha e tomando café. Escutei seu pulmão e parecia estar a mesma coisa, mas o ânimo havia voltado parcialmente e a febre não havia mais se manifestado.

— Como está? — perguntei.

— Muito melhor — disse ele sorrindo.

No outro dia, o pulmão estava limpo, pouco mais de 24 horas depois. Nem um sinal de secreção ou ruídos estranhos. A febre acabara, porque já havia cumprido seu destino, pensei eu. Mesmo estando ainda fraco, estava lúcido, ativo, alegre e sem sintomas preocupantes. Ok, Deda, pensei eu. Você a enganou mais uma vez. Baba me lançou um sorriso de gratidão e Deda me deu um abraço à moda russa, com bastante força e fortes batidas nas costas.

*   *   *

Nadine manteve-se séria durante a minha breve história, mas percebi que, mesmo com algumas discordâncias, ela acreditava na possibilidade de que o psiquismo dos pacientes tivesse influência decisiva no aparecimento de sintomatologia, mesmo que complexa e de difícil interpretação. Nadine aos poucos começava a lidar com a questão da “psicossomática”, termo que Max deplorava — porque divi­dia “psique” e “soma”, que para ele eram indissociáveis — mas que para mim so­ava como o reconhecimento da mútua influência entre os aspectos psicológicos e fisiológicos manifestos pela energia vital em um determinado indivíduo.

Max acompanhou a história de longe, até porque já a conhecia, mas me lançou um sorriso assim que ela terminou.

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Memórias do Homem de Vidro – 14

A Irmandade do Sapato Furado

A linda loura aproximou-se lentamente de mim com aquele andar mágico, tipo flu­tuante, que faz a gente duvidar que seus pés estejam realmente tocando o solo. Ela me lembrava a bela Galadriel de Lothlorien, pelo sorriso enigmático e pelos cabelos louros a lhe cair nos ombros nus. Seu corpo estava coberto apenas com um fino véu alvo e transparente, e trazia brilhando no peito um camafeu dourado. Olhou fundo nos meus olhos e disparou:

— Você pode descobrir. Basta dizer a palavra mágica.

Palavra mágica? Que palavra mágica será essa?, pensei eu. E isso lá é hora de perguntar essas coisas? Shazam? Abracadabra? Hocus Pocus? Não… não direi nenhuma dessas. Muito óbvio. Talvez algo mais sutil.

Enquanto minha mente se torturava tentando entender a charada, escutei uma música que surgia de algum lugar distante. Assemelhava-se a uma melodia árabe. Tentei me fixar nessa sonoridade, enquanto a odalisca misteriosa me lançava mais um sorriso enigmático, cheio de perguntas. Enquanto eu pensava, ela aguar­dava sorridente pela palavra mágica, que “abriria todas as portas”. Mas que pala­vra seria? E que música era essa, que fica cada vez mais estridente? A linda loura se aproximou ainda mais, quase a ponto de me tocar, e começou a dançar ao som da música. Após alguns segundos, sua imagem foi se esvaecendo e ficando dis­tante. Apertei meus olhos insistentemente para fixar sua silhueta, mas pareceu não funcionar. Desisti e abri os olhos finalmente. Eles ficam paralisados em um ponto qualquer, perdidos no infinito cósmico (como me ensinara o astronauta Roger). Uma névoa encobriu minha visão, e a imagem da misteriosa mulher, de tão tênue, restou ape­nas na lembrança. Continuei a escutar a música das arábias, agora insuportavel­mente forte. A bruma aos poucos se dissipou e as imagens voltaram lentamente a se formar na retina. Não sem esforço consegui vislumbrar uma frágil luz verde pis­cando ao meu lado.

Era o meu celular.

Olhei em volta e tudo estava escuro. A dama de branco se foi, mas o som das arábias não cessava de tocar. Estendi meu braço para alcançar a luz piscante e vi minha mão ficar azul, mas talvez meus sentidos ainda estivessem entorpecidos pelo sono. Está muito, muito frio. Atendi o celular e, como por mágica, o som das mil e uma noites desapareceu. Vi no relógio, que dormia ao lado da cama, a hora do chamado: 5 da manhã. Era Cristina.

— Ric, estava dormindo?

Tive ganas de responder alguma coisa “engraçadinha”, mas apenas confirmei.

— Estou na casa da Márcia. Cheguei aqui às 3 horas, e agora as contrações dela estão muito fortes e frequentes. Acho que você e a Zeza podem vir.

Nossa equipe normalmente trabalha assim. Cristina é uma “batedora”. Chega na frente e começa a preparar a paciente com exercícios, cromoterapia e Yoga. Quando ela percebe que as contrações estão vigorosas, ela me chama. Olhei para o lado e Zeza já estava acordada.

— A dama de branco ligou. Disse que é para a gente ir para a casa da Márcia porque as contrações estão bem fortes e frequentes.

— “Dama de branco”? Quem é essa? Achei que a Cris tinha ligado.

Ooops. Confundi.

— Zeza, levante-se de uma vez — disse eu me livrando das cobertas. — Não me faça tantas perguntas de manhã porque meu cérebro ainda está tentando aque­cer. Acho que meus neurônios são muito lentos para dar o “arranque”.

Estava muito frio mesmo. Hoje foi o dia mais frio do ano, mas provavelmente o dia mais frio dos últimos anos. Parecia estar abaixo de zero. O material para o parto estava todo preparado na porta de casa, bastando colocar no carro. Tubo de oxi­gênio, seringas, ambu, laringoscópio, gazes, compressas, tesouras, soro fisioló­gico, inúmeras luvas descartáveis, tudo empacotado e pronto para usar. Porto Alegre não tem lugares muito distantes, como São Paulo ou mesmo o Rio de Janeiro. Minha paciente mora em um bairro que fica uns 15 minutos de carro da minha casa. Botei o nariz para fora de casa e confirmei: estava mesmo muito frio. Fomos recebidos pelo marido de Márcia, o Adriano. Ainda tenho tempo para uma gracinha:

— Tinha que ser no dia mais frio desse século?

Ele apenas sorriu e disse que a culpa não era dele. Entrando na casa, encontra­mos a mãe de Márcia, mãe de muitos filhos, quase todos nascidos em casa. Tem tranquilidade e sabedoria. Gostei de falar com ela, porque me transmitiu aquela ideia de parto como algo da mulher, em que não se justificam tantas intervenções. Subimos ao andar de cima e lá estavam Cristina, Márcia e uma dupla de gatos. Escutei as músicas tradicionais celtas que normalmente a Cris leva para os partos e senti o clima, o aroma e a aura que cercam um trabalho de parto. Estava tudo na penumbra, tudo muito silencioso. Ao meu lado, um aquecedor, que permitia que continuássemos vivos naquela gélida madrugada. O sol ainda nem aparecera, mas aos poucos os passarinhos começavam seu trabalho matinal.

— Parece que teremos trabalho por hoje, não é?

Marcinha me sorriu um sorriso de parturiente. Acho que foi Debra Pascali-Bonaro quem me falou do “labor smile”, que é o sorriso das mulheres em trabalho de parto; é um sorriso meio desligado, meio fora do lugar. Sei que ela quis ser simpá­tica. Esperei um pouco para fazer uma avaliação do colo. Queria que ela se acostu­masse à minha presença. Já é um choque a chegada de pessoas novas na casa, e ser examinada pode desencadear um estresse desnecessário e improdutivo. A parteira americana Ina May Gaskin, no seu livro Ina May’s Guide to Birth, relata a importância de respeitar a intimidade da paciente nesse momento tão sensível. Fala inclusive de trabalhos de parto avançados que foram descontinuados por dias, interrompidos pela chegada abrupta de um médico afoito. Essa entrada in­tempestiva de um profissional no cenário do nascimento pode ter efeitos tremen­damente nocivos para o resultado de todo o processo. Todo o respeito e o cuidado com a delicadeza do momento são fundamentais.

Por volta das sete horas da manhã, fiz o primeiro exame. Seis centímetros, colo fino, e a cabeça fetal muito, muito alta. Disse a todos que a dilatação estava boa, mas que ainda teríamos um grande trabalho pela frente ainda. Resolvi fazer um tour pela casa. Na prateleira de livros estava Parto Ativo, de Ja­nete Balaskas. Ao lado, uma série de livros espíritas que conheço desde pequeno da estante do meu pai. Chico Xavier, Emmanuel, André Luis, etc… Os gatos sor­rateira e manhosamente desfilavam na minha frente, disputando cadeiras e espa­ços na escada. Tomei cuidado para não atropelá-los enquanto caminhava de um lado para outro — vício incurável — tentando me aquecer agarrado a uma xícara de chá.

O tempo ia passando enquanto as meninas continuam seu trabalho com Márcia. Por volta das 10 horas da manhã, realizei outro exame. Procurei não demonstrar minha frustração, mas a dilatação pouco progrediu nesse período, e a cabeça continuava na mesma posição. Orientei as meninas a ajudar Márcia em um banho quente, para relaxar. Precisávamos ter paciência. O estômago constrangedoramente roncou, e percebi que o chá com bolachinhas foi a única coisa comemos desde a chegada. Já eram 13 horas e resolvi fazer mais um exame. Novamente tentei disfarçar a frustração. A dilatação aumentou muito pouco nas últimas horas, mas a posição do bebê estava inalterada. A dinâ­mica estava fraca: duas contrações em dez minutos. Fui obrigado a aceitar que este bebê está em OET.

Occípito Esquerda Transverso. O bebê estava com a cabeça atravessada na ba­cia. Ele ainda não conseguira fazer o giro para se adaptar ao estreito inferior da pelve. Parecia estar batendo nas espinhas isquiáticas e, por essa razão, não con­seguia descer na bacia, apesar de estar com sete centímetros de dilatação. Era hora de fazer alguma coisa. Sei que tranquilidade e relaxamento são essenci­ais, mas ponderei que uma ajuda mecânica também seria de auxílio. Marcinha estava muito bem. As contrações não eram dolorosas a ponto de fazer com que ela desanimasse. Ela se encontrava bem preparada psicologicamente. Adriano lhe ofereceu todo o apoio, sempre trazendo uma palavra de estímulo e conforto.

Pensei nas dicas que recebi de parteiras e doulas experientes e resolvi experi­mentar. Lembro de Penny Simkin, Jean Sutton e Debra Pascali-Bonaro e decidi utilizar uma técnica por elas preconizada para a liberação de espaço na ossatura pélvica. Solicitei que Zeza e Cristina realizassem a pressão pélvica na crista ilíaca, que consiste em colocar as mãos de cada lado da bacia da paciente e fazer força em direções opostas, tentando liberar um pouco mais de espaço entre as espi­nhas isquiáticas. O bebê se mantinha maravilhosamente bem, antes, durante e após cada contração, o que produzia sobre todos um efeito tranquilizante e moti­vador. Às três horas da tarde, realizei novo exame. Bebê alto, dilatação de oito centíme­tros. Que fazer? Olhei para Márcia com um sorriso amarelado e pensei que a mai­oria dos meus colegas obstetras já teria desistido. Márcia apenas sorriu. Adriano ao seu lado me olhava esperando alguma notícia.

— O bebê pouco se moveu, mas dilatou um pouquinho. Podemos continuar ten­tando. Como você está Márcia? Está bem?

Ela apenas me dirigiu um sorriso tímido. Sentia-se bem. Ainda mantinha o bom humor. Talvez a idade de Márcia, 35 anos, tenha sido uma vantagem. É o seu primeiro filho, mas ela exibe uma maturidade e uma segurança que talvez só a idade possa produzir. Continuamos a estimular os exercícios. Eu me distraio batendo fotos e lendo A Expropriação da Saúde, de Ivan Illich. Fico impressionado com o que ele escreve, e penso que a assistência à saúde está mesmo passando por uma crise sem pre­cedentes. Ivan consegue ser mais cáustico com o modelo tecnocrático contempo­râneo aplicado à medicina do que o próprio Maximilian. Sobre os perigos da tec­nologia aplicada ao parto, sem a criação concomitante de uma reflexão profunda sobre suas consequências, ele escreveu:

“O silêncio sobre a probabilidade do perigo no excessivo uso de medi­camentos na nossa sociedade, mantido pelas ‘oficinas de lanternagem humana’ (a medicina), é a nova manifestação pública da incapacidade da profissão médica de fazer uma profunda autocrítica, o que só pode trazer consequência sinistras para a sociedade”.

Acabamos pedindo uma pizza para almoçar, e ficamos todos admirados com o motoqueiro que a trouxe. Como andar de motocicleta com um frio desses? Às seis da tarde, as contrações continuavam firmes, assim como a têmpera de Márcia. Zeza a auxiliava durante as contrações, enquanto Cristina tirava uma so­neca. Decidi secretamente que esse toque das seis horas seria determinante. Ou este bebê baixava ou iríamos para o hospital. As contrações continuavam pouco inten­sas, apesar do gengibre e da canela. Meus dedos suavemente procuravam boas notícias, mas o que encontrei foram apenas velhas informações. O colo estava com oito centímetros de dilatação, o bebê só um pouco mais baixo, e a posição agora era OEA – Occípito Esquerda Anterior. Já não estava transverso, mas man­tinha-se alto. Ainda não havia transposto a linha imaginária que liga as espinhas isquiáticas. Precisava lhes dizer isso, apesar de não querer.

— Adriano e Márcia. Acho melhor irmos para o hospital. O bebê se moveu muito pouco. Continua alto. As contrações não estão efetivas. É provável que eu precise usar um pouco de soro para estimulá-las. O que vocês acham disso?

Márcia baixou o olhar. Sei que uma parte dos seus sonhos ficou frustrada. Tam­bém sei que ela sonhava com um parto na sua casa nova. Adriano olhou para a esposa, como a dizer: “A decisão é sua”. Ela concordou. Fizemos as malas com presteza e colocamos os equipamentos no carro. Mesmo tendo errado o caminho, chegamos ao hospital em menos de 15 minutos. Márcia teve poucas contrações no carro, o que fortalecia a minha ideia de que ela preci­sava de “motor”, força propulsiva. Chegando ao hospital, Márcia pediu que apenas instalassem o soro com ocitocina quando Adriano tivesse retornado da sua epopeia burocrática nosocomial. Estava tensa, contraída, e eu lhe esclareci que a viagem tinha esse efeito. Precisávamos agora nos adaptar ao novo ambiente, criar um vínculo de confiança com o lugar. Perder o medo e se entregar.

Pela primeira vez, vi Márcia contrariada. Sentia dor, desconforto. Percebi que o hospital estava agindo. Sua dor era a expressão do sofrimento frente à necessária readaptação ao meio ambiente. Márcia por momentos fraquejou. Seu rosto con­traído mostrava a tensão que o momento determinava. Está no Gênesis 13, versículo 32: “Sangrarás todos os meses e parirás com dor“. Este foi o preço que pagamos por termos desobedecido ao criador: Eva pecou por ter fugindo do paraíso da irracionalidade. Escapamos de um Éden perfeito, para o inferno de nossas inexatidões. A metáfora bíblica, no entanto, é maravilhosa. Para alcançar a fruta do conheci­mento, foi necessário erguer o tronco e ficar de pé, desafiando, assim, a onipotên­cia do Todo-Poderoso. Ao criarmos o “olho que a si mesmo enxerga”, arrogante­mente dissemos a Deus que queríamos caminhar (literalmente) com nossos pró­prios pés. A bipedalidade está na origem de nossa supremacia enquanto espécie, mas igualmente nos trouxe a dor de parir.

Os grandes macacos pongídeos não sofrem as dores de parto na mesma propor­ção com que as fêmeas da nossa espécie as sofrem, pois tem crânios fetais muito menores, relativamente à sua pelve. Entretanto, o parto é um desafio físico para a maioria dos primatas. Em geral, os gorilas, orangotangos, gibões e chimpanzés têm partos mais rápidos e simples, enquanto babuínos, saguis e macacos, entre outros, apresentam partos mais dificultosos, nos quais a desproporção céfalo-pél­vica não é um fator insignificante de mortalidade. O acréscimo importante de massa encefálica no gênero homo, ocorrida nos últimos dois milhões de anos, acrescido da bipedalidade anteriormente citada (datando por volta de cinco mi­lhões de anos passados), conferiu à nossa espécie o mais peculiar dos nasci­mentos. A ação conjunta de uma pelve mais achatada e constrita, aliada à cabeça grande de nossos filhotes, produziu um parto muito mais lento, laborioso e dolo­roso. Um dos resultados da evolução do bipedalismo é que o canal de parto é tor­cido na sua porção média, fazendo com que a entrada seja mais larga no sentido transversal, e a saída, no longitudinal, obrigando o feto a girar, ainda dentro do canal de parto. A característica tensão do colo uterino também é uma marca da verticalidade, pois ele necessita ser reforçado para suportar a força da gravidade durante a gestação e não produzir perdas precoces.

O resultado final dessa aventura adaptativa foi a produção de uma experiência de nascimento muito mais dramática e complexa do que a das outras espécies ma­míferas do planeta. O parto humano é mais doloroso e difícil que os demais, por termos nos “erguido para comer a fruta do conhecimento”, e posteriormente, bem alimentados por ela, termos triplicado nosso volume encefálico em relação aos nossos antepassados australopitecos.

Erguer-se e conhecer: os dois grandes desafios iniciais. Com essa característica de uma pelve estreita em uma cabeça cada vez maior, criou-se a necessidade de expulsar esses fetos o quanto antes do claustro materno, porque apenas aqueles que nascessem antes permitiriam que suas mães sobrevivessem, aumentando dessa maneira sua chance de viver e levar adiante seus genes. Certamente du­rante a longa jornada adaptativa da espécie humana, não foram poucos os óbitos por desproporção céfalo-pélvica. Nosso processo de experimentação acaba sem­pre produzindo vítimas, mas essas servem de lição e aprendizagem para a melho­ria da espécie. A expulsão o mais precoce e prematura possível de nossos filhos, na oportunidade em que tenham atingido capacidades mínimas de sobrevivência no meio extrauterino, terminou por produzir o fenômeno da “fetação”. Nossos be­bês hoje em dia são todos “prematuros”, pelo menos do ponto de vista do amadu­recimento neurossensorial. Uma gravidez humana deveria durar por volta de de­zoito meses, nove meses a mais do que se observa, pois com essa idade de vida é que um recém-nascido humano tem capacidades semelhantes às de um primata recém-nascido, como os chimpanzés ou gorilas, como nos relata Wenda Treva­than, em Human Birth. O resultado da expulsão fetal precoce é a “altricialidade”, ou seja, a extrema de­pendência do recém-nascido dos cuidados parentais. Essa peculiaridade de nossa espécie é a origem antropológica e biológica do amor materno, e também da nossa estratégia de constituir famílias, em vez de investir na promiscuidade como alternativa primeira para disseminar nossos genes.

Erguer-se, conhecer, cuidar, agrupar-se. Essas características foram fundamen­tais para a nossa sobrevivência. O surgimento da racionalidade foi o ponto culmi­nante e definitivo para a nossa supremacia sobre as outras formas vivas do pla­neta. O parto humano é uma maravilha da adaptação: uma obra de milênios, em que todos nós, por estarmos aqui, somos testemunhas de seu sucesso. Pela sua característica de milenar adaptação, o nascimento humano não pode ser melho­rado por obra da tecnologia, e todas as tentativas de artificializá-lo resultaram em fracasso. Resta-nos agora sobreviver ao desafio imposto pelo perigoso incremento desmedido da tecnologia na vida cotidiana. Estará a espécie humana, como que­rem nos fazer acreditar os filósofos mais pessimistas (como Jean Baudrillard, en­tre outros), fadada à desaparição, dando lugar a outra espécie mais adaptada, como as máquinas?

Entre as características mais estudadas do parto está a sensibilidade dolorosa, até porque a ablação dessas sensações está entre as possibilidades em que o saber médico pode atuar com mais intensidade. A dor do parto não pode ser negada nem menosprezada. Mas a pergunta frequentemente negligenciada é: “de qual dor estamos falando?” A “dor fisiológica” do parto, causada pela contração uterina, dilatação do colo, etc, é um fato inquestionável para a imensa maioria das mulheres, apesar de algumas poucas, como Madalena, relatarem a completa ausência de dor. Entretanto, essa experiência dolorosa é contrabalançada pelo acréscimo fantástico de endorfinas na circulação, em um incremento de até 30 vezes os valores séricos normais, o que auxilia a parturiente a suportar as dificuldades do processo. Além disso, os suportes emocional, afetivo, social e espiritual oferecem sentido a essa dor, pois, como já afirmavam os Terapeutas de Alexandria, “a única dor insuportável é a que não é interpretada”. Interpretar um sofrimento é conferir-lhe sentido, direção e pro­pósito. Uma mulher, de qualquer latitude, cultura ou época, que consegue enten­der o sentido superior de suas agruras e dores, vai acabar por superá-las, mesmo que para isso tenha que enfrentar face a face suas próprias limitações. Por outro lado, uma sociedade individualista e hedonista, em que o sofrimento parece não ter nenhuma razão ou objetivo, dificilmente poderá convencer uma mulher da im­portância da luta e da superação, mesmo ao vivenciar seu principal rito de passa­gem.

Falamos, então, de uma dor fisiológica associada a um processo que desafia nos­sos limites ou de uma percepção patologizante de um fenômeno natural, que se torna mais doloroso tanto mais relegamos ao esquecimento suas dimensões afeti­vas, sociais e espirituais? Afinal. De que parto estamos tratando? Falamos de um parto como se apresenta realmente, milenarmente construído como evento social, feminino e afetivo? Ou estamos tratando do parto tecnocrá­tico-biomédico-ocidental-contemporâneo de nossos hospitais e clínicas atuais, que é um dos mais contundentes exemplos de simulação da realidade, como tantos outros que encontramos na vida cotidiana? Não estaríamos falando de uma dor criada pelo modelo médico contemporâneo em função do distanciamento dos va­lores afetivos, sociais, emocionais e espirituais ligados ao poderoso rito de passa­gem que é o parto, como bem cita Wenda Trevathan em seu livro Evolutionary Medicine? O parto é um momento mágico, glorificado e temido por todas as culturas, por conjugar em um só evento os mitos mais temidos pela sociedade: sexualidade, nascimento e morte, como afirmava Holly Richards no seu artigo Manifestação culturais do nascimento: a perpetuação do medo.  Mas as origens dessas particu­laridades se perdem na poeira dos tempos. Para entender melhor essa estrada, há que se conhecer de onde viemos e porque somos assim. Divina e maravilho­samente diferentes.

Faço outra determinação em secreto silêncio. Decido que esse exame das 21 ho­ras seria novamente categórico. Nada falo para Cristina ou Zeza, porque não quero que ninguém se influencie pela expectativa. Fico apenas eu sabendo do que estarei decidindo. Na última avaliação, o bebê estava com uma bossa serossan­guínea no couro cabeludo, sinal de que estava há algum tempo fazendo pressão para passar pelo canal de parto. A bolsa havia se rompido durante o exame das 13 horas, e o líquido era claro com vérnix, que é aquela cera brancacenta, pare­cida com hidratante para mãos, que se compõe de gordura e células descamadas da pele do bebê. Isso não se modificou durante o dia, mas minha preocupação era de que já seriam 15 horas de trabalho de parto, e eu temia que Márcia estivesse esgotada demais, e que esse bebê fosse um caso verdadeiro de desproporção ou de mau posicionamento. A vida de um obstetra é sempre cheia de decisões a to­mar, angústias, escolhas e tensão. Continuo lendo Ivan Illich, esperando o tempo passar. É ele quem me assusta a cada linha, ao mesmo tempo em que me reco­nheço na sua fala.

“A aventura médica causa outros danos, na ordem social desta vez. A saúde do indivíduo sofre pelo fato da medicalização pro­duzir uma sociedade mórbida. A iatrogênese social é o efeito so­cial não desejado e danoso do impacto da medicina sobre a soci­edade, mais do que sua ação técnica direta.”

Fico feliz que alguém de fora do Brasil diga algo que Max me diz há tantos anos, mas, sendo ele “nativo”, ninguém lhe dá crédito. A extremada medicalização da sociedade é, como afirma Ivan Illich, a “máscara sanitária de uma sociedade mór­bida”.

Agora são 21 horas. Tenho que fazer o tal exame. Olho para Márcia, que estava agachada enquanto Cris e Zeza continuam a fazer uma forte pressão nas suas cristas ilíacas, procurando com isso oferecer espaço para que o bebê possa rotar e ajeitar sua cabeça na “pequena pelve”. Giro minha cabeça para o lado esquerdo e fecho os olhos. Imagino o bebê fazendo esse mesmo movimento. Mentalizo o pequenino dentro do ventre materno rodeado de uma luz azul-lilás, movendo-se da mesma forma que eu. A imagem daqueles robôs de Hollywood, que fazem a mesma coisa que um humano realiza ligado a ele por fios, me vem à cabeça.  Chego a visualizar feixes de luz nos conectando. Ok… vamos lá. Uma bossa bem volumosa. Um colo uterino edemaciado. Maus sinais. Entretanto, a cabeça do bebê desceu! Está abaixo das espinhas, e está em OP (Occípito Pú­bica). O bebe posicionou-se com a nuca voltada para os ossos púbicos da mãe, que é a posição mais adequada para a descida. Vejo que ele “obedeceu” minhas determinações e foi sensível aos exercícios que as meninas fizeram. Ele estava mais baixo! Seus sinais vitais continuavam maravilhosos, e o ânimo de Márcia se reascendeu quando eu disse que ele havia virado e estava bem posicionado. Olho para Cristina e solto um suspiro de alívio. Vai passar, pensei eu. Ela vai conseguir, sim, senhor!

Voltei a ter esperanças. Por alguns instantes, vislumbrei a presença de V. ao meu lado. Ao contrário de outras ocasiões, em que eu a via serena e séria, ela se apre­sentava sorridente, alegre e jovial, como quando a conheci. Estava vestindo uma roupa verde, parecida com as vestimentas de hospital. Pedi que ela desse uma ajuda especial naquele momento porque, mais do que qualquer outra coisa, era necessário ter paciência, além de tranquilidade e confiança. Ela nada disse, ape­nas sorriu, e no instante seguinte já não estava mais ali. Vou até a porta do centro obstétrico e aviso Mirtes, a irmã de Márcia, de que va­mos continuar apostando no parto normal, mas que isso ainda pode demorar. Ela fica aliviada, aperta minha mão com força e diz que liga mais tarde. Volto a “conversar” com Ivan, esperando que as coisas continuem melhorando para a minha paciente. Diz ele:

“Desde que as mulheres do século XIX resolvem se afirmar, for­mou-se um corpo de ginecologistas: a própria feminilidade trans­formou-se em sintoma de uma necessidade médica tratada por universitários evidentemente do sexo masculino. Estar grávida, pa­rir, aleitar são outras tantas condições medicalizáveis, como o são a menopausa ou a presença de um útero, até a idade em que o especialista decide que ele é demais”.

Maximilian sempre me alertara para isso, mesmo que Nadine ficasse brava consi­derando suas ilações exageradas ou paranoicas. Há anos que ele me provocava com essa questão: “Quais as duas cirurgias mais realizadas nos Estados Unidos? Pois não se surpreenda: a primeira é a cesariana, e a segunda, a histerectomia. Não é interessante, ou pelo menos intrigante, que as duas cirurgias mais realiza­das na pátria da infotecnocracia são sobre o mesmo órgão e sobre o mesmo gê­nero? E as duas recaem sobre a sexualidade feminina, com caráter amputador”?

Ivan e Max sabiam das coisas, mas para mim restava uma pergunta dolorosa: “O que estava eu fazendo ali? Qual a minha função? Qual a minha parcela de contri­buição na alienação que a medicina é capaz de produzir? Por outro lado, como seria possível para um médico impulsionar seus pacientes verdadeiramente para o crescimento pessoal e para a libertação?”

Márcia incrementou seus esforços, e percebi que ela estava mais confiante. Du­rante uma contração, escutei um som grave, vindo do fundo de uma força expul­siva. Cristina imediatamente voltou-se para mim, esperando no meu olhar uma confirmação. Já passavam das 23 horas, e não queria ser confiante demais. Re­solvi que valia a pena fazer um novo exame e investigar a posição do bebê no ca­nal de parto. Estava bem mais baixo, na posição +2 de De Lee. Uma grande bossa estava a cobrir a calota craniana do pequenino, mas inegavelmente tínhamos progredido. A dilatação não estava completa, porque um rebordo edemaciado de colo se colo­cava à frente do occipício. Resolvi então reduzir este colo inchado e colocá-lo para trás da nuca do bebê. Sei que isso pode causar alguma dor, mas estávamos muito próximos de conseguir algo para desistir devido a um rebordo renitente. Pedi a Márcia que empurrasse durante a contração, e assim ela procedeu. Ploc! Lá se foi o ultimo resquício de colo. Agora não havia nada entre o bebê de Márcia e o mundo gelado que o aguardava. Foi nesse instante que eu notei o pé de Zeza.

Ela estava usando uma botinha de couro forrado, que parecia um sapatinho de esquimó. Era muito bonitinho, e é o sapato de estimação que ela usa nos partos em dias frios. Mas percebi que, na ponta do sapato, havia um pequeno furinho, uma parte de couro desfiado. Olhei pra Zeza e disse:

— Zeza, que vexame! Olha só seu sapato. Está furado!

Zeza olhou para baixo, sorriu graciosamente e deu de ombros.

— Prefiro uma mendiga quentinha a uma grã-fina gelada — disse ela.

Sem conseguir conter o riso, Cristina se aproximou e mostrou o que estava usando nos pés. Era uma bota de couro de cano curto, forrada de pelego, para ser usada nos dias úmidos e de frio cortante. O detalhe que chamava a atenção é que exatamente na proeminência do dedão havia um furo. Um pequeno furo, mas que mostrava um inquieto dedo coberto pela meia. Quando as duas se deram conta de que estavam com o sapato furado, desabaram em risadas, a ponto de ser neces­sário pedir que saíssem da sala para que não desviassem a concentração da pa­ciente.

Minhas companheiras de equipe, ambas de sapato furado.

Foi então que Márcia teve uma contração mais forte do que as outras. Eu me aproximei e constatei que, vencidas todas as dificuldades, seu bebê estava pró­ximo da saída. Respirei aliviado. Finalmente! Os cabelos escuros começavam a aparecer no introito vaginal. Chamei Zeza e Cristina para perto, e pedi a Zeza que assumisse a posição para segurar a criança que estava chegando. Estávamos nos aproximando da meia-noite. O dia seguinte seria o dia da data provável do parto. Márcia sorria e dizia para a barriga que aquilo que o Dr. Ric ha­via dito era apenas uma projeção, e que ele não precisava nascer exatamente no dia “estabelecido” pelo médico. O pediatra na sala auxiliava com seu bom humor a manter um clima de expectativa positiva. As últimas contrações foram fortes, e a progressão, lenta. O avanço era insidioso, pausado, mas a cada contração percebia-se que a posição do bebê havia se mo­dificado um pouquinho.

— Faltam 10 minutos para a meia-noite — disse eu. Será que eu estava mesmo com a razão?

Márcia faz uma força espetacular. Reúne em seus braços e no abdômen a energia fantástica das fêmeas. Grita, geme. Contrai o rosto pela última vez.

Nasceu. Faltando cinco minutos para a troca do dia, ele veio ao mundo. Envolto em líquido amniótico e vérnix, nasceu Marcus Filipe, com 2710 gramas, apgar 9 e 10. A cabeça pontuda denuncia o tempo e a dificuldade para nascer, mas nasce ativo, esperto e logo abre os olhos. Dezoito horas depois de termos chegado à casa de Márcia e Adriano, consegui­mos realizar o sonho esperado de um parto normal. Praticamente não houve lace­rações, mas foi dado um ponto apenas na parede vaginal anterior. Márcia estava exausta, mas feliz e exultante. Lutou contra muitas dificuldades, principalmente o cansaço e a posição inadequada do seu bebê no canal de parto. Foi uma grande vitória, principalmente porque acreditamos e valorizamos seu de­sejo. Ela merecia o sucesso que teve. Lutou com todas as suas forças para ter um parto humanizado e empoderador. Sei que, diante das dificuldades apresentadas pelo parto, seria difícil que Márcia tivesse seu filho de forma normal, não fosse essa a equipe que a acompanhou. As meninas, com sua presença e atuação constantes, foram novamente o grande diferencial positivo. Saindo de lá, ainda olhei para as minhas colegas e comentei:

— Espero que da próxima vez vocês venham com sapatos melhores para atender um parto, não é?

Elas me respondem ainda rindo:

— Somos a “Irmandade do Sapato Furado”. Temos estilo. Não foi por acaso. Es­ses furinhos no sapato em verdade são uma comunicação com o universo, com a feminilidade, com os instintos. Foi por isso que conseguimos sucesso hoje, porque estávamos em contato direto com a “mãe-terra”. Precisávamos de um contato fí­sico com as deusas que nos transmitem força e intuição. Nossos sapatos furados funcionaram como “antenas invertidas”, receptoras da energia de Gaia.

Quem sou eu para duvidar?

Dirigindo-me para o carro, lembrei-me mais uma vez de Ivan e Max, e como am­bos elogiavam o modelo chinês dos “médicos de pés no chão”. Era para eles a possibilidade de mandar de volta para a cultura e para a sociedade a responsabili­dade que foi usurpada pela ideologia tecnocrática, que produziu o que Ivan Illich chama de “expropriação da saúde”. Mas será que minhas colegas Cristina e Zeza não seriam uma forma de nova “brigada de mulheres” na construção de um novo modelo de saúde da mulher, centrado no empoderamento feminino e em uma vi­são holística de saúde em consonância com a natureza? Seriam elas um novo paradigma? Seriam elas mesmo a “Irmandade do Sapato Furado”, em paralelo com “médicos de pés no chão?” O retorno de um modelo feminino de atenção ao parto sempre me apaixonou. Mi­nha busca por uma resposta à gravura de livro de Odent acabou me levando a procurar o apoio das mulheres, para oferecer às grávidas aquilo que eu não as podia dar. A “Irmandade do Sapato Furado” aparecia como um “modelo que fun­ciona”, na busca por uma assistência mais humana, mais afetiva e mais centrada na mulher, em seus desejos e necessidades. Ao voltar para casa, caio na cama quase desfalecido, mas ainda tenho tempo de refletir sobre os eventos do dia e como nosso esforço foi recompensado, princi­palmente pela atuação das meninas.

Mas ainda restava uma dúvida na cabeça: ela voltaria para me interrogar? Se a odalisca de branco me perguntasse novamente a palavra mágica, qual eu diria? Qual a palavra que permite a uma mulher se expandir? Qual o segredo que cada uma delas esconde? Que palavra Márcia ouviu, que fez com que ela suplantasse suas dúvidas e obtivesse sucesso? Qual a palavra a ser dita?

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Memórias do Homem de Vidro – 13

O Masculino Ameaçado

— Nadine, preste atenção no que vou lhe dizer. Não existe isso de “homens têm uma vida mais fácil”. Isso é sexismo, tão grave quanto o tipo que nós, homens, lançamos historicamente contra as mulheres. Se você combate os preconceitos, seja contra todos, e não somente contra aqueles que particularmente te afetam.

Max parecia irritado, mas só para quem não o conhecia. Ele tinha essa forma apaixonada e teatral de apresentar seus argumentos. Quando elevava demasia­damente o tom de sua voz, eu simplesmente fazia um sinal com a mão junto com as palavras “menos, Max, menos”, e ele entendia a necessidade de dosar sua emoção. Nossa conversa já durava algumas horas, mas até então um não se atrevia a olhar para o relógio. O cheiro do café que sobrara do meu “expresso” sobre a mesa misturava-se com o suave perfume de Nadine, que sentara ao meu lado. Ambos éramos a plateia de Max. Tanto nós gostávamos de escutá-lo quanto ele adorava suas “apresentações”. Nadine estivera provocando-o, dizendo que a maternidade, o parto e a menstrua­ção tornavam, inequivocamente, a vida das mulheres muito mais complexa e so­frida. Dizia ela que a natureza fora injusta com a distribuição de sofrimento im­posto aos gêneros. Nadine claramente defendia, mesmo sem saber, a tese da “queda do paraíso”, afirmando que o sofrimento das mulheres no parto e no ciclo menstrual estava diretamente ligado a um “defeito de fabricação”, que o Divino havia determinado e a cultura, ratificado. Max não aceitava essa visão do feminino, e sempre que essa questão aparecia nas nossas conversas sua reação era emocional. Ele continuou a sua explanação:

— Desde que nos decidimos pela diferença sexual, há alguns milhões de anos, as coisas sempre foram assim, digamos, complicadas. Somos dois, caminhando juntos em uma estrada que sequer sabemos ao certo onde leva. Nessa aventura de criarmos a complementaridade no outro, o que nos sobrou de concreto é que apenas um dos gêneros engravida, e isso é um fato biológico com repercussões tremendas. Assim, todos nós, homens e mulheres, somos “nascidos de mulher”. Essa diferença da biologia nos separa inexoravelmente. Entramos nessa vida egressos da calidez escura de um ventre feminino.

— Por milhares de anos, a nossa estrutura social propiciou uma formatação está­vel de papéis, em que mulheres e homens nasciam com uma trilha predetermi­nada na existência. Por milhares de gerações, isso não foi questionado. Era tão “da vida” como o nascer e o pôr do sol, a sucessão das estações e a lua trocando sua face. Hoje as coisas mudaram, e a insegurança veio no pacote da liberdade de escolhas.

— Por outro lado, a entrada das mulheres no mercado de trabalho, adentrando bolsões de exclusividade em que apenas os homens tinham acesso, acabou pro­vocando um efeito dominó, em que, obviamente, os homens acabaram sendo atingidos. É impossível mudar as mulheres sem que os homens sejam afetados.

— Na sociedade, estamos interconectados através de “vasos comunicantes”. Quando alguém se modifica, imediatamente provoca uma reação em quem se en­contra próximo. A busca das mulheres por autonomia e liberdade acabou produ­zindo nos homens uma necessária, e por vezes complexa, adaptação a esta “nova mulher”.

— Mas o que houve com os homens? — Max deu ênfase na pergunta. — Erram os que pensam que os homens continuam em uma “vida boa”, enquanto as mu­lheres estão sofrendo por jornada tripla, excesso de trabalho, filhos, casamento, etc. Homens sofrem hoje, agudamente, de um processo crônico de insegurança. Somos condenados a mostrar incessantemente nossa função no planeta. Como diriam os psicanalistas, precisamos “matar um leão por dia para mostrar ao nosso pai”.

— Com a evidente emancipação das mulheres, a situação piorou. Se antes éra­mos os guerreiros e provedores necessários, somos o que agora? Se antes matá­vamos o javali na floresta e trazíamos o suprimento de proteína fundamental à alimentação do bando, para o que somos realmente necessários neste mundo em transformação?

— O aparecimento na TV de séries que discutem as fragilidades masculinas é apenas um sintoma de uma mudança grave e profunda na sociedade, em que o único resultado previsível é o medo e a insegurança. É pura ingenuidade achar que os homens não sofrem! A questão dos “nomes, descendências e patrilineari­dade” que foi por nós tantas vezes discutida levanta a ponta do véu da insegu­rança masculina. Henci Goer, nos capítulos finais de Obstetric Myths…, desen­volve a tese de que a configuração de nossa sociedade se ergue em função da inveja ancestral que os homens nutrem pelo processo feminino de parturição. Di­ante da magia e do maravilhoso espetáculo do nascimento, o homem primitivo teria dito:

“Isso eu não posso fazer, mesmo com a mais refinada racionalidade. Diante da minha impotência frente à magia do nascer, só me resta sair por aí, construindo cidades, impérios, culturas, instituições, e conquistando o espaço cósmico.”

— E agora, Ric? O que resta aos homens? Estaríamos nos umbrais de uma soci­edade em profunda e dramática transformação? Rompidos os liames que nos prendiam ao processo gestatório natural, qual a utilidade dos homens na face da terra?

Nadine escutava com viva atenção, mas percebi no seu olhar uma expressão de clara curiosidade. Em um mundo dominado pelo patriarcado, era no mínimo curi­oso escutar um homem falar das normalmente inconfessas fragilidades do gênero masculino. Max continuou sua explicação, com a mesma mistura de coreografia e mise-en-scène.

— E agora, meus caros amigos, não falta mais nada. No Japão, pesquisadores conseguiram fazer a reprodução de um camundongo utilizando o material genético de duas fêmeas. O processo de criação dessa vida em laboratório dispensou completamente a parcela masculina da fecundação. Nenhuma colaboração do camundongo macho. A vida se reproduzindo como nunca havíamos imaginado anteriormente. Que significado tem isso para o mundo? O que veremos a partir de agora? O que falta para nos assombrar? Será que estamos mesmo às portas de um “Admirável Mundo Novo”, e ainda sem “tranca e sem porteira”, no dizer dos gaudérios?

Olho para Nadine e lanço um sorriso. Ela me devolve um levantar de sobrancelhas e um arregalar de olhos, demonstrando certo espanto com as palavras e profecias de Max. Por outro lado, parecia se divertir com o discurso do nosso enfático co­lega. Ambos tentávamos descobrir até onde aquela conversa poderia nos levar. Max nos olhou e disse que iria nos contar uma história.

*   *   *

Vou contar para vocês um sonho revelador que tive alguns anos atrás. Nesse so­nho, eu acordo como o “Dorminhoco” de Woody Allen, em um local desconhecido e frio, deitado em uma cama dura e coberto com um alvo lençol. Não foi necessá­rio muito tempo para me dar conta de que estava em um hospital. Os equipamen­tos sofisticados e desconhecidos pendurados nas paredes, assim como os arte­fatos ligados aos meus braços e minha cabeça, deixavam claro que, mais do que em um simples hospital, eu estava em uma clínica do futuro. Alguns minutos de angustiante atordoamento se passaram até que um grupo de jovens mulheres, médicas ou talvez enfermeiras, adentrassem a sala em que eu me encontrava. Uma delas, a mais velha, aproximou-se de mim e após algumas explicações inau­díveis levantou de um só golpe a minha camisola, expondo minhas vergonhas. Eu não conseguia me mover mesmo ordenando às minhas pernas que se mexessem, o que é uma característica nos meus pesadelos. As “estudantes” examinavam meus órgãos externos com uma clara curiosidade científica. Escutava cochichos e comentários, mas me era impossível entender seu conteúdo. Notei que não havia nenhum estudante homem, mas aos poucos percebi que naquele hospital inteiro parecia não haver nenhum representante do sexo masculino. As pessoas que en­travam e saiam constantemente do quarto também eram todas mulheres. Talvez eu estivesse em um hospital ginecológico ou coisa assim. Passados alguns minu­tos, as mulheres deixaram a sala, com exceção da mais velha que, aproximando-se de mim, falou com uma voz firme e pausada:

— Caro Dr. Maximilian, você veio do passado, resgatado por uma das nossas má­quinas do tempo. Desculpe pelo incômodo e pela situação embaraçosa em que o colocamos. Você faz parte de nossa aula de história natural, e essas moças que o examinaram são alunas do curso. Não se preocupe, pois em breve voltará para a sua era, que nós chamamos de “pré-história”, e de nada se recordará. Somos a sua civilização, em um futuro distante. Como deve ter percebido, você é uma curi­osidade em nossa aula por ser homem. Nossa sociedade aboliu os homens há muitos anos.

Minha percepção estava correta. A ausência de homens entre as pessoas pre­sentes na aula era mais do que uma coincidência. Realmente não havia mais ho­mens no mundo. Comecei a suar e tremer.

— Não há mais homens na terra — continuou ela. — Há alguns séculos, eles aos poucos se tornaram pouco úteis, sendo utilizados apenas para específicas tarefas nas quais o seu conteúdo exagerado de testosterona ainda era necessário. Com o tempo, foram escasseando, principalmente em função dos sistemas modernos de seleção cromossômica, até que, sob o reinado da Rainha Madonna XII, eles foram oficialmente extintos. Aqui nesse hospital são guardados espécimes de sêmen, congelados há séculos, para o processo de fecundação. Há muitos anos, desen­volvemos a capacidade de escolher geneticamente os espermatozoides, e apenas os que contêm carga X são aproveitados, sendo o resto desprezado. Nossa soci­edade é composta apenas de mulheres. Casamos, fazemos nossas filhas em la­boratório e gestamos bebês em chocadeiras artificiais; temos uma vida sexual agradável e não temos guerras há muitos séculos.

A tudo eu escutava com horror. Tentei me beliscar, mas não conseguia me mover, atado que estava aos equipamentos de transporte espaço-tempo. Resignei-me: era impossível fugir do sonho. Com visível comiseração, ela continuou sua expla­nação.

— Perto da sua era, nós, mulheres, começamos a nos evidenciar em vários seto­res antes dominados por vocês. As tarefas sociais, outrora divididas por uma falsa “especificidade”, passaram a ser compartilhadas plenamente por ambos os sexos. Cada vez mais percebíamos que a diferenciação sexual já havia cumprido sua parte no desenvolvimento e no aperfeiçoamento da espécie, mas sua importância era cada vez mais questionada. A tecnologia estava às portas de nos oferecer um grande avanço, e talvez o mais dramático de todos: a seleção cromossômica, que nos ofereceria a ferramenta derradeira para o controle da reprodução. A partir de então, podíamos escolher o sexo de nossos filhos através da tecnologia que sepa­rava os espermatozoides.

— Foi o que aconteceu. Os homens começaram a ser preteridos ao nascer, por­que sua força se tornara desnecessária em um mundo absolutamente mecani­zado. As mulheres, por ainda serem “matrizes”, passaram a ter mais valor nas op­ções de reprodução do que os homens. Estes continuaram a conviver conosco, mas aos poucos seu número foi diminuindo. Algumas mulheres até se casavam com homens e tinham seus filhos da maneira primitiva — chamada “biológica” — mas eram discriminadas e encaradas com preconceito. Eram tratadas como ‘sel­vagens’, adoradoras do passado, e sofriam um processo de exclusão social. Com o tempo, poucas mulheres ainda se aventuravam a fazer seus filhos de forma na­tural. O sexo passou a ser um componente de recreação, e não mais uma parte fundamental da reprodução.

— Separamos sexo de procriação; gravidez de maternidade e amamentação de maternagem. Finalmente estávamos livres do nosso destino cruel. Nossa tecnolo­gia resgatou-nos inclusive do pecado original, pois não mais sangrávamos há muitas décadas, até que o próprio processo de parto deixou de ser um fardo para nós com o advento das modernas “chocadeiras humanas”.

— Os homens tornaram-se claramente inúteis, e com o passar do tempo foram escasseando. Os que sobravam moravam em guetos, afastados das cidades, e eram rudes, ignorantes e decadentes. Por fim desapareceram, como tantas espé­cies na história do nosso planeta.

A professora respirou fundo e, mirando bondosamente meus olhos, concluiu seus comentários:

— Por isso você foi trazido aqui. Veio para ser mostrado como uma curiosidade às alunas de história natural. Não se preocupe, a aula já acabou. Entrará em sono profundo e despertará em sua cama, no passado, sem se recordar de nada. Obri­gado por sua colaboração.

Passou a mão sobre meu rosto e sorriu. Saiu sem olhar para trás, deixando na sala um perfume de “Patchouli”. Fechei os olhos e tentei entender. Somos então os últimos de nossa raça! Somos o ocaso de uma linhagem de guerreiros, gênios, mártires e tiranos. Somos os últimos homens na terra. A tecnologia acabou com os cromossomos Y, relegados a ficar apenas em laboratórios assépticos e serem descartados na lixeira por falta de uso. Derramei uma lágrima por meus filhos e netos…

Nossa busca por sentido e significado após a revolução sexual resultou nisso: nada. Não fomos capazes de descobrir uma função digna e específica para a masculinidade no nosso planeta. Fadados ao desaparecimento, acabamos exter­minados pela nossa própria inutilidade. Nossa decadência foi paulatina e culminou com um inglório término. Derramei mais algumas lágrimas pela honra masculina do passado, por Einstein, Aníbal, Gengis Kahn e Gandhi. Meu pranto imóvel foi interrompido pela chegada de uma mulher alta e corpulenta, usando um avental comprido e branco. Ela se postou ao meu lado, colocou-me um garrote no braço e sorriu.

— Você vai dormir agora, companheiro. Em breve não se lembrará de nada. Mas tenha fé. Existe esperança.

Senti a agulha fria penetrar minha veia e o líquido gelado resfriar meu braço. An­tes de cerrar pela última vez minhas pálpebras, olhei para a enfermeira corpulenta para, pelo menos em pensamento, dizer “adeus”. Pensei na expressão “compa­nheiro” e no significado que emprestávamos a essa palavra em “nossa época”.

Ela então, sorrindo, abriu seu avental branco e me mostrou sua intimidade. Quase gritei ao ver. Em verdade, se pudesse, gritaria.

Era um homem. Com todos os apetrechos que um homem deve ter. Estava tudo ali. Como? Tentei falar, mas ela (?) me impediu. Fechou imediatamente o avental e sussurrou em meu ouvido:

— Não faça força, amigo. Logo, logo você vai dormir. Tenha apenas esperança. Somos a “resistência”. Trabalho para a espionagem do nosso grupo. Roubamos os cromossomos “Y” das lixeiras do laboratório e estamos construindo uma pe­quena comunidade de homens e mulheres. Tenha fé. Temos mulheres que nos apoiam. Somos poucos, mas um dia reverteremos o mal que o sexismo causou a este mundo.

Mais uma vez tentei lhe responder, mas o líquido que fluía através das veias do meu braço começou a atingir meu cérebro. O sono, qual manto aveludado de amortecimento, veio vindo lentamente. As imagens foram a princípio se tornando turvas, para finalmente desaparecerem na bruma densa, mas terminei minha “passagem” pelo futuro com um tênue e tímido sorriso de esperança nos lábios.

Acordei em minha cama, ainda sentindo uma apreensão no peito e a camiseta encharcada de suor. Meus olhos paralisados na brancura do teto do quarto e mi­nha posição de braços abertos me provavam que o sonho fora certamente “real”. Eu ainda sentia no meu corpo os aparelhos que me prendiam à cama do hospital, mesmo sabendo que nada havia. Levantei ainda assustado e corri para o ba­nheiro. Abri os botões do pijama com nítida afobação e senti alívio ao constatar que tudo estava no lugar. Fiz xixi de pé, e nunca na minha vida urinei com tanto orgulho e satisfação.

*   *   *

Não pude conter uma sonora gargalhada no final da história de Max. Ele era um palhaço. Adorava contar histórias recheadas de humor e teatralidade. Nadine olhou para mim e depois voltou seus lindos olhos azuis em direção ao nosso cria­tivo colega. Sorriu do sonho de Max, que ela chamou de “versão misógina do Pla­neta dos Macacos”, mas disse que os homens eram especiais demais para sim­plesmente desaparecerem. Segundo ela, havia muito mais na masculinidade do que apenas uma necessidade procriativa. O olhar meramente pragmático e utilita­rista é capaz de, pela sua absoluta incompletude, produzir as aberrações que Max apresentara. Pensar em sociedade e cultura sem levar em consideração os valo­res que nós cultivamos só pode produzir uma visão distorcida e unimodal da reali­dade.

— Nadine acredita no masculino, Max. Não seja tão duro — disse-lhe eu. — Em verdade, penso também que as razões meramente genéticas não seriam sufici­entes para, em um futuro distante, produzir uma sociedade sem gêneros. Mesmo com a tecnologia nos oferecendo a oportunidade da gestação sem os pares, existe uma necessidade muito mais significativa para as diferenças entre os se­xos, desde o advento da racionalidade, qual seja, o relacionamento. Eu acredito que homens e mulheres podem oferecer a diversidade psicológica fundamental para o equilíbrio e, em se falando de natureza e genética, “diversidade” é um con­ceito fundamental.

Nadine concordou e ainda arrematou dizendo que não só acreditava no masculino como tinha por ele notável admiração. Disse que só se alcança força e estabili­dade através da combinação dos polos opostos da biologia humana. Os homens mais admiráveis eram aqueles que misturavam em si ambos os componentes, feminino e masculino, enriquecendo-se das experiências possíveis. O mesmo ocorria com as mulheres, em que o trânsito no universo da masculinidade lhes oferecia a oportunidade de entender o mundo também pelo olhar masculino.

Ainda tive a oportunidade para mais um comentário.

— Pelo sim pelo não, é melhor não facilitar, Nadine. É possível que sejamos mesmo, como Max nos mostrou, “animais” em extinção. Apresse-se. Talvez em muito pouco tempo, será difícil encontrar algo de bom no mercado.

— Patu Saleh, tolinho — respondeu ela.

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Memórias do Homem de Vidro – 12

Dolores

Nadine e Max brincavam à minha frente, tentando criar pequenas explosões de ar com canudinhos de refrigerante. Pareciam dois adolescentes de 40 anos. Suas risadas despreocupadas, e a maneira infantil como conversavam, me fizeram sentir uma momentânea nostalgia, um aperto, como se fora uma dor no peito. Seria complicado, pensei eu, explicar fisiologicamente uma “dor” desencadeada por um pensamento, uma lembrança, uma emoção. Na minha mente, formou-se uma imagem, ao mesmo tempo dolorida e cálida, sobrepondo-se à cena que de fato se apresentava aos meus olhos. Quinze anos atrás, estávamos no mesmo lugar, o bar do hospital, fazendo algo semelhante. Eu provavelmente estava trocando figu­rinhas sobre paternidade com Max, falando dos nossos filhos pequenos, enquanto Nadine assistiria a essa conversa com curiosidade e uma dissimulada ponta de inveja. Estávamos rindo, brincando, escondendo nosso medo diante dos desafios da residência. Brincávamos para esconder a dor de não saber, de ter que tomar decisões, de poder errar.

Foco a visão em um ponto qualquer da parede, para poder voltar à realidade. Max ainda tentava, com um peteleco, romper a bolsa de ar comprimido dentro do ca­nudinho enrolado que Nadine trazia entre os dedos. A cada tentativa frustrada, Nadine sorria lindamente. Como era linda Nadine! Seu sorriso era sóbrio e con­tido. Uma dama. Como bem dizia Max, ela possuía uma “nobreza sexy”. Max erra o peteleco e acerta os dedos de Nadine. Ela solta uma risada alta de­mais para o ambiente, seguida de um gesto envergonhado de cobrir a boca com a mão.

— Machucou? — perguntei eu, entre interessado e irônico.

Max ri e me encara dizendo “a culpa não foi minha”. Resolvem parar com a brin­cadeira e Max retorna à sua cerveja, que silenciosamente cochilava ao seu lado, esperando o final da brincadeira para ser sorvida. Nadine larga o canudinho amassado sobre a mesa e arregala seus olhos em minha direção. Coloca a mão sobre o colo e nos diz:

— Vou contar uma história que vocês não vão acreditar. Tenho duas cunhadas, casadas com meus irmãos. Mulheres dos nossos tempos, profissionais bem-suce­didas, vivendo em um mundo de informação abundante, farta e rápida. Uma delas você conhece, não é, Max? Ele apenas ergueu seu copo de cerveja. Estaria respondendo ou rendendo uma homenagem?

— Pois bem — continuou Nadine, — a primeira é uma mulher moderna, infor­mada, médica, etc. A outra tem 23 anos e é universitária, mas é a mulher mais ingênua que eu conheço a respeito da sua condição feminina. Escutem só essa: comentando próximo a ela sobre a dor do parto e tal, ela vem com esta pérola: “Nadine, eu não me preocupo com essa questão de sentir dor no parto. A dor do parto é só 10 segundos e passou tudo, e aí a gente já tem o bebezinho lindo nos braços!”

Max soltou uma gargalhada que fez alguns presentes torcerem o pescoço em nossa direção, mas obviamente não colocou a mão sobre a boca. Não era o estilo de Max, que adorava um escândalo.

— Gente, ela falou isso sério — continuou Nadine. — Aí eu expliquei para ela. Ela pensava até então que dor do parto era só “nos 10 segundos” que o bebê passa pela vagina. Ela ignorava contrações e tudo mais. E pensar que muitas vezes mulheres assim engravidam, e chegam na hora “H” totalmente despreparadas. Pensam exclusivamente no enxoval do bebê, a roupa que vão levar para a mater­nidade e coisas do gênero. Imaginam que chegarão na hora do parto e que terão apenas 10 segundos de dor. Incrível, não é?

Eu fiz uma cara de surpresa e, abrindo os braços, ensaiei um número muito co­nhecido dos meus parceiros. Queria instigar um debate, abrir uma polêmica, pre­parar o terreno para uma discussão.

— Por que você avisou a “pobre” da sua cunhadinha? — disse eu. — Não seria melhor ela ficar iludida sobre a realidade do trabalho de parto e não ser contami­nada pelo negativismo do nascimento, sobre o qual o que mais se fala é “dor”, “contrações terríveis”, mulheres “se rasgando”, períneos “se rompendo”, etc.? Agora a coitadinha vai querer fazer uma cesariana que dure apenas 10 segundos! Não seria preferível não saber o que se aproxima, do que ver corrompida sua in­gênua concepção de parto pela noção distorcida desse evento nos dias de hoje?

Minha pergunta era deliberadamente provocativa. Sabia da posição de Max sobre a dor no parto e sabia das restrições que Nadine colocava nelas. Max era um “ho­lista”, alguém que entendia o parto como fazendo parte da vida, e não como um evento médico. Encarava o nascimento humano com a transcendência que imagi­nava ele possuir, e o entendia como um afluxo de energias criativas sincrônicas, elaboradas em milênios de aperfeiçoamento pelas forças adaptativas e evolutivas da natureza. Acreditava que o nascimento só podia sofrer interferências em cir­cunstâncias especiais e raras. A grande patologia do parto, segundo Maximilian, residia na intervenção fálica sobre um momento essencialmente feminino. Não abria mão de sua visão respeitosa sobre todos os eventos que o circundam. A dor era um deles. Nadine, por sua vez, era uma tecnocrata honesta e esclarecida. Acreditava pia­mente na destinação libertária da tecnologia. Tinha uma fé vigorosa na capaci­dade de superar limites, de avançar sobre as fronteiras do nosso corpo. Acredi­tava na linearidade do conhecimento, entendendo o saber médico como algo construído pedra sobre pedra, afastando-nos da ignorância que nos ligava ao “primitivo”. Era dona de uma postura firme, porém dogmática. Tinha fé na ciência, assim como tinha apreço por suas crenças religiosas. Falava de alguns médicos como seres mitológicos, donos de um saber absoluto, que não sofriam as pres­sões de uma medicina cada vez mais mercantilista e aliada à indústria de drogas e equipamentos. Era uma crente.

— Prefiro a desilusão do saber à ilusória tranquilidade dos fanáticos — disse Max. — Não acredito que qualquer sistema pode ser construído sobre falsidades ou inverdades. Mesmo as mais duras verdades são superiores, a longo prazo, às mais cândidas mentiras. Prefiro que uma mulher tenha plena noção daquilo que a espera durante a árdua tarefa de um trabalho de parto do que lhe omitir a verdade. É preferível o temor consciente a uma falsa segurança aparente. Patu Saleh!

“Patu Saleh”, repeti. Max terminava suas frases mais rebuscadas com essa ex­pressão. Há muitos anos, quando finalmente criei coragem e perguntei a sua pro­cedência, ele me disse que era uma frase de origem persa que queria dizer “Te­nho dito”, ou mesmo “Assim seja”. Explicou que seria um equivalente ao Maktub dos árabes. Nadine, por sua vez, lhe fez a mesma pergunta durante um plantão, e ele lhe disse que a origem da expressão era “babilônica ou suméria”. Dá para acreditar em Max e em suas fantasias? Esse era o estilo dele. Criar ou modificar histórias e através delas nos fazer viajar na sua imaginação. Aprumei-me novamente na cadeira e tomei um gole do meu suco de laranja. Olhei para os lindos cabelos de Nadine e falei:

— Sobre a dor no parto lembrei agora de uma história interessante. Posso contar?

— Pode — disse Nadine, resignada com o fato de que eu iria contar mais uma das minhas historietas. Fazia parte do seu charme dar um suspiro e revirar delicada­mente os seus belos olhos cada vez que eu começava.

Algumas folhas de outono já caíam das árvores. A avenida próxima ao nosso bar favorito nos enviava os sinais sonoros de que o rush se aproximava. Os automó­veis ligavam prematuramente seus faróis, porque a luz do dia já não era mais sufi­ciente. Vez por outra, uma rajada de vento frio entrava pela fresta da porta. Na­dine, prudentemente, trazia um belo casaco de linha azul, que repousava no en­costo da cadeira. Esperei uma buzina estridente silenciar para contar a história.

*   *   *

A cena era a seguinte: uma menina, em um plantão obstétrico, em uma cidade próxima, no cinturão de pobreza de uma capital. Vai ao hospital com perna muito inchada, e lhe é indicada uma internação no hospital geral. Diagnóstico: trombose venosa profunda. Tratamento: um cumarínico, que é um anticoagulante. O pro­blema: uma barriguinha “estranha” aparecendo. Os sinais: pequenas gotas de suor sobre o lábio superior e pupilas dilatadas. Essa era a situação. A menina ha­via sido avaliada pelo plantão clínico do hospital que diagnosticou esse transtorno circulatório. Suas queixas eram de uma dor na coxa direita e um inchaço visível em toda a perna. Já estava no seu leito, no setor de clínica feminina, quando a enfermeira de plantão, zelosamente, ligou para o centro obstétrico para dirimir uma dúvida.

— Doutor Ric — disse ela —, esta menina tem prescrição de um anticoagulante para ser administrado agora, mas eu preferiria que você desse uma olhada nela antes disso. Acho que ela pode estar grávida, apesar de negar com veemência. Sabe como é, não? O abdômen é grande, mesmo ela sendo gordinha. Que acha?

Concordei com sua conduta e solicitei que trouxessem a paciente até a emergên­cia obstétrica, que se situava no térreo do hospital. Naquela época, eu recém havia saído da residência médica. Estava atuando em um hospital da periferia pobre da minha cidade. Era típico em sua estrutura arqui­tetônica, e mais típico ainda na sua organização. Controlado pela prefeitura, era frequentemente alvo de políticos locais, que queriam fazer proselitismo às custas dos médicos. Era fato corriqueiro chegarem ao hospital exigindo uma internação para seus eleitores, mesmo que esta fosse completamente descabida. Os que pertenciam ao mesmo partido do prefeito achavam que podiam adentrar até as salas de parto, porque aquele era um espaço “público”. Muitas vezes, fui abor­dado, até de forma rude e grosseira, por vereadores da cidade “exigindo” que eu realizasse uma cesariana em determinada paciente, para assim ser realizada uma ligadura de trompas, promessa eleitoral que eles agora queriam pagar às minhas custas. Para eles, eu sempre respondia com um “não” taxativo.

O diretor do hospital era um anestesista, italiano de nariz vermelho e uma calva reluzente. Tinha uma equipe de anestesistas que prestavam serviço ao hospital em um acordo direto com a prefeitura. Isto é: ao contrário dos obstetras, que fica­vam de plantão, os anestesistas ficavam em suas casas e só compareciam ao hospital quando solicitados a realizar cesarianas de urgência ou para as cirurgias marcadas. Também não eram pagos pela assistência pública de saúde: a prefei­tura os pagava diretamente. O acordo com a prefeitura fazia com que ganhassem pela produção: quanto mais cirurgias realizadas, mais anestesias. Eram “comis­sionados”. Dessa forma, pode-se entender qual a postura do diretor em relação a qualquer medida que visasse a diminuir a incidência de cesarianas no “seu” hos­pital. Na época em que ingressei no plantão obstétrico do hospital, as taxas de partos cirúrgicos estavam ao redor de 45%, o que era escandalosamente elevado, por se tratar de um hospital que atendia quase que exclusivamente ao sistema público de saúde. Eu escutava as explicações dos anestesistas para esse fato com silencioso enfado. Diziam-me que as taxas operatórias eram realmente ele­vadas, mas que, em função das cesarianas, a mortalidade materna, hoje em dia, era bem menor do que outrora. Adiantaria mostrar-lhes os fatos, as pesquisas ou as metaanálises que provavam o contrário? Penso que não, porque suas crenças eram baseadas em desejo. Essas explicações frágeis e insustentáveis que me davam eram tudo o que tinham para suportar a incongruência de sua prática.

Como se pode depreender, minha estada no hospital foi marcada por muitas difi­culdades. Quando saí de lá, esse mesmo diretor/anestesista me falou algo que nunca mais esqueci. No nosso derradeiro encontro, ele me disse, com uma face raivosa e apontando seu dedo ameaçadoramente contra meu rosto:

— Eu tenho nojo de fazer plantão com você. Ao contrário de seus colegas, que conseguem prever os partos que vão obstruir, você só se dá conta dessas “obvie­dades” no meio da madrugada. Obriga a que todos nós venhamos ao hospital a essa hora, quando os outros obstetras indicam suas cesarianas às 10 da noite. Prejudica-nos a todos com sua incapacidade. Você não entende nada de partos.

Que poderia eu responder ao meu colega? Minha incidência pessoal de cesaria­nas naquele hospital era de 10%, enquanto a maioria dos meus colegas tinha ín­dices superiores a 50 ou 60%. Indignado com esses fatos, fiz um discurso na reu­nião do corpo clínico, denunciando o exagero e a falta de critério nas indicações de cesariana que lá aconteciam. Despedi-me dos colegas e nunca mais retornei ao hospital. Pois esse era o hospital onde por quase quatro anos eu trabalhei. Apesar de todas as dificuldades, pressões, desrespeito profissional e ataques, foi um dos lugares onde mais aprendi. Muito mais do que a residência médica, realizada em um hos­pital tecnológico e até sofisticado, foi ali, na crueza do “mundo de verdade”, que eu aprendi a lidar com a realidade do nascimento.

Minha paciente chegou ao centro obstétrico trazida pelas enfermeiras, que empur­ravam a chorosa maca de rodas mal engraxadas. Não tinha mais do que 18 anos, e sua face infantil guardava uma apreensão inconfessa. Chamava-se Dolores. Olhei para o ventre que brotava sob os lençóis puídos do hospital. Abaixo do ca­rimbo róseo onde se lia “Clínica Médica”, sobressaía a volumosa dúvida. Cumprimentei-a tentando ao máximo ser simpático. Pedi-lhe para examinar sua perna, e ela mesma puxou o lençol despindo a coxa alva. Sem dúvida era uma trombose venosa. Levantando um pouco mais os panos, pude comparar as di­mensões de ambos os membros, o que deixava clara a diferença entre eles. Ela referia um pouco de dor na perna direita, mas não o suficiente para impedir que a movesse.

— Dói aqui? — perguntei eu, pressionando suavemente a raiz da coxa.

— Um pouquinho só.

Na verdade, o principal motivo da pergunta era escutar sua voz. Creio que a ento­na­ção, o timbre e a intensidade da voz guardam muitas informações sobre os conteúdos psíquicos dos pacientes. Sua voz era contida, como se o ar que estava em seus pulmões estivesse tentando se manter lá dentro, com medo de nova­mente voltar e enfrentar a sala onde travávamos nossa conversa. Com um golpe de mão, baixei o lençol até suas coxas e levantei a blusa que es­condia o ventre. Era realmente um abdômen grande, muito mais avantajado do que se esperaria de uma adolescente gordinha. Não havia dúvida de que havia algo alterado ali. Minha primeira hipótese era, claro, uma gravidez. Entretanto, não podia descartar as “bruxarias”. Por “bruxarias”, chamávamos todas as patologias de difícil aparição e improvável diagnóstico.

Olhei novamente o abdômen da menina, que teimava em abaular. As outras hi­póteses seriam ascite, água no abdômen ou tumores ovarianos. A ascite acompa­nha os transtornos hepáticos, como na cirrose ou em algumas doenças parasitá­rias pouco comuns em nosso meio. Ela não tinha nenhum outro sinal de insufici­ência hepática como, por exemplo, icterícia, nosso conhecido “amarelão”. Resta­vam como diagnósticos viáveis os tumores de ovário. Pensei nas minhas aulas da faculdade e folheei mentalmente as páginas de patologia ginecológica. Lá esta­vam os tumores gigantes, como os adenomas mucinosos, cheios de uma “geleia” gosmenta produzida no interior desses grandes cistos. Apesar de eu nunca ter visto um tumor assim em uma menina, era importante descartar essa hipótese. Havia uma forma fácil de fazer essa distinção. Dei dois passos para a direita e to­mei nas mãos o Doppler portátil de cima da prateleira. Liguei-o e escutei o chiado característico. Agora veríamos, ou escutaríamos, a verdade. O uso de pequeno sonar era para escutar o “tumor”. Se fosse uma gravidez, ouviríamos os batimen­tos de um bebê; caso contrário, a hipótese de um tumor se consolidaria, mesmo existindo a possibilidade de um óbito fetal. Não foi necessário que todas as outras hipóteses fossem confrontadas. O leve toque do sonar sobre o lado esquerdo de seu ventre nos mostrou o som inequí­voco de um coração fetal. Toc, toc, toc, fez o aparelho. A cavalgada típica das ba­tidas de um ser apressado se fez ouvir na sala, tendo as enfermeiras espantadas como testemunhas. Não restava nenhuma dúvida.

— Você está grávida, menina. Desde quando não menstrua? — indaguei eu.

— Minha menstruação nunca foi certa, doutor. Nem me lembro quando menstruei pela última vez. Faz alguns meses, eu creio. Mas o senhor tem certeza de que estou grávida? Não pode ser… Minha mãe vai me matar.

— Não tenho mais nenhuma dúvida sobre a sua gravidez, minha filha.

Mostrei mais uma vez o som do coração saltitante em seu ventre. Feito isso, colo­quei o sonar mais para o lado esquerdo e mostrei-lhe o ruído de seu próprio cora­ção, expondo a diferença entre os diferentes ritmos cardíacos. A disparidade das frequências não deixava espaço para dúvida. Dois seres habitavam aquele mesmo espaço. Ela me olhava com os olhos arregalados. Suas mãos espremiam a guarda lateral da maca. Estava muito mais tensa do que eu esperava. Parecia querer pular, fugir dali, mas seu corpo estava colado ao fino colchão que a separava da dureza do móvel. Olhei para o seu rosto, e ele estava pálido e úmido. Por sobre o lábio supe­rior brotavam gotículas de suor, mostrando uma óbvia ativação adrenal.

— Vou examiná-la “aqui em baixo”, está bem? Quero ver como está o colo do útero, ok?

Ela se limitou a balançar afirmativamente a cabeça. Seus olhos estavam mais es­talados ainda. Abriu as pernas com dificuldade, como se as juntas estivessem tão carentes de lubrificação quanto os rolamentos da sua cama de rodas. Já de luvas, abro os lábios vaginas com os dedos e procuro o colo uterino, em busca de al­guma informação que pudesse ser útil. Aí sobrevém a surpresa. Aparece o improvável. O inesperado se fez, deixando-me sem palavras por alguns segundos, olhando fixamente para as pupilas dilatadas da menina. Depois de algum tempo, tiro meus dedos de sua vagina, após ter me certificado do que acabara de diagnosticar.

— Minha querida — disse eu ainda com a voz alterada pelo susto —, não só você está grávida como o seu bebê está nascendo.

— Nascendo doutor? Como pode isso? Tem certeza?

Sua expressão era de surpresa misturada com terror. As enfermeiras me olharam incrédulas, não imaginando que um bebê pudesse estar a caminho sem que ne­nhum sinal externo fosse percebido. Olhei para o rosto da menina e, segurando sua mão, lhe disse:

— Agora não temos mais tempo para nada. Preciso da sua ajuda. Seu bebê vai nascer em instantes. Você está com a dilatação do colo completa. Dez centíme­tros, e a cabeça do bebê está aqui embaixo. É necessário que você faça força quando sentir vontade.

Peguei-a pelas mãos e a ergui da maca.

— Vamos, me acompanhe — disse eu com voz firme. Pela primeira vez vi sua face se contrair, e de seus lábios surgiu um tímido gemido.

— Coloque o pé no chão e vamos caminhando comigo até a sala de partos.

Descalça e andando com dificuldade, foi se segurando no meu braço até a sala, deixando para trás meia dúzia de auxiliares de enfermagem atônitas e incrédulas, que nos olhavam sem poder ainda acreditar. Entramos sozinhos na zona restrita e eu mesmo abri um pacote de partos, que sempre ficava em cima da mesa prepa­rada para emergências.

— Agora tudo depende de você. Preciso que faça a força mais bonita e intensa que puder, mas só a faça quando tiver vontade.

Ela estava acocorada à minha frente, segurando minhas mãos. Coloquei um campo esterilizado sob seus pés e calcei novamente minhas luvas. Não mais de cinco minutos foram necessários para que acontecesse. Com a ponta do dedo indicador, rompo a bolsa de águas que já se exteriorizava, mas a cabeça fetal estava tão baixa que apenas algumas gotas foram despejadas nos campos azulados. Aos poucos, os lábios vaginais foram se abrindo pela pressão do pólo cefálico, e os negros cabelos da nossa pequena incógnita foram apare­cendo. Mais dois puxos apenas foram necessários e… lá estava ela. Forte, rosada e chorona. Não havia mais nenhuma dúvida. Uma menina. Limpei-lhe as vias aéreas e ergui o bebê no ar, um gesto pleno de simbolismo que sempre repetia. Entrego o bebê a quem pertencia de direito. Ainda assustada, a pobre menina instintivamente abre seus braços e abraça sua filha. Olha com sur­presa e assombro para o pequeno ser que agora repousa colado ao seu corpo. Passados alguns instantes, olha para mim, como que acordando de um sonho e exclama:

— Puxa, doutor. Então eu estava grávida mesmo!

*   *   *

Nadine sorri. Coloca o resto de Coca Light no copo e gira o rosto em direção à Max. Bebe as últimas gotas ainda com um sorriso. Este responde com um levantar de sobrancelhas e uma piscadela.

— Nadine, essa história é absolutamente verdadeira — disse eu com indisfarçável impaciência. — Eu estava lá, assisti o parto. Essa menina passou um trabalho de parto inteiro negando para si mesma as contrações. Boicotou os sinais e sintomas de uma gravidez que ela temia e negava. Já na sala de recuperação, confessou-me que andava “desconfiada”, mas que não queria admitir ou mesmo consultar um médico. Esse filho fora feito por um rapaz de “má índole”, que praticava furtos e arrombamentos na comunidade em que morava. Sua gravidez não foi planejada nem desejada. Disse-me que teve relações não consentidas com ele, sob cons­trangimento pela força. Procurou, através do processo psicológico da negação, esconder de si mesma o que seu corpo evidenciava. Todas as alterações fisiológi­cas, as dores, a dilatação, os puxos, etc. foram apagados de sua consciência, apesar de ativos no obscuro mundo do inconsciente. Max resolveu interferir.

— Você não acredita, minha incrédula colega, que a trombose venosa profunda que a menina produziu poderia ser, na verdade, uma mensagem do inconsciente para si mesma, para que através desse sintoma fosse obrigada a procurar o hos­pital que tanto temia, por saber que nesse local inevitavelmente seria revelado seu segredo tão bem guardado?

Nadine aprumou-se na cadeira. Voltou seu corpo inteiro em direção a Max e olhou direto em seus olhos.

— Não me parece tão difícil de acreditar — respondeu Nadine. — Não sou tão descrente como pensam. Acho apenas que é pouco provável que a sintomatologia do parto possa ser escondida dessa forma. Onde ficaram as dores, a descida fetal e a dilatação do colo? Um trabalho de parto que durou apenas cinco minutos? Bendita alienação, então!

Max sentara-se e agora se divertia tentando acertar pedacinhos amassados de papel no copo vazio de Nadine. Sua pontaria era ruim, e, findas as bolotinhas que tinha na mão, resolveu aposentar-se do esporte e novamente prestar atenção ao que eu dizia.

— Pois Nadine, a experiência desse parto me abriu pela primeira vez a possibili­dade de questionar a nossa capacidade de controlar os fenômenos dolorosos através da mente. Minha pergunta na época foi: “Se é possível, através de um fe­nômeno de negação resultante do medo, bloquear os sintomas dolorosos inques­tionáveis de um trabalho parto, o que mais nossa infinita e pouco conhecida mente seria capaz de fazer em relação à saúde e à doença, dor e prazer? Não seria pos­sível que essa mesma ação (uma “psicoanalgesia”) pudesse ser criada através de uma modificação consciencial positiva, pelo amor e pela confiança, em vez de ser mediada pelo medo?”

Max pigarreou. Levantou o indicador direito, mas, antes que pudesse falar, Nadine respondeu:

— Acredito ser possível, Ric. Nossa mente é rica demais para ser desconsiderada. O problema é que somos pouco treinados para atuar dessa forma nos hospitais. Na residência, que fizemos juntos, esses assuntos eram tratados como tabu. Dis­cutíamos tumores raros de ovário, mas jamais tratávamos com seriedade as técni­cas e abordagens não invasivas de tratar com a dor do parto. Afeto, companhia, presença não eram elementos considerados significativos para minorar a dor.

— Existe outro ponto importante, e que aborda questões políticas relevantes — disse finalmente Max. — Discutir a dor do parto sem o recurso tecnológico drogal teria o potencial e provável efeito de causar um desconforto dentro da própria classe médica. Isso seria questionar toda uma corporação, que estava se criando dentro da obstetrícia, qual seja, a dos “anestesistas de parto”. Fomos testemunhas do crescimento dessa subespecialidade dentro da anestesia. Com isso, seria muito complicado falar de doulas, por exemplo, entre outros recursos alternativos, quando a “Deusa Techné” estava nos brindando com uma ferramenta muito mais sedutora aos olhos do modelo tecnocrático. Hoje em dia, nos Estados Unidos, o sucesso desses médicos é tão grande que nas revistas especializadas da especi­alidade anunciam-se helicópteros e pequenos aviões. Nosso modelo centrado na acumulação e controle de técnicas brindava a esperança de controlar a dor do parto, mesmo que com isso acabássemos esquecendo de questionar o que “ver­dadeiramente” é essa tal “dor do parto”. Max estava de pé. Ele acreditava, imaginava eu, que seus argumentos cresciam em propriedade e profundidade caso se aproximasse do firmamento. Nadine a tudo ouvia, mantendo as mãos sobre os joelhos. Não havia mulher nenhuma sob os céus mais charmosa do que Nadine.

— Temos tecnologia suficiente para aliviar a dor dessas mulheres, meninos. — Nadine agora parecia querer ser mais incisiva. – Acredito que não usar o recurso da anestesia significa deixar as pacientes sofrendo de uma dor inútil e desneces­sária. Por que a resistência em aceitar o progresso, a evolução e a ciência?

— Não se deixe enganar tão facilmente — disse Max. — Afirmar que tecnologia é igual a progresso é um equívoco. Muitas vezes, o progresso de uma comunidade ou grupo passa pela recusa do modelo centrado na tecnologia. Um exemplo típico é o sedentarismo, fruto de nossa conduta pouco ativa, que atrofia nossos múscu­los e articulações. O que recomendamos para nossas pacientes sedentárias? Exercícios, ou seja, a “antitecnologia”. Portanto, quando falamos em recuar um pouco na utilização de ferramentas tecnológicas aplicadas ao parto, isso também é progresso.

— Não é o que vejo na maternidade em que trabalho — respondeu Nadine. — Lá as mulheres solicitam analgesias da mesma forma com que sedentos viajantes pedem água no deserto. Imploram, choram e até ameaçam. Dizem que têm o di­reito de amenizar suas dores. Falam que seus partos poderiam ser mais “humani­zados” e suportáveis se lhes fosse retirado, ou diminuído, o martírio da dor excru­ciante. Reclamam a anestesia do parto como um direito humano básico: o direito a não sentir dor. Minha visão particular dessa questão é de que o acesso às analge­sias de parto é um aspecto fundamental da humanização do nascimento.

O debate agora estava no ponto em que eu gostava. Mostradas claramente as teses em disputa, fazia-se necessário aclarar porque elas apareciam em extremos opostos da discussão. Encarei Max, que se mantinha olhando fixamente para Na­dine.

— Amigos. Existe uma ponte entre as suas posições aparentemente antagônicas e gostaria de tentar facilitar esse contato. Max diz que as analgesias de parto são fruto de um modelo centrado na tecnologia e que afasta a dimensão humana e subjetiva do nascimento, relegando-o a um patamar mecanicista e biológico. As analgesias peridurais rotineiras se impõem sobre a crença de que o corpo da mu­lher é essencialmente defectivo, que necessita do suporte técnico para realizar suas funções mais primitivas, como parir. Certamente, essa visão se encaixa no sistema de poder médico, que cria ferramentas para auxiliar essa mulher, agora entendida como incompetente. Criamos não só analgesias, mas antes disso hos­pitais, drogas, ferramentas, enfermagem especializada, médicos como nós, doutos em patologia obstétrica, e por aí afora. A epidemia de analgesias de parto é ape­nas mais um capítulo de uma jornada de invasões sobre o corpo feminino. Respirei fundo, imaginando que o ar poderia oxigenar minhas ideias.

— Por outro lado — continuei eu —, um cenário de dor é o padrão no trabalho de Nadine. Ela vê, verdadeiramente, mulheres sofrendo e angustiadas na solidão de seus leitos. Oferecer a essas mulheres a possibilidade de amainar seu sofrimento é parte fundamental da arte de curar. Negar-lhes o recurso, qualquer que seja, para diminuir um sofrimento que parece desprovido de sentido não seria humano. As analgesias de parto, portanto, têm lugar em um projeto de humanização do nascimento. Vejam bem, o último livro do Dr. Michel Odent, A Cesariana, traz exatamente essa questão da intervenção à baila, analisando o cenário contempo­râneo de assistência ao nascimento. Diante da agressividade da assistência às mulheres em trabalho de parto, uma cesariana poderia ser entendida como um passo em direção à humanização, por mais que esse conceito traga mal-estar aos humanistas do nascimento. No dizer do mestre, o uso do fórceps (para ele uma peça apenas para museus) e outros artifícios invasivos e agressivos seria muito mais danoso para o bebê do que uma cesariana. O que ele advoga, com o que concordo, é que “a redução de cesarianas é absolutamente impossível sem a re­descoberta dos imperativos básicos de uma mulher em trabalho de parto: seu de­sejo de privacidade e sua necessidade de levar a tarefa de parir sem ser obser­vada ou dirigida”. O mesmo tipo de raciocínio pode ser desenvolvido em relação à dor. A mim parece improvável que uma mulher, adentrando o ciclo medo-tensão-dor criado, facilitado ou incrementado pelo ambiente hospitalar, não solicite alívio através do recurso drogal. A questão me parece ser outra, ideológica, filosófica e profunda. Nadine mantinha-se imóvel, com as pernas sedutoramente cruzadas, tendo agora a mão apoiando o queixo.

— A questão, meus queridos colegas, é o modelo — continuei eu. — O paradigma no qual Nadine está inserida é produto de desequilíbrio, porque nega as dimen­sões pessoais, sociais, afetivas, antropológicas e psicológicas do nascimento. É um modelo criado e controlado por médicos para valorizar sua maneira particular de enxergar o evento. Recusa tudo aquilo que não entende, ou o que brotou do veio ancestral e empírico trazido pelas gerações de mulheres que nos antecede­ram no trabalho com as grávidas. Nadine, ao meu ver, também é prisioneira; ela é refém desse sistema. Enquanto o nascimento humano não for discutido nesse espaço ideológico, pouco evoluiremos no debate. Max aproveitou a deixa e se ergueu da cadeira de novo.

— Quer um exemplo disso que o Ric está dizendo? Veja mesmo aqui no seu hos­pital. É um hospital universitário, cheio de professores, alunos, residentes, douto­randos, contratados e tudo mais. A incidência de cesarianas aqui é de mais de 35%, o que é um exagero em se tratando de uma população que é exclusiva­mente egressa do sistema público. O diretor do serviço, que é um tecnocrata libe­ral, resolveu criar um sistema de avaliação de cesarianas, baseado na ideia de que essas cirurgias eram realizadas de forma exagerada por uma falha médica de indicação. Depois de uma avaliação de todas as cesarianas realizadas em um determinado período, não se constatou nenhuma indicação errada mais preva­lente que as outras. Os índices de cesariana continuaram elevados e provavel­mente a conclusão foi de que eles eram assim porque um terço de todas as mu­lheres precisam realmente ter seus ventres abertos para o nascimento seguro de uma criança. Durante a avaliação dos resultados, não se questionou, em momento algum, o sistema de partos hospitalares, o afastamento da família, a ausência de acompanhantes, o uso de drogas ou de modelos agressivos de atenção ao parto, como o active management. A ideia que subjaz é de que o exagero de cesarianas é fruto de uma falha profissional, pessoal, centrada na figura do médico. Ilusoria­mente imagina-se que esse médico é o causador do problema, quando em ver­dade ele é mais uma vítima do paradigma tecnocrático que governa a assistência ao parto. Nega-se, dessa forma, a importância determinante do modelo ideológico, substrato filosófico condutor dos processos. Como uma vez me disse uma enfer­meira americana que trabalha com humanização do nascimento junto aos médicos de um grande hospital do Oregon: “Parem de pressionar os médicos. Nosso foco deve ser o modelo!” Posso lhe afirmar, Nadine, que, nesse sistema impessoal e mecânico, até eu teria que usar analgesias e cesarianas, porque o paradigma me obrigaria a tal.

Max era enfático e grandiloquente em todas as suas manifestações. Era movido por paixão. Sua energia era contagiante, e os que lhe tinham afeição logo apren­diam a perdoar seus exageros e suas demasias.

— Observem como a construção dessa representação obedece a uma arquitetura nitidamente religiosa — emendei eu no ponto em que Max parara, uma vez que esta era uma vertente da discussão sobre a humanização do nascimento que sempre me fascinara. — Nunca se questiona o dogma do modelo biomédico, cen­tralizador, unimodal, iatrocêntrico. É a perfeita representação do esquema do “1 – 2 Punch”, do antropólogo Peter Reynolds. Nesse modelo, a partir de uma modifi­cação no meio ambiente através da aplicação de tecnologia, surgem, de maneira quase automática, efeitos adversos indesejáveis. Sobre a ação primária na natu­reza, nada se pode questionar e, pelo contrário, uma nova intervenção tecnológica se estabelece para resolver os problemas gerados por ela. Sobre isso nos fala Read M. Schuschardt: “E é o incógnito que então sobrevém, para dominar a nossa vida, emaranhando-nos em uma rede de soluções tecnológicas para problemas criados pela própria tecnologia, proibindo-nos de questionar essa mesma tecnolo­gia”. Criamos o desequilíbrio ecológico por uma concepção diminutiva da mulher. Depois disso, colhemos os resultados negativos e, em vez de questionar nossa interferência no processo natural, criamos novas intervenções para corrigir a pri­meira, e assim sucessivamente. O mesmo se dá no nascimento humano, em que jamais se questiona o modelo biomédico tecnológico, porque ele está profunda­mente enraizado no nosso sistema de crenças. Quando os inevitáveis problemas acontecem, procuramos nos afastar da pergunta fundamental (aquela que não quer calar) e partimos para o encontro de mais uma solução pela via da tecnolo­gia. E é nesse momento que se estabelece o que Peter Reynolds chama de “punch dois” (a segunda intervenção tecnológica) que é a chave para entender as motivações ideológicas e profundas que regem nosso proceder.

Nadine a tudo escutava com atenção. Apesar de parecer sempre dura em suas críticas, Nadine era extremamente honesta em suas condutas. Ouvia a mim, mas principalmente a Max, com respeito e atenção, e nunca desdenhava de opiniões que se afastassem das suas. Voltando-se para ele, respondeu com suavidade:

— Max, eu entendo seu posicionamento, e concordo mesmo que existem exage­ros, mas que com estudo e controle poderão ser sanados no futuro. O que eu acho é que não pode haver um desdém pela dor alheia, como se o parto fosse indolor apenas porque uma menina teve seu filho sem perceber. Isso não é o pa­drão nos hospitais que conhecemos, e certamente não representa mais do que um milésimo da população mundial. Tratar essa menina como um modelo a ser estu­dado pode ser uma atitude compreensível, mas usá-la como exemplo de que o parto não dói é um exagero que não aceitarei. Existem estudos, por exemplo, que comparam a dor de ter um filho com a dor sofrida com o arrancamento de um dedo. Acham isso pouco? Acham que uma dor assim percebida não merece ser tratada?

Eu e Max nos olhamos ao mesmo tempo. Ela havia citado o tal trabalho que com­parava a dor do parto com uma amputação de dedo. Estávamos juntos, eu e Max, quando escutamos um anestesista falar pela primeira vez desse trabalho, já há alguns anos. Ambos ficamos estarrecidos com a forma de apresentar o trabalho que, em última análise, era usado para justificar a intervenção anestésica drogal em mulheres em trabalho de parto. O trabalho utilizava a imagem negativa de uma amputação, que é algo definitivo, quando poderiam ter usado, por exemplo, uma cólica renal. Ao contrário da amputação, a cólica renal, apesar de ser referida como muito dolorosa, normalmente não deixa sequelas. Até por esse detalhe da comparação, podia-se notar que o trabalho era oportunista e mal conduzido, ao tentar trazer para o mundo quantificável uma grandeza absolutamente subjetiva. Respondi para Nadine com calma, porque sabia que esse assunto toca em ques­tões de sensibilidade e julgamentos de valor sobre sofrimento, angústia e medo.

— Não diga isso, minha amiga. Não é justo. Essa história de comparar a dor do parto com outras dores é o positivismo na sua mais ingênua fantasia. Medir a dor dos outros (e mesmo a sua própria, descontextualizada) é tão equivocado quanto medir o amor, a alegria e a paixão de alguém.

— Nesse trabalho sobre a dor do parto, pesquisadores pediam às mulheres que quantificassem as dores que sentiram no processo de parturição, recém-termi­nado. No momento da avaliação, a sua capacidade de análise estava perturbada pelas emoções, assim como as sensações de dor muscular estão para quem aca­bou de cruzar a linha de chegada de uma maratona. Por essa razão, avaliar a dor sem levar em conta os seus aspectos afetivos e culturais é pura ingenuidade ou oportunismo.

— Emoções são assim, e dor é uma emoção, além de possuir óbvios componen­tes fisiopatológicos. Além disso, o próprio trabalho de parto oferece as ferramentas para diminuir as sensações dolorosas, produzindo um incremento fantástico nas endorfinas circulantes, com os consequentes efeitos analgésicos e mesmo eufori­zantes.

— Uma mulher em trabalho de parto — continuava eu — está envolvida em uma amálgama de sentimentos e anseios, além de alterações hormonais, posturais, físicas, afetivas e espirituais. Portanto, é de um reducionismo insensato tentar analisar matematicamente a dor de alguém, porque qualquer dor possui uma mirí­ade de componentes imponderáveis e não quantificáveis. Esse tipo de avaliação só serve de pretexto aos intervencionistas, os que lucram com a ablação sem cri­tério das sensibilidades dolorosas (entre outras, como a propriocepção) de ges­tantes. A nobre arte de aliviar a dor dos que sofrem, através do uso dos anestési­cos, não pode fazer com que percamos totalmente a noção do sentido da dor dentro de um processo complexo e multifatorial como o parto.

— A dor faz parte do nosso fantástico arsenal de defesa, como a febre, a inflama­ção, as exonerações, etc. Simplesmente determinar seu extermínio sem levar em conta a cadeia de interconexões entre todos os componentes ilusoriamente sepa­rados é ingenuidade ou ignorância. Acabar com a dor do parto, simplesmente por ser dor, é insensato e representa uma visão diminutiva do nascimento. A dor faz parte do processo, mas o que se observa é que, dadas as condições para um nascimento afetivo e cercado de segurança emocional, essa dor pode ser inclu­sive imperceptível. A quantidade infinita de alternativas humanas para lidar com seus desafios é uma das características de nossa espécie. Entretanto, a medicina, com sua sanha homogeneizante, acaba, muitas vezes, tratando pessoas como se cada corpo fosse igual ao outro; cada barriga, uma cópia xerox da anterior, e cada mulher, um fac-símile de todas as outras.

— No momento do parto, minha cara colega, sentimos todos muitas dores. Eu costumo dizer, com um pouco de exagero, que a pior dor é a do médico. Só ele pode agir intervindo. Ele pode terminar com a dor de uma paciente através do seu saber e de sua técnica. Ele pode abreviar aquilo que muitas vezes é visto como uma “tortura”. Ele sofre a tentação suprema da lâmina que brilha na sua mão. Pode acabar com o drama da espada que pende sobre sua cabeça e, principal­mente, com a dor que deveras sente em si mesmo. Pode exterminar a dor da im­potência diante de algo muito maior. A dor de não agir e permitir que a natureza cumpra seu destino. Ele pode… Mas deve?

— A angústia diante dessas escolhas para mim é sentida como uma dor violenta. Física mesmo. Silenciosamente eu já propus dezenas de vezes trocar imediata­mente todas as dores físicas de minha paciente pela dor que eu sentia ao vê-la “sofrendo” as agruras de um trabalho de parto e não intervir, porque sabia que esse era o caminho mais seguro. Minha aflição maior sempre foi: “Terá ela enten­dido plenamente a minha proposta? Será ela capaz de me perdoar, por agir como um pai que pensa no melhor para seus filhos”?

— Evidentemente que as opções no combate à dor precisam ser discutidas sem­pre durante os encontros de pré-natal. Entretanto, na hora em que as alterações na consciência da paciente se evidenciam, fica muito complicado analisar alterna­tivas de forma clara e racional. Nesse momento, é necessário ter firmeza de prin­cípios, coragem, determinação e… estômago. Entender as dores pelas quais pas­samos na vida, e inseri-las em um contexto maior, não significa desmerecer sua intensidade ou as marcas que elas são capazes de deixar. Não significa igual­mente abandonar o uso de tecnologia para auxiliar alguém cuja dor ultrapassa sua capacidade de suportar. Esse entendimento tem a ver com a compreensão da dor como ferramenta e como parte integrante de algo maior. Significa perceber que para crescer ela é inevitável, assim como não existe aurora sem a escuridão da noite.

Nadine a tudo ouvia com silenciosa atenção. Sabia que nosso debate havia che­gado a um ponto em que reconhecíamos nossas diferenças, mas também tínha­mos consciência de nossas semelhanças. Minha colega era uma médica honesta e consciente, e dentro do seu sistema de crenças fazia o melhor possível para suas clientes. Tinha plena convicção nos benefícios que a tecnologia trazia para os seres humanos, principalmente em relação à saúde, e não acreditava que a solução dos dilemas da obstetrícia e da mortalidade perinatal estava relacionada com a desmedicalização do nascimento. Nadine tinha fé, na medicina e na tecno­logia. Por outro lado, escutava a mim e a Max com respeito e consideração, mesmo que discordasse de nossos postulados. Mantinha-se altiva e serena. “No­blesse oblige”, como sempre dizia Maximilian. Max, por sua vez, era todo emoção. Tratava as questões da obstetrícia e do tra­balho com o feminino como questões de estado. Colocava paixão em cada frase pronunciada. Abria os braços, escabelava-se, xingava, sofria. Tinha uma visão integrativa do nascimento humano, em que as várias correntes de entendimento deveriam ser ouvidas, rechaçando a corrente monopolista da medicina sobre o evento.

Eu servi durante anos como elo entre as visões conflitantes dos meus diletos ami­gos. Sempre senti para mim a responsabilidade de construir essa travessia, que poderia ligar as parecenças entre eles, administrando suas diferenças. Por cami­nhos diferentes, Max e Nadine procuravam um fim semelhante. Minha tarefa, muitas vezes, foi tentar fazer ver que “há muitas moradas na casa do meu pai”, em que cada “morada” seria uma visão particular da realidade, e o “pai” seria a intan­gível verdade. A paixão de Max e a seriedade positivista de Nadine sempre me ofereceram o melhor exemplo de complementaridade. Max ansiava escutar as palavras de Na­dine, para que suas ideias pudessem fixar-se na âncora segura da racionalidade, e não se perdessem no vazio dos sonhos infrutíferos. Por sua vez, Nadine ali­mentava-se da paixão efervescente de Maximilian, para que sua vida tivesse mais cor e sabor, como os matizes e tonalidades que paulatinamente colorem a vida dos moradores de “Pleasantville”.

Max olhava Nadine quando terminei de falar. Percebi que havia alguns minutos já não me observava mais. Não o culpo. Nadine, além de ser uma bela mulher, car­regava um segredo, um enigma. Por que esse apreço pela frieza da medicina? Por que o gosto pelos números e estatísticas? Ela observava o mais incrível dos fenômenos humanos e teimava em não abrir seu coração às emoções em profu­são. Por que continuava só? Por que na sua vida não havia um grande amor? Por que estava tão fechada à vida? Max finalmente tirou o olhar de Nadine e voltou sua cabeça em minha direção. Fez uma careta, voltando às comissuras labiais para baixo e erguendo as sobrance­lhas.

— Eu também não sei — disse-me ele, com um sorriso conformado.

Sorri da nossa telepatia. Max apenas levantou o copo de cerveja o mais alto que pôde e falou:

— Patu Saleh!

Patu saleh, camarada.

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Memórias do Homem de Vidro – 11

Fátima e o Protagonismo Devolvido

Fátima veio à consulta carregando uma sacola de exames e trazia estampado no rosto um olhar de resignação. Grávida de 37 semanas, procurou-me porque sua obstetra estava de férias, e a substituta que esta havia indicado não lhe agradou. Vinha, portanto, à procura de um terceiro médico naquela gestação, o que tornava a consulta um pouco diferente das demais. Quando entrou no consultório, eu me impressionei com o seu ventre. Era real­mente muito grande, mesmo para uma mulher alta e corpulenta. Veio com a fa­mosa pilha de ecografias, é óbvio, sendo que a última prenunciava um feto com 4,5 quilos. Diante disso, tanto sua médica quanto a substituta foram taxativas: “É cesariana, porque não vai passar”. Para complicar a situação, essa paciente tinha uma cesariana prévia, com um bebê 8 meses por pré-eclampsia e que, mesmo sendo prematuro, pesou 4,3 quilos. Tinha uma leve alteração da glicemia no último exame realizado há uma semana. Macrossomia, cesárea prévia, diabete gestacional leve. Precisa mais? Ela me disse que queria deixar marcada a cirurgia, “já que precisava ser cesariana”.

Foi então que eu perguntei a ela:

— O que você gostaria que fosse?

*   *   *

“A lógica dos encontros médicos necessita de uma reversão”, dizia Maximilian. Durante anos da minha prática diária de consultório, sofri com a postura de algu­mas de minhas clientes diante do desafio do encontro médico-paciente. Por muito tempo, o padrão era este: elas se aproximavam, me avaliavam com os olhos e perguntavam: “Como é sua conduta quando atende um parto?”. A partir dessa pergunta, eu explicava os pontos importantes da humanização do nascimento, como a posição verticalizada, a presença de um acompanhante de livre escolha, a utilização restrita e judiciosa de intervenções, a valorização do parto vaginal, etc. Entretanto, a pergunta, e minha subsequente resposta, a partir de uma determi­nada época, passaram a me deixar insatisfeito e inquieto. Alguma coisa parecia fora de lugar, produzindo uma espécie de irritação, um incômodo, uma inconformi­dade.

Acho que foi durante uma entrevista para a televisão que eu tive a clareza, pela primeira vez, sobre a questão do protagonismo na assistência ao parto. A produ­tora de uma emissora local me telefonou, convidando para uma entrevista sobre “parto de cócoras”. No dia combinado, lá fui eu engravatado para a TV. A entre­vistadora, uma conhecida e simpática jornalista, me cumprimentou e disse que as perguntas seriam sobre esse tipo especial de partos, e que a matéria tinha sido escolhida por ser 19 de abril, Dia do Índio. Sorri da ideia, aparentemente precon­ceituosa, de que “parto de cócoras é coisa de índio”, quando na verdade a imensa maioria das sociedades primitivas adotou instintivamente essa postura para parir, inclusive os índios brasileiros. Longe de ser uma particularidade indígena, é uma característica de quase todos os grupamentos humanos. Abriu o programa me apresentando e fazendo a chamada de uma “nova velha técnica de trazer os be­bês ao mundo”. Pediu os comerciais e, quando o programa retornou, voltou-se para mim e perguntou:

— Então, doutor, como é essa história de fazer partos de cócoras? Desde quando o senhor faz partos assim?

Quando eu estava me preparando para responder, acendeu uma luz. Acho que talvez tenha tido mais luminosidade que os spots do estúdio, mas apenas eu per­cebi. Hoje em dia eu creio que isso poderia ser definido como insight. É provável que sim.Uma confluência de emoções, sentimentos, pensamentos, antigas análises, lem­branças, tudo entrando em sincronia e produzindo uma espécie de erupção. Fiquei por alguns instantes olhando para a bela apresentadora, até que respondi:

— Eu não faço partos de cócoras — respondi eu. — Minhas pacientes é que ficam nessa posição, quando lhes convém. Na verdade, eu não deveria fazer nada, eu só…

A entrevistadora me olhou com indisfarçável contrariedade. Achou que eu estava criticando a sua pergunta ou querendo ser engraçadinho. Não era isso. Eu não estava achando graça nenhuma; estava, na verdade, em meio a um redemoinho de pensamentos e dúvidas sobre o que realmente eu fazia, ou o que deveria fazer.

— O senhor utiliza uma técnica que é o parto de cócoras, certo? Pois essa téc­nica, usada pelos índios, agora está sendo redescoberta, é isso? — A expressão da jornalista era de franca impaciência.

A ideia prevalente era a de que, ao contrário de uma técnica de partos horizontais, eu estava utilizando outra técnica sobre as minhas pacientes. Uma técnica alter­nativa. Um método de fazer partos. Novo e velho. As palavras de Maximilian apareceram à minha frente e atingiram em cheio o plexo solar. Senti o soco potente de uma verdade há tempos escondida, e que agora podia se manifestar. Por alguns instantes, fiquei olhando a jornalista sem saber o que dizer. “Humanização do nascimento, meu caro Ric, é a devolução do protagonismo à mulher. O resto é apenas sofisticação de tutela.” As palavras fa­ziam eco na minha cabeça, e eu não conseguia falar. Não queria parecer evasivo, mas naquele instante eu não poderia responder o que ela estava a me perguntar, porque a pergunta já não fazia mais sentido. Percebi naquele fragmento de ins­tante a razão da extrema irritação de Leboyer quando lhe questionavam sobre o “método Leboyer”. Ele odiava essa forma de encarar seu trabalho, e sempre res­pondia com clara impaciência a essa pergunta, dizendo que nunca quis criar mé­todo algum. Naquele momento, eu estava me dando conta de que, se você criar uma “técnica de partos de cócoras” estará em verdade mantendo o cerne da questão intocado, mas nutrindo-se da ilusão de que algo diferente está sendo feito.

Ou você entrega o poder de parir às mulheres, ou apenas estará sofisticando seu controle sobre elas, sua dignidade, sua autonomia e sua feminilidade. Fazer “par­tos de cócoras”, como a jornalista me perguntava, me aliava à grande massa da obstetrícia contemporânea que julga as mulheres incompetentes e incapazes de escolher a postura que mais lhes agrada. Determinar para elas uma posição de parir mais fisiológica e racional, como o são as posições verticalizadas, pode pa­recer interessante do ponto de vista dos resultados observados, mas continua sendo uma imposição ditatorial sobre um fenômeno natural e feminino. Estava tornando meu jugo sobre as pacientes menos agressivo e mais suave, mas conti­nuava sem lhes oferecer o protagonismo. Eu estava, enfim, “sofisticando a tutela”.

Naquele instante, percebi que a maior batalha ainda estava por ser travada. Era preciso entregar de volta às mulheres o controle dos nascimentos, e ao mesmo tempo encontrar uma função digna para um obstetra, que não passasse pela ex­propriação do nascer em nome de uma tutela anacrônica. Por outro lado, eu intuía que não seria fácil essa mudança no cenário do nascimento, dominado pela visão tecnocrática há três séculos e meio. Peça a um homem que recuse qualquer acréscimo na sua vida e terá sucesso, mesmo que com dor e privação, mas retire alguns de seus antigos privilégios e você terá luta. Olhei para a bela entrevistadora mais uma vez, e depois de um suspiro respondi:

— Uma mulher pode encontrar por si mesma a posição que mais lhe parece ade­quada para ter seu filho. Minha função é apenas ajudá-la a encontrar essa pos­tura, criando as condições psicológicas e ambientais para isso. A posição de cóco­ras é uma das mais escolhidas pelas gestantes, porque permite uma ampla aber­tura das conjugatas, que são as distâncias entre os ossos da pelve. Além disso, a posição vertical, ao contrário da posição horizontal, não comprime os vasos ma­ternos do abdômen, nem interrompe o retorno venoso criado por essa compres­são. A força da gravidade e a facilidade de fazer prensa abdominal são excelentes fatores coadjuvantes. Mas nada disso pode ser imposto a essa grávida. Ela deve estar no comando, escolhendo por si o melhor caminho.

Respirei fundo mais uma vez, e, depois de um sorriso de alívio, terminei:

Sem garqantia de protagonismo, não existe humanização do nascimento. Sem que as pacientes possam livremente escolher a posição para parir, seu acompa­nhante, o local, suas roupas, suas tradições e suas inúmeras vontades, apenas estaremos reproduzindo uma história de abusos e interferências desnecessárias, que não tem mais cabimento em um mundo que se propõe democrático e igualitá­rio.

Não recordo de mais nada do que disse na entrevista, mas a bela jornalista parece não ter gostado de minhas respostas. A partir daquele dia, eu não mais falei sobre “partos de cócoras”, porque a questão da autonomia feminina passou a ser o foco de minha atenção. Em algum lugar, Max sorria e brindava, levando ao alto um espumante copo de cerveja.

*   *   *

Voltei a olhar para Fátima, que parecia um pouco aturdida com a minha pergunta. Ela certamente não esperava pela minha reação. Joguei a “batata-quente” de volta, e ela sentiu o calor nas mãos. Depois de alguns instantes me olhando atur­dida, respondeu:

— Ora, doutor, eu preferiria parto normal, que a gente pode ir para casa mais rá­pido. Tenho uma filha de nove anos que precisa da minha ajuda. Sei que uma ce­sariana é uma cirurgia, e que a recuperação é muito mais lenta.

As pesquisas realizadas no Brasil pelo Dr. Joe Potter e pela professora de antro­pologia da Universidade do Texas, Kristine Hopkins, assim como uma recente­mente publicada pela FIOCRUZ, apontam para uma realidade muitas vezes dissi­mulada: mulheres preferem majoritariamente realizar partos normais. Elas sabem das vantagens de um nascimento natural, tanto para elas quanto para os bebês. A perversidade das cesarianas desmedidas não pode mais ser contabilizada como uma culpa dessas mulheres, porque a inversão do desejo de um parto vaginal ocorre quando elas adentram os centros obstétricos. Fátima tinha conhecimento da qualidade superior do parto normal, mas só agora estava podendo expressar.

— Fátima, o destino do seu parto depende mais de você do que de qualquer outro fator externo — disse eu. — Se você deseja ter seu filho de parto normal, esse é um direito seu, que ninguém pode lhe retirar. O que mais conta nessas situações é o desejo, a vontade e a confiança que você deposita em si mesma. Acho que seu caso inspira cuidado e atenção redobrados, mas penso também que temos uma esperança, e é agarrado nela que eu acho que devemos nos manter. Ela sorriu e respondeu:

— Mas doutor, eu quero ter meu filho de parto normal. Mas meus médicos disse­ram que era impossível por causa da cesariana anterior, da diabete, do tamanho do bebê, e…

— Posso entender a preocupação dos seus médicos Fátima, pois, como eu mesmo disse, seu caso tem muitas complicações. Porém, nenhuma delas é cla­ramente impeditiva para um nascimento normal e com menos riscos. Nada, nem ninguém, é mais forte que a sua força de vontade e seu desejo. Se você deseja ter seu filho de parto normal, temos a obrigação de tentar, mesmo sabendo que será um desafio difícil.

Ela sorriu e combinou de voltar com o marido. Consultou novamente alguns dias depois, logo que começou a apresentar algu­mas contrações. Ao exame de toque, ela tinha um bebê muito alto na pelve e a dilatação de uma polpa digital. As contrações uterinas eram ainda esporádicas e fracas. Pedi que me ligasse se viessem a ocorrer com maior intensidade.

No mesmo dia, ela me ligou dizendo que estava com contrações mais fortes e pedi-lhe que retornasse ao meu consultório para uma nova avaliação. O cenário havia se modificado. Agora já se havia instalado a fase ativa do trabalho de parto, e ela tinha de três a quatro dedos de dilatação. Apesar disso, o bebê continuava alto. Pensei comigo: Será que desce? Será que não está apenas dilatando pra depois trancar no estreito médio? Esses meus pensamentos se exteriorizaram com um sorriso benevolente. Pura encenação, confesso. Mas era para uma causa nobre: insuflar confiança nas suas capacidades; apostar na sua força e competên­cia para ter seu filho. Eu estava apostando minhas fichas nela, “pagando para ver”.

Pedi que retornasse para casa e aguardasse mais algumas horas antes de ir para o centro obstétrico. Os hospitais sempre produzem um efeito complicador sobre o desenrolar do trabalho de parto e, portanto, quanto mais longe as pacientes de baixo risco puderem ficar dele durante o período inicial de pródromos, melhor. Um centro obstétrico, por melhor que seja, sempre produz nas mulheres um estado ansiogênico de percepção do meio circundante. Na nossa história adaptativa como espécie, o local de nascimento sempre teve como signo fundamental a se­gurança. Para todos os mamíferos superiores, e mesmo para os primatas, preva­lece a atitude de procurar abrigo seguro quando as contrações se iniciam. A multi­plicidade de ameaças e a natural fragilidade com que uma grávida se encontra fazem com que esse local seja escolhido para oferecer o máximo de proteção, tanto à mãe quanto à cria. Além disso, a presença de um suporte técnico e afetivo foi uma marca de nossa ancestralidade, talvez se iniciando com os primeiros exemplares do gênero homo há dois milhões de anos. Aí se inseria a função da parteira, tão antiga que se perde nas brumas do tempo.

A ida de Fátima para casa, longe do estresse propiciado pela hospitalização, tinha esta função: aguardar a dilatação no seu domínio. O hospital, por ser “um local estranho, onde estranhas pessoas operam estranhas máquinas”, no dizer de Marsden Wagner, cria um cenário de temor e apreensão, que facilmente coloca a gestante no temido, mas pouco compreendido, círculo vicioso de medo-tensão-dor. Manter a paciente em casa tem essa grande vantagem: conservá-la em um lugar da sua confiança e, portanto, de segurança. Algumas horas mais tarde, ela me ligou (na verdade o marido, dizendo que Fátima estava “quase desmaiando”) e eu solicitei que se dirigissem ao hospital. Por morar em uma cidade vizinha, além do tamanho fetal presumido e da cesariana prévia, nem se cogitou em realizar um parto domiciliar. Fátima não se conformaria a ne­nhum protocolo estabelecido e, portanto, essa possibilidade jamais foi aventada nas conversas prévias. Chegando ao hospital, às 14 horas, fiz uma avaliação da situação e percebi que ela já se encontrava com seis centímetros de dilatação, mas com uma apresentação ainda muito alta.

— Vamos caminhar, mulher — disse eu com uma risada. — Precisamos fazer este bebê descer. E, para isso, nada como um bom passeio.

Nos velhos tempos da residência, eu aprendi, com Maximilian, a importância da deambulação das parturientes. Ele tinha a mania de tirá-las para dançar, e não sei se pelo riso que isso provocava, ou pela dança mesmo, o resultado era um incre­mento da contratilidade uterina. Muitos anos depois, escutando as palavras da parteira americana Ina May Gaskin, pude confirmar a ideia de que o riso tem uma poderosa capacidade terapêutica durante o parto. “Faça a paciente rir, dar garga­lhadas, e você terá resultados incríveis”, dizia-me ela. As posições verticalizadas auxiliam na descida da apresentação fetal pela ação da gravidade sobre o feto, porém mais importante talvez seja a mobilidade incrementada do quadril, que fa­vorece a adequação da apresentação ao estreito canal que o bebê terá que atra­vessar. A bipedalidade, e depois o aumento craniano, determinaram que esse feto tivesse que realizar um caminho tortuoso dentro da pelve, para poder ultrapassar as barreiras ósseas do percurso. A entrada do canal é mais larga no sentido lá­tero-lateral, enquanto a saída é mais larga no sentido ântero-posterior. Com isso, nosso pequeno herói precisa cumprir um sinuoso trajeto dentro da pelve e postar-se com a nuca encostada no osso púbico da mãe, ao contrário dos grandes ma­cacos pongídeos, nos quais esse movimento não ocorre e seus partos são em geral mais rápidos e fáceis.

A deambulação e a mobilização constantes são de extremo auxílio para essa situ­ação. Mais uma razão para que as mulheres de baixo risco não sejam monitoriza­das eletronicamente durante o trabalho de parto, porque assim, atadas ao monitor, têm sua mobilidade extremamente prejudicada. Zeza me acompanhava no hospital, e lá se foram as duas caminhando pelos cor­redores do centro obstétrico. Às quatro horas da tarde, Fátima já estava com oito centímetros de dilatação, au­mentando para nove centímetros duas horas mais tarde. A dilatação já estava concluída às oito e meia da noite, mas o bebê continuava alto. O que fazer? Seria um bebê grande demais? Seria uma impossibilidade clara e incontornável? Ou uma tentativa inútil e frustrante? Como ter certeza? Valeria a pena tentar, correndo o risco de não conseguir e ter que apelar para uma cesari­ana?

O físico Niels Bohr já dizia que “certezas são fruto de nossa presunção, e nada tem a ver com ciência”. Aristóteles, por sua vez, falava aos seus discípulos que, “quanto maior a capacidade e o saber de um homem, maiores as suas dúvidas. As certezas foram dadas pelo criador aos medíocres, como um prêmio de consola­ção”. Minha angústia por não ter certezas sobre o melhor a fazer era, pelo menos, premiada com excelente companhia. Entretanto, as falsas certezas são caracte­rísticas do modelo médico contemporâneo, em que a encenação e o discurso au­toritário são mais constantes do que a conversa franca e o embasamento das condutas na solidez das evidências científicas. Depois de um tempo saí da sala para tomar um café. Minha saída fora mais pelo desafogo das tensões do que pela cafeína. Pouco depois, Zeza me chamou ao quarto novamente e disse que Fátima precisava conversar comigo, pois tinha algo muito importante para dizer. Adentrei a sala e a encontrei acomodada de costas para a porta. Ela parecia can­sada e abatida. Sentada na beira da cama, apoiava as mãos sobre os joelhos, como se fosse uma asmática. Levantou a cabeça e me falou, com um ar contrari­ado:

— Doutor, não estou gostando nada disso. Eu devia ter escolhido aquela outra médica. Ela já teria me livrado desse suplício. Por que esperar tanto? O senhor não me diz a que horas vai nascer, e eu continuo aqui com minhas dores. Por que isso tudo? Por que não inventaram uma forma mais humana para se ter filhos?

Uma forma mais “humana” de ter filhos? O que pode haver de mais visceralmente humano do que ter filhos de forma natural?,pensei, enquanto encarava Fátima e tentava entender suas dúvidas.

Desde muito cedo, ainda na faculdade de medicina, eu me preocupei com a questão do “sentido oculto das palavras”. Muitas vezes, conversei com Nadine e Max a respeito de algo que eu chamava de “patologia da palavra” e que Max cos­tumava chamar de verbose, que é a potencialidade mórbida do que é dito, fre­quentemente usada pelos profissionais de saúde. Antes das atitudes inadequadas, das condutas equivocadas ou dos procedimentos errôneos, muitas das falhas no sistema médico iniciam-se com o uso errôneo de palavras, expressões e gestos. Durante um congresso no México, tive a oportunidade de falar sobre a palavra dita e seus significados com Debra Pascali-Bonaro, que é uma das mais importantes doulas americanas. Nessa ocasião, ela me falou algo muito interessante a respeito de safeword, ou seja, os códigos de comunicação entre a equipe de assistência e a grávida em trabalho de parto. Essa animada conversa me remeteu a uma outra, que tive com Max alguns anos antes.

*   *   *

Uma vez Maximilian me trouxe um artigo escrito pela psicóloga Eliana Calligaris a respeito de um congresso de sadomasoquismo que ela tomou conhecimento nos Estados Unidos. Claro que Max achava a maior graça o pessoal da “Leather Community” se organizar em congressos. Ficava fazendo piadinha o tempo todo, imaginando os cartazes pregados nas portas: “Antes de entrar no auditório, pen­dure seu chicote aqui”. Ou então o cara que ia fazer uma palestra sobre maso­quismo e não conseguia segurar o microfone por causa das algemas. O que ele achou interessante no artigo escrito pela Eliana, foi o conceito de “palavra-chave”. Sua intenção era me chamar à aten­ção para um detalhe no artigo que falava sobre a forma específica de lidar com as demandas durante um processo de alteração consciencial. Entregou-me o artigo com um misto de surpresa e entusiasmo, e me disse que aquilo um dia poderia ser utilizado em trabalho de parto.

— Max, só você mesmo para discutir similaridades entre sadomasoquismo e parto. O que tem a ver uma coisa com a outra? — dizia eu.

Max dava uma risadinha e dizia:

— As coisas estão entrelaçadas no universo. Só existe verdade em um aspecto da vida se pudermos formar analogias em escalas superiores. Leia o artigo e depois comentamos.

Comecei a imaginar o que Max queria dizer, tentando estabelecer as analogias possíveis entre esses mundos aparentemente tão díspares. A leitura do artigo foi uma estimulante surpresa. Facilmente pude perceber o que Max estava me propondo. O ponto de contato entre as práticas sexuais e o traba­lho de parto estava no “princípio do prazer”, que havia muitos anos eu lera no livro A Good Birth, a Safe Birth, de Roberta Scaer e Diana Korte, e que depois foi dis­secado no livro de Michel Odent, A Cientificação do Amor. A chave está em que, nas duas situações, na excitação do jogo sadomasoquista e no “tesão” do trabalho de parto, os envolvidos estão em estados alterados de consciência. Era essa a ligação que Max me apontava. As práticas na “comunidade do couro” são simbolicamente sexuais e reportam o indivíduo à dubiedade de um mundo sexual primitivo, em que a submissão e o comportamento autoritário fazem os papéis principais em um envolvimento de de­sejo. A questão toda, para a articulista, era onde terminava o ilimitado mundo fan­tasioso dos participantes e onde se iniciava o mundo da realidade carnal. Nesse fino liame se estabeleciam os riscos. Max continuava a me descrever cenas engraçadas do encontro, e eu tentava ter­minar o artigo para compreender as possíveis interfaces que ele apontara.

— Se era para me incomodar, para que me emprestou o artigo? Dá licença de eu me concentrar?

Finalmente chego na parte do artigo em que Eliana fala da palestra de um “mes­tre” sádico em que ele explica as vantagens do safeword, que poderia ser tradu­zida por “senha”. Pois ele se dizia extremamente preocupado com casos aconte­cidos havia alguns anos em que, durante práticas sadomasoquistas, ocorreram violências, traumatismos com certa gravidade e, com uma frequência inaceitável, alguns casos de morte. A história, segundo o mestre, era sempre contada da mesma forma. A prática se­xual entre a dupla (às vezes eram mais pessoas) fazia com que estas entrassem em um tipo de transe sexual (acrescido ou não de drogas e álcool), em que o que menos importa é o intercurso sexual. Seria levar as “preliminares” às suas últimas consequências. No meio desse transe, você faz uma prática qualquer, por exem­plo, dar tapas, bater no rosto, dar com chicotes ou sufocar com as mãos. Faz parte do ritual que o masoquista reclame, que chore, que grite, que diga “não”. Entretanto, o perigo residia em que a mesma palavra usada no jogo seria a pala­vra a ser utilizada no retorno ao mundo real, criando-se uma confusão na intersec­ção dos planos (fantasia – realidade). Esta palavra de três letras — NÃO — (com as suas óbvias variações “não quero”, “pare”, “chega”, etc.) perdeu a validade nos jogos sadomasoquistas, por ser demasiadamente abusada como peça do discurso de quem “sofre” a brincadeira.

Diante dos perigos de se avaliar as reais necessidades de alguém envolvido em uma alteração de consciência, faz-se necessário estabelecer regras para o per­feito entendimento do que se quer. O que o palestrante pretendia era a criação e a adoção de palavras que substituíssem de forma inquestionável as manifestações que pudessem significar algo além do pronunciado. Aqui, então, se encaixa a analogia de Max. Que valor possui, no contexto do tra­balho de parto, a frase Eu quero uma cesariana agora!?

Em muitas vezes em que ela é dita, existe uma alteração do estado de consciên­cia e, portanto, as palavras não possuem o seu verdadeiro valor. Essa compreen­são do valor relativo das expressões é fundamental para não cairmos na armadi­lha de fazer uma cesariana no primeiro pedido, que nada mais é do que uma soli­citação de atenção com suas dores, uma necessidade de carinho, esperança e reasseguramento. Assim sendo, essa expressão, e esse pedido, precisam ser entendidos de forma abrangente. Os participantes da “Comunidade do Couro” encontram na negativa, o “não” repe­tido e chorado, um estímulo para as suas brincadeiras, porque a graça está em oprimir e obrigar o parceiro a um estado de escravidão.

Mas como saber se a coisa é séria? Aí se encaixa o conceito de senha. O “Mes­tre” falava da importância das senhas previamente estabelecidas nas brincadeiras. Dizia que, sem ela, o sadomasoquismo se tornaria uma prática perigosa e que atentaria contra a vida das pessoas. Mortes poderiam ter sido impedidas se os participantes entendessem a importância de respeitar os limites de cada um dos envolvidos, e fazer com que a comunicação fosse plenamente entendida. Com isso, muitas dores e tristezas poderiam ser evitadas. Debra me falava que o pedido de cesariana deveria ser muito conversado durante o pré-natal. E ela acenava com a possibilidade de se criar uma “senha” para a ce­sariana, que seria a palavra ou gesto que cumpriria a função de explicar que todos os esforços foram feitos, que todas as tentativas foram realizadas, mas que o li­mite das suas capacidades foi extrapolado, e que não haveria mais espaço para tentativas. É um momento extremamente tenso, mas que deve ser respeitado e previamente estabelecido em suas regras. Concordei com minha amiga, porque percebi nessa postura a compreensão do momento especial que é o trabalho de parto, resguardando para a paciente a ga­rantia do protagonismo. Eu digo que sempre obedecerei às determinações da minha paciente, mas não de uma forma cega e automática, desreconhecendo a mudança do significado das palavras nos estados alterados de consciência. Entretanto, temos que estar aber­tos para o fato de que uma mulher, lá pelas tantas, venha a dizer:

— Abacaxi! Quero uma cesariana!

“Abacaxi” era, hipoteticamente, a senha previamente combinada. Ela só seria dita no caso de uma mulher não suportar mesmo e, depois de muito pensar, decidiu-se por uma cesariana. Mesmo sabendo da possibilidade de uma analgesia, ou aguardar mais um pouco, ou mesmo relaxar e ir para o chuveiro, ela preferiu de­sistir da proposta do parto natural e ir para a cirurgia. Eu escutei isso de uma paciente, fazia uns dez anos. Ela olhou nos olhos, com uma face brava, quase colérica, e disse:

— Chega. Não quero mais saber dessa história de parto natural. Nem de parto de cócoras, nem parto normal. Nada. Quero uma cesariana agora, !

Eu percebi que ela havia desistido mesmo. Estava apenas com seis centímetros, e o bebê era grande. Não me deixou nenhum espaço para tentar demovê-la da ideia. Fiz a cesariana na mesma hora. Mesmo assim, ela ficou brava comigo, di­zendo que eu não deveria tê-la deixado entrar em trabalho de parto, porque as dores eram horríveis, e que é algo insuportável e todas as outras coisas que paci­entes magoadas dizem. Ela teve uma chance de ter um filho de parto normal, e empoderadamente decidiu-se pelo que achava melhor. Foi protagonista de sua escolha, escolhendo a via que achava melhor diante de seus valores. É necessário ter a sabedoria para entender os sentidos últimos escondidos nas palavras. É fundamental valorizar a participação e o protagonismo pleno do nas­cimento humano. As palavras de “senha” podem cumprir o papel de avisar ao mé­dico (ou à equipe) que a cliente cruzou o limite do jogo; está desistindo de uma proposta e uma possibilidade. E isso deve ser sempre respeitado.

*   *   *

Olhei mais uma vez para Fátima e pude perceber que ela tinha medo. Mesmo tendo chegado tão longe, ela ainda sentia temor diante do seu parto. Depois de respirar fundo e ficar em silêncio, resolvi fazer um novo toque. Dilatação completa, bolsa íntegra, a cabeça do bebê estava mais baixa na pelve do que no exame anterior. Ainda estava alto, mas já havia descido. Foi então que eu dei mi­nha cartada final.

— Ok, minha flor. Você é quem sabe. Se você diz que não pode aguentar mais, eu acreditarei no que você diz. Se você quer terminar esse “suplício”, como você mesmo chama, então vamos lá.

Ela não tinha muita dor. Conheço “cara de mulher com dores”. Ela tinha medo, angústia, apreensão. E cansaço.

— Se realmente você chegou ao fim de suas forças, sou obrigado a acreditar em você, e não me restará outra opção a não ser acabar com tudo isso e operá-la. Para isso, basta chamar o anestesista e o auxiliar cirúrgico. Entretanto, eu impo­nho apenas uma pequena condição: só farei essa cirurgia se você olhar no fundo dos meus olhos e me disser que não suporta mais, que está no seu limite, que não pode mais esperar, e que vai querer uma cesariana, mesmo estando com a dilata­ção completa. Essa decisão vai ser sua, e seja qual for eu vou obedecer. Se eu fizer essa cesariana, será com tristeza, mas eu acreditarei em você e obedecerei à sua decisão. Eu estava solicitando a senha, a palavra que me confirmaria a sua desistência. Estava preparado para escutá-la, porque me mantinha fiel à ideia do protagonismo devolvido às mulheres. Peguei pesado, fui firme. Será? Disse a exata verdade dos fatos, mesmo com uma ênfase propositalmente dramática, mas estava realmente preparado para aceitar sua decisão. Minha postura era clara: “Você vai decidir. Você é responsável pelo seu parto. Você tem o poder nas mãos. Use-o”. Ela me encarou com olhos de súplica. Tentou balbuciar algo tipo “mas quanto tempo ain..”, mas eu lhe cortei:

— O tempo vai depender de você. Podem ser alguns minutos ou algumas horas ainda. Nada posso prometer, a não ser ficar ao seu lado aguardando e avaliando você e seu bebê. Nesse exato instante, ambos estão ótimos.

Ela estava com dilatação completa, e, mesmo que ainda não tivesse apresentado puxos, poderíamos considerá-la como estando dentro do segundo estágio do tra­balho de parto, que é quando o período de dilatação já se completou. Mas quanto tempo poderíamos aguardar até o nascimento do seu filho? Essa questão torna-se crucial nos casos em que a descida da apresentação fetal é mais lenta do que o normal, mesmo após ter se completado a dilatação do colo uterino. Em verdade sobre essa questão, a biblioteca Cochrane de medicina ba­seada em evidências é taxativa: “Se houver progressão do trabalho de parto, e ambos (mãe e bebê) estiverem bem, não há justificativa para se estabelecer um limite máximo para o segundo estágio do trabalho de parto”. Além disso, a relação entre períodos expulsivos mais lentos e morbidade fetal não existe. Os trabalhos bem acompanhados no mundo inteiro deixam bem claro aos profissionais que tra­balham com o nascimento humano que não existe vantagem alguma em interrom­per o desencadear de um processo de nascimento mais vagaroso pelo medo de uma alteração perigosa. Entre as técnicas e habilidades a serem utilizadas nessa situação, a mais efetiva e, no entanto, a mais difícil de ser encontrada, é a… paci­ência. Fátima ficou alguns segundos pensativa e cerrou fortemente os olhos quando a nova contração se deu. Passada mais essa “onda”, olhou novamente para mim e disse, depois de liberar mais um suspiro:

— O que eu preciso fazer, doutor?

Ufa… Por uns instantes, temi por ela, mas ela foi mais forte do que eu pensava.

Aí é que entrou a magia das mulheres. Eu lhe disse:

— Você está com a dilatação completa. Está sem nada “na frente” do seu bebê. Pode até fazer força se quiser ou sentir uma forte vontade. Pegue na mão da Zeza e saia caminhando com ela até o chuveiro. Fiquem lá vocês duas. Deixe que a água quente da ducha a acalme e relaxe.

Ela concordou e lá se foram as duas. Saí da sala e anotei em um papel o nome e o telefone do anestesista e da minha auxiliar. Pensei comigo: não vou usar esses números, ela vai conseguir. Seria um otimismo exagerado, ou apenas uma tenta­tiva de convencer a mim mesmo da possibilidade? Passaram-se uns 20 minutos, quando vi a entrada de Zeza na sala dos médicos esfregando as mãos. Olhei pra ela sem entender.

— Coroou — disse ela. — Já está ali! Eu vi, eu vi!

Não acreditei. Estava muito alto quando a examinei há alguns minutos. Poderia ela ter progredido tão rápido assim? Fui até o chuveiro e entrei quase debaixo da ducha. Incrível. Lá estava ele! Estava saindo mesmo! Pedi a Fátima que saísse do pequeno box e subisse na cama para parto de cóco­ras. É uma mesa da JICA que o hospital recentemente havia adquirido. Mais alguns minutos e lá vinha vindo ele. Devagar e lentamente. Assustei-me com o tamanho da cabeça. Era muito grande. Mas o desprendimento era suave, tran­quilo. O períneo suportou muito bem. Vinha vindo, vinha vindo. Ela olhou para mim, como que a perguntar o que fazer, e eu lhe disse:

— Sei que você está com uma contração. Deixe-o nascer. Não tenha medo. Você vai conseguir. Relaxe; tenha confiança.

Uma última força e a cabeça nasceu. Grande, redonda, sem nenhuma bossa. Tive que fazer uma manobra suave, porém firme, para o desprendimento dos ombros. O “resto” do bebê veio logo depois. Quando ele nasceu, eu não acreditei… Era enorme! Um gigante. Muito maior do que a previsão. Chorou logo depois. Era vermelho e redondo. Eu brinquei com ela: “Parece um chinês!” A pediatra não estava na sala porque havia sido chamada, minutos antes, para uma emergência, mas sua auxiliar ficou por perto para qualquer imprevisto. Nada aconteceu, apenas risos e alegria.

O mais surpreendente verificamos depois. O bebê pesou nada menos do que 5,355 quilos. Um trabalho de parto rápido e sem nenhuma laceração perineal. Eu falei para as enfermeiras presentes que, contando, ninguém acreditaria. Essa pa­ciente deveria estar em uma sala de recuperação pós-anestésica, cheia de soros e medicamentos, dopada e sonolenta e, no entanto, estava amamentando seu bebê gorducho, sem nenhum ponto, sem nenhuma droga e sem nenhum pro­blema. Apenas felicidade. A equipe de enfermagem foi maravilhosa, o que reforça a minha convicção de que bons hospitais não são feitos de máquinas sofisticadas ou instalações suntuosas; são feitos de gente, a matéria-prima mais complicada, rara e valiosa. As enfermei­ras e auxiliares permaneceram o tempo inteiro nos prestando auxílio sem interferir, e quando vinham ter conosco sempre traziam uma palavra de encorajamento e confiança.

A presença da Zeza foi fundamental; um capítulo à parte nessa história. Sua can­dura e paciência foram o toque mágico que despertou as capacidades que Fátima trazia consigo. Sem ela, não teríamos tido sucesso. A feminilidade com que esse nascimento ficou impregnado é que possibilitou que sua capacidade de parir vi­esse à tona. E ficou para mim uma grande lição: acreditar sempre, porque as mu­lheres merecem esse crédito. Ao ver Fátima agarrada ao seu filho, lembrei que todas as mulheres do mundo estavam de parabéns. Uma vitória como essa é uma conquista de cada uma das mulheres do mundo. Uma vitória contra o descrédito e a desconfiança.

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Memórias do Homem de Vidro – 10

Mensagens

— Quanto sairia a mesma configuração de CPU, o mesmo processador, mas com um monitor de 15 polegadas?

O rapaz soltou a placa de vídeo que levava nas mãos e segurou a calculadora. Doentes por computador, como eu e o meu colega Rivail, acabam conhecendo todas as bibocas que vendem equipamentos, placas, cabos, HDs, etc. O vício nos obriga a procurar múltiplos “fornecedores”, porque às vezes estamos atrás de um detalhe que apenas os mais aficionados têm em estoque. É dura a vida do viciado. Sempre atrás de um driver perdido, babando por uma placa 3D, sofrendo por falta de RAM. Acho que já tive até síndrome de abstinência durante as minhas últimas férias na praia. Nessa época, eu costumava ter sonhos com Pentium e me via correndo pelos campos segurando um notebook prateado nas mãos e sendo per­seguido por um Bill Gates furioso que me xingava por usar um Windows pirata. Esses pesadelos às vezes terminavam com um banner: “Este sonho tem o patro­cínio da Intel”.

Enquanto o rapaz fazia (ou fingia fazer) as contas, meu celular vibrou na cintura. Rivail continuava a observar a placa-mãe, e eu me afastei para responder ao chamado. Era do hospital. Minha paciente estava lá me aguardando, e parecia estar com bastante vontade de fazer força. Seu nome era Maria Rita, e me aguardava junto com a doula Cristina na sala de emergência do hospital.

Puxa. Incrível. Exatamente no dia “D”. Que coincidência! Mas essa não seria a primeira, e nem a última coincidência do caso, que havia começado havia alguns meses. Rita chegou no meu consultório com a indefectível montanha de exames. Ultrassons, hemogramas, exames de urina, etc. Trouxe junto com ela, colado em sua face, um semblante de preocupação. Colocou os exames em ordem sobre a mesa e começou a desfiar seu calvário de tormentos:

— Eu vim aqui para ver o que posso fazer da minha gravidez. Estou com 27 se­manas. É minha primeira gestação, mas há três anos fiz uma conização porque tinha um carcinoma no colo uterino. Isso nunca me causou problema, e a minha doutora me disse que eu estava curada. Mas, como o senhor já sabe, eu estou com contrações e muito nervosa. Tenho medo de perder meu bebê.

O senhor já sabe?, pensei eu. Sei mesmo? Fiz uma sinapse de emergência com meus neurônios de reserva. Ok, agora estava me lembrando. Maria Rita. Havia me ligado várias vezes durante a semana, por ser amiga da psicóloga Flávia, e estar acompanhando seu curso para gestantes. Disse-me ao telefone que não estava entendendo as recomendações de sua médica e, além disso, estava des­confiada da quantidade de medicações que estava utilizando. Queria uma se­gunda opinião. Respondi que teria imenso prazer em ajudá-la, mas que não ficava bem eu ficar minando a relação que ela tinha com a sua doutora. Coisas da ética médica. Ficar dando palpites por telefone do tratamento que um colega está fa­zendo parece papo de botequim. Pedi que marcasse uma consulta para que a gente pudesse calmamente conversar.

Alguns dias depois, lá estava ela. Contraía o cenho, como se assim fazendo pu­desse também contrair o resto de colo uterino que possuía. Estava nervosamente segurando seus papéis, com um olhar de súplica nos olhos. Ela estava amedrontada, e percebi que sua médica também estivera. Entre os pa­péis de Maria Rita estava uma receita de corticosteroide, medicamento usado para acelerar a maturação pulmonar dos bebês nos casos em que se suspeite que possa ocorrer um parto prematuro. Apesar disso, no momento ela estava sem ne­nhuma das contrações que a atormentaram há alguns dias. O exame clínico me mostrou um colo uterino apagado (chato, plano), porém fechado. Mesmo que ela tivesse tido muitas contrações nas últimas semanas, estas não foram capazes de dilatar esse colo.

— Tenho medo — disse ela.

— Sei disso — respondi. — Mas tenho uma proposta para fazer.

— Qual?

— Suspenda todas as medicações e tome apenas medicamentos homeopáticos. Não use nenhuma droga. Faça repouso e uma dieta que evite alimentos “fortes”. Acima de tudo, tenha fé em si mesma. Acredite que você pode. Tome uma ducha de autoconfiança. Que acha? Ratifiquei minha posição de aguardar sem usar drogas, porque no momento ela estava sem nenhuma contração, mas investir pesadamente se fosse necessário. Ela saiu da minha sala aparentemente mais confiante.

É complicado ser um médico que se pretende humanista. “Humanização do nas­cimento é a garantia do protagonismo à mulher”, já me dizia Maximilian desde a época da residência médica. Mas estarão essas mulheres preparadas para o pro­tagonismo? Querem de verdade tomar as rédeas do próprio destino? E se não quiserem? Devo agir como um pai todo-poderoso que impede que seus filhos saiam de sua sombra protetora, alijando-os da árdua tarefa de serem responsá­veis pelos seus atos? Ou devo empurrá-los para suas responsabilidades, tal qual a leoa com seus filhotes, para que procurem o crescimento pelas suas próprias forças, aprendendo com os tombos que a vida inexoravelmente lhes oferecerá? Nenhuma dessas perguntas tem resposta fácil. Todas produziriam polêmica, dis­cussão e tantas interpretações quanto forem as cabeças a julgar. Mas o médico tem que decidir, baseado muitas vezes no sentir, no intuir, na sua estrela e nas percepções outras que nos ajudam a seguir.

Achei que Maria Rita merecia essa oportunidade de andar com suas próprias per­nas, dar seus próprios passos. Senti nela, e no seu marido Jean, uma força e uma confiança admiráveis. Imaginei que a força que manteria sua filha por mais tempo na segurança do mundo uterino seria a força dessa certeza. Apostei. Poderia per­der, mas achei que valia a pena tentar. Na consulta seguinte, eu lhes disse que queria fazer um acordo com eles e com a nenê: que aguardassem até o dia 30 de março, quando estariam completas 36 semanas, oito meses, e portanto o risco de síndrome de angústia respiratória seria mínimo. Eles se olharam como se não entendendo o porquê do “acordo”.

— Depende de vocês. Essa é a sua parte. Falem com ela. Expliquem porque é importante esperar até este dia, e que vai ser muito melhor ficar aí dentro, no ca­lorzinho da mamãe, do que sair antes. Digam-lhe para aguardar com paciência, porque assim a mamãe, o papai e principalmente o doutor vão ficar bem felizes.

Ambos riram das minhas palavras, mas deixei bem claro que estava falando sério. Olhei para o calendário em cima do computador da loja: 30 de março! “Eles cum­priram a promessa! Exatamente no dia combinado. Gente de palavra!” Despedi-me do amigo Rivail e lhe falei que o dever me chamava, mas que depois conver­saríamos sobre o seu novo computador. Saí da loja apressado, olhando para o relógio e preocupado com o tempo que levaria para chegar até o hospital. Quando fui colocar o telefone na cintura, senti uma sensação muito estranha, tão estranha que me deixou perturbado. Um aviso piscava na minha cabeça, diáfano, insistente, sem parar. Tão estranho e inusitado quanto forte.

Ligue para Berenice – Ligue para Berenice – Ligue para Berenice.

Que diabos seria isso? Por que esses pensamentos? Por que essa sensação de premência? Por que deveria ligar para a minha amiga Berenice?

Sem perder tempo, me dirigi ao carro. Não tinha muito tempo porque Cristina ha­via me dito que ela estava fazendo força. Será mesmo? Tão rápido? Tentei insistentemente ligar para Berenice. Nada em casa. Celular não estava na área ou desligado. Cáspite, o que será que a Berenice quer? Estaria precisando de algo? Alguma coisa com a Vitória, sua filha de um ano? Que mensagem tele­pática seria essa? Continuei tentando ligar, enquanto rumava em direção ao hos­pital. Fiquei imaginando a desculpa que daria para o policial, se fosse pego. “Des­culpe seu guarda. Recebi uma mensagem mediúnica e estou tentando fazer con­tato”. Não ia colar. Cheguei ao hospital e encontrei Cristina, Maria Rita e a enfermeira de plantão.

— Ricardo — disse a enfermeira. — Pressão boa, batimentos ótimos, bolsa rota e líquido amniótico francamente meconial, e a dil…

— Meconial? — disse eu, preocupado com o significado do mecônio, as fezes fe­tais, no líquido da bolsa. Puxa, que droga. — Como está a dilatação?

— Era o que eu ia explicar agora, seu apressado. Dilatação de nove centímetros, baixo e… pélvico.

— Putz — disse eu. Prematuro de 36 semanas e pélvico! A posição pélvica expli­cava a presença de mecônio, que nessas circunstâncias não tem a gravidade que possui nas apresentações cefálicas. Era só o que faltava. Maria Rita não escutou nada dessa conversa, mas percebeu meu semblante tenso quando fui lhe falar.

— Rita, disse eu. — Seu bebê está bem, sua pressão ótima. Entretanto, ela se encontra sentadinha. Bebês sentados com prematuridade apresentam melhores resultados se são atendidos por cesariana, pois os riscos são menores. Acho que o mais indicado seria operar. Mas antes disso vou fazer um exame.

Luvas colocadas, paciente posicionada. Meu Deus… Dilatação completa e baixo. Estava quase no “visual”. Olhei para os lados, procurando por Nossa Senhora, ou algum orixá, mas encontrei apenas o olhar fixo do marido.

— Não dá mais tempo, virá por baixo mesmo. Não dará tempo de chamar o anestesista. Chamem o pediatra com urgência. Lembro do rosto do Jean, sorrindo nervosamente para a mulher e dizendo:

– Calma, Rita. Eu estou calmo; o doutor está calmo. Todos estão calmos. Tudo vai dar certo. Se ela quis vir de “bundinha”, tudo bem. Fique tranquila.

Saí da sala de exames e liguei para o Cláudio, pediatra. Pedi que viesse o mais rápido possível. Andei de um lado para o outro, tentando deixar tudo pronto. Corri até o vestiário para botar uma roupa apropriada e, ao desabotoar o cinto, vi mais uma vez o celular. Lembrei da ligação da Berenice, e antes de me dirigir ao tele­fone do Centro Obstétrico, fiquei paralisado. Não conseguia me mover. Minha gar­ganta secou e meus olhos ficaram mareados. Uma lágrima quis correr pelo meu rosto, e o coração pulou mais forte. Tinha acabado de entender a mensagem.

*   *   *

Berenice foi minha amiga de infância. Primeira infância, eu diria. Falo para os ami­gos dela até hoje que brincamos de roda, de mãos dadas, junto às calçadas do Menino Deus, bairro que Caetano cantou e onde vivemos nossa meninice. Depois da adolescência, ficamos por muitos anos separados e apenas sabíamos da vida de um e de outro por amigos em comum. Em uma dessas coincidências da vida, sua mãe, dona Linda, veio consultar com minha colega de consultório, e, ao me reconhecer, me encheu de beijos, abraços e lembranças. Retribuí os abraços e mandei um beijo especial pra Berenice, de quem eu tinha muita saudade. Não cheguei a contar para dona Linda, mas Berenice foi uma das minhas primeiras paixões platônicas, lá pelos nove ou dez anos de idade. Nada mais justo que eu mandasse um beijo especial pra ela.

Depois desse encontro, Berenice me ligou. A mesma voz, o mesmo jeitinho, a mesma meiguice. Estava solteira e ficou apavorada de saber que meus filhos já eram adolescentes. Estávamos ambos quase com 40 anos. Marcamos de nos en­contrar e o fizemos. Entre uma e outra cerveja, tomada nos bares de Ipanema, demos infinitas gargalhadas lembrando-nos de velhos conhecidos e de histórias engraçadas. O tempo passa e vez por outra Berenice me ligava, perguntando dos meus filhos, da vida e das pequenas e fundamentais coisas desimportantes do dia a dia. Meses mais tarde, Berenice me liga.

— Adivinha… Acabo de chegar do laboratório. Estou grávida. Preciso de ajuda. O que eu faço? Olha. Eu tenho 39 anos. Nunca engravidei antes. Sou “primigesta idosa”, como vocês médicos maldosamente nos tratam. Tenho um médico há muitos e muitos anos, mas gostaria que você me desse a sua opinião. Que devo fazer?

— Nem precisa me dizer… venha aqui falar comigo.

— Mas Ricardo. Você é meu amigo. Sei lá… Tenho vergonha….

— Azar o seu — brinquei eu. — Venha aqui e vamos conversar.

Conversamos longamente na primeira consulta. Estava apreensiva com a gravi­dez, mas sabia que era provavelmente a sua última chance. Queria que seu filho nascesse de parto normal, mas tanta gente dizia o contrário! Que fazer?

— Calma, boneca, calma. Vamos levar as coisas um dia de cada vez. Seja o que for necessário realizar em relação à sua gravidez e ao seu parto, nós discutiremos e você decidirá, ok?

Ela concordou e passou a fazer o pré-natal comigo.

Quando ela estava com 36 semanas, percebi que seu nenê não estava bem posi­cionado. Mesmo tendo certeza da posição, pedi uma ultrassonografia, que apenas confirmou o que eu dissera.

— Ela está sentada, Berenice, mas ainda acho que temos um tempo para ela vi­rar.

Ela começou a usar medicamentos homeopáticos específicos para bebês mal po­sicionados, mas o tempo foi passando sem que se observasse nenhuma modifica­ção. Chegou às 42 semanas, e me disse entre lágrimas.

— Ric, minha mãe teve seus três filhos de partos fáceis e tranquilos. Se essa guria não virar, terei mesmo que fazer uma cesariana? Por que ela sentou? Por que não entro em trabalho de parto?

Que poderia eu dizer? Que decisão terrível! Uma paciente de 39 anos, primigesta, 42 semanas, com apresentação pélvica e minha amiga de infância. O que eu de­veria fazer? Respeitar seu desejo? Operar sem questionar, e acabar com a possi­bilidade dessa mulher/amiga vivenciar a glória de um parto normal? Colocar riscos e benefícios na mesa e dividir responsabilidades? Fiquei com a última alternativa. Expliquei o que significava tudo aquilo. Os riscos de uma cesariana e os riscos de um parto pélvico. As vantagens de ambos.

— Agora a bola está com você. O que você disser eu faço. Estou contigo e não abro.

— Você estará comigo o tempo todo? — perguntou ela. — Vai estar lá para segu­rar a minha mão? Minha mãe pode ficar comigo?

Respondi afirmativamente a todas essas perguntas. Isso a fez decidir-se pelo parto normal.

— Mas e as contrações? Por que não as tenho? Já estou com 42 semanas, e não aguento mais a pressão emocional.

— Amanhã é o dia. Você vai ter contrações esta noite — brinquei eu. — Confie. Tudo vai dar certo.

Dito e feito. As contrações vigorosas vieram no início da noite, e no raiar do dia seguinte eu estava indo para encontrá-la no hospital. Berenice estava confiante, segurando a mão de dona Linda. Caminhava de um lado para outro, e sua dilatação foi progredindo suavemente. Poucas horas de­pois, lá estava a bundinha da Vitória, branquinha como a da mãe. Duas ou três forças foram necessárias e lá veio seu corpinho, dobrado como um envelope de carta. A pelve, depois o abdome e os braços. Por último a cabeça, que se libera com a manobra de Bracht. Um dois e… não foi dessa vez. Mais uma tentativa e… Lá estava ela, linda, chorona e de braços abertos. Viu as primeiras imagens na vida de ponta-cabeça, mas reconheceu o sorriso da mãe e as lágrimas da avó. Conseguimos! Vitória! … Por isso o nome. Berenice confiou na sua intuição, e eu confiei nela. Elas (Linda, Berenice e Vitória) foram as grandes vencedoras.

*   *   *

Meus músculos agora voltavam a se mexer. As lembranças do parto de Berenice, naquele mesmo hospital apenas um ano atrás, passaram por mim como um re­lâmpago. Esta era a mensagem; tinha que ser! Berenice queria me dizer para ter confiança. Vitória também estivera sentadinha, e tudo ocorreu bem. Por que não ocorreria agora? Minha ligação com a intuição sempre foi de uma distância respeitosa. Aceito o by­pass das conclusões diretas, mas ainda prefiro o caminho seguro da racionalidade cartesiana. A leitura de um artigo de Robbie Davis-Floyd, “Intuition as Authoritative Knowledge”, me abriu os olhos, ao mostrar como as parteiras lidam com a intuição como uma ferramenta poderosa. Por isso mesmo, aos poucos começava a me render às evidências que se colocavam à minha frente. Berenice e Vitória estavam a me enviar uma mensagem. O mesmo fato se repetiria. Confie. Leia sua intuição.

Expand your Mind, diria Morpheus a Neo, em Matrix.

Volto para a sala e encontro Maria Rita em posição. As contrações haviam dimi­nuído de intensidade, provavelmente pelo estresse típico ocasionado pelo hospi­tal, além das circunstâncias do momento. Deu tempo, e até sobrou, para aguardar o pediatra. Teoricamente até teria sido possível chamar o anestesista, mas quando pensei fazer isso Maria Rita teve uma contração forte e o bebê desceu quase até o períneo. Melhor aguardar. Mais alguns minutos e a pequena nádega apareceu, afastando os lábios vaginais. Mais uma força e já estava ela nas minhas mãos. Nenhuma resistência. Nenhum esforço extra. Fácil, rápido e bonito. O casal se abraçara chorando. Eu, de minha parte, agradeci as mensagens que recebera. Foram decisivas para o que ocorreu. Agradeci também pela data, por­que Júlia, a nenê que nascera, cumpriu rigorosamente o contrato estabelecido nas primeiras consultas de pré-natal. Percebi, como na música dos Titãs, que as mensagens — ideias — estão no chão… Você se abaixa e encontra a solução…

Aprendi a confiar mais no que está escrito entre as linhas do consciente e do ra­cional. Se eu ainda tenho dificuldade em enxergar, pelo menos que não feche os olhos.

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Memórias do Homem de Vidro – 09

Madalena e os Mistérios do Nascer

— Boa tarde, doutor.

Assim ela se apresentou para mim naquela tarde. Seu cumprimento despojado trazia algo de uma profunda simpatia. Seu sorriso era suave como um toque de criança; difícil descrever sua leveza e doçura. Os olhos transmitiam uma segu­rança altiva, e a voz era melodiosa e calma.

Minha secretária havia avisado que se tratava de uma primeira consulta, e quando trouxe a ficha me alertou que a paciente estava “bem grávida”. Pensei que essa poderia ser mais uma das pacientes “troca de última hora”, que é uma classe de pacientes que me acostumei a atender nos últimos anos e que mudam de médico algumas poucas semanas antes do parto. Normalmente são aquelas que percebe­ram em tempo que seu médico não estava realmente interessado em levar adiante um parto normal. De maneira dissimulada, ou às vezes de forma clara e explícita, o antigo médico acabava demonstrando que não esperaria muito para realizar uma cesariana, complementando com uma série de argumentos previsíveis na tentativa de provar que um parto normal era cheio de possíveis intempéries e que a cesariana poderia ser programada e realizada dentro de padrões de razoável segurança. Normalmente, as pacientes fragilizadas pelo próprio estado gravídico acabavam aceitando as explicações dadas pelo profissional e recolhiam-se à sua posição de dependência e subserviência. Por outro lado, existe um grupo de mu­lheres carregadas com uma carga explosiva de autoestima. Não sei exatamente onde elas se armam dessa coragem e dessa determinação (suspeito que isso ve­nha da primeira infância), mas quando as vejo fico impressionado. Lutam pelo que acreditam, e acreditam em si mesmas. Confiam na sua inata capacidade de ges­tar, parir e ser mulheres de verdade, sem os artifícios masculinizantes da contem­poraneidade. Possuem uma imagem de mulher poderosa, e, quando sua feminili­dade mais profunda é ameaçada ou posta à prova, as bases constitutivas dessa estrutura feminina se mostram suficientemente fortes para suportar o desafio.

Entretanto, como acabei observando mais tarde, Madalena (esse era o nome es­crito na ficha) não fazia parte do grupo de mulheres desse perfil. Não trazia con­sigo a indefectível “sacolinha de ecografias”, tradicional no grupo das “decepcio­nadas”, nem sequer colocou uma montanha de exames na minha frente. Em com­pensação, lançou-me mais um sorriso e, depois de um suspiro, uma frase estarre­cedora:

— Doutor, o meu nome é Madalena. Eu vou ter meu bebê em casa. O senhor po­deria me ajudar?

Disse de maneira firme, sem titubear. Seu olhar parecia pressentir minha estupe­fação.

— Parto em casa? De onde você tirou esta ideia? Por que gostaria de ter seu parto fora de um hospital? Pense bem… Imagine as coisas que podem ocorrer quando uma mulher está longe da tecnologia sofisticada do ambiente hospitalar. Não poderíamos considerar essa conduta uma irresponsabilidade sua? Por que então se arriscar dessa forma, abrindo mão da segurança que a modernidade nos oferece?

Ela continuava sorrindo. Parecia saber de antemão todos os meus argumentos. O parto domiciliar é um tabu, algo que sequer é pronunciado nas escolas médicas. Na minha residência de obstetrícia, isso nunca foi citado, falado, comentado, quanto mais estudado ou debatido. Falar desse evento é tratar de falhas e erros. No contexto ocidental e contemporâneo, um parto em casa só poderia ocorrer em um cenário de desassistência ou na falha do sistema em providenciar atendimento ou transporte para um hospital. Um equívoco, um erro. A imagem transmitida durante minha formação médica foi de uma sujeira social. Algo que deveria ser limpo. Quando vemos análises de assistência pública ao nascimento, frequentemente observamos os administradores falando da erradica­ção do parto domiciliar como sendo um avanço da medicina contemporânea. Por­tanto, um nascimento em casa é entendido como uma mácula, uma mancha.

Certa vez, no Rio de Janeiro, Robbie me perguntou:

— O que deixa uma camisa suja?

Diante do meu silêncio, complementou:

— O que faz uma piada ter graça?

Perguntas tão simples quanto complexas são suas respostas. Que elementos pro­duzem o estranhamento em uma determinada situação, permitindo que o choque estético produza uma modificação conceitual?

O que deixa uma camisa suja é a sujeira, terra, pó, areia, tinta, gordura. Mas nem tinta, nem pó, nem terra são “sujeira”, a não ser que estejam na camisa. Ou na mão, ou em outro lugar que determinemos como limpo. A sujeira é determinada pela justaposição de estruturas, que se supõe estarem, em essência, separadas. A graça, por sua vez, está na justaposição de situações não convencionais. Uma piada sempre vai enfocar o deslocamento, o choque, o que “não devia estar lá”. A piada é a elegia dos avessos e tortos. Uma ode à luxação das coisas. Trecos fora do lugar. Ectopias. Distopias conceituais.

Um parto é contaminado e perigoso se está fora do lugar. O lugar de um nasci­mento seria no hospital, portanto os partos domiciliares se inserem em um espaço de afronta e de perigo para o sistema de crenças contemporâneo. Tornam-se ameaçadoramente “imundos”. Falar em parto domiciliar é falar de um incômodo social. Experimente falar isso em uma roda de mulheres e notará que elas pró­prias encaram o parto em casa como algo inaceitável nos nossos dias. O mundo da tecnocracia criou uma estética própria, cibernética e asséptica, em que a volú­pia dos sons, a sexualidade imanente e o aconchego de uma casa não têm lugar. É falar de algo deslocado no espaço; dizer de uma coisa que está onde não devia. Um choque estético e sensorial amplo, para quem o sente, vê e percebe.

Para bloquear a energia advinda desse choque, apenas com a contraposição de uma outra, de igual ou maior intensidade, em sentido oposto. Energia que brota da feminilidade indignada. Apesar de estarmos em uma sociedade que criminaliza o nascimento fora dos hospitais, podemos encontrar mulheres que preferem parir assim, tendo seus filhos no seu domínio, no “seu” lugar. Divinamente sujas, hu­manamente imundas, escancarando sua sujidade a quem quiser ver, a quem tiver coragem de olhar. Mostrando seu desejo e sua vida, com a sensualidade transpa­recendo em cada vinco de seu sorriso. Mas, quando Madalena se sentou à minha frente e sorriu, eu ainda percebia o parto domiciliar como um risco que deveria ser evitado.

— Porque você quer fazer isso — continuei eu. — Não acha que é um perigo des­necessário para você e seu bebê?

Ela continuava sentada segurando sua bolsa sobre o colo. Não se percebia nela um ar provocativo, nem uma postura de enfrentamento. Parecia não querer me convencer de nada, apenas solicitava minha atenção e, talvez, minha compreen­são.

— Eu não farei meu parto em casa porque quero, doutor. Farei porque é imprová­vel que seja de outra maneira.

— Como assim? — disse eu, sem compreender o que ela estava querendo me dizer.

Madalena respirou fundo e voltou sua cabeça levemente para o lado. Sorriu para mim e começou a me contar sua incrível história de nascimentos.

— Doutor, este é meu terceiro filho. Meus outros dois nasceram de parto natural. No primeiro, logo que eu percebi algumas leves dores em casa, pedi ao meu ma­rido que fosse buscar um táxi, porque achei que o nascimento estava próximo. Pura intuição. Nunca havia passado por essa experiência, então resolvi seguir para o hospital assim que percebi a presença das primeiras cólicas.

Quando meu marido retornou para me buscar, minha filha já estava nos meus braços. Eu a tive sozinha no banheiro, embaixo do chuveiro. Foi rápido demais, intenso demais, fácil demais. Assim nasceu Raquel, minha primeira filha. Meu se­gundo filho seguiu o mesmo roteiro. Percebi uma leve contração no baixo ventre e pedi ao meu marido que fosse buscar um copo d’água na cozinha. Quando ele retornou, segurando o copo d’água com as mãos, pôde me ver abraçada ao meu filho recém-nascido, ainda molhado com o líquido da bolsa. Meus filhos nascem como mágica, doutor; como um mistério divino. Madalena sorria docemente ao descrever seus partos. Notei que repousou a bolsa na cadeira ao lado. Sinalizava estar “baixando a guarda”. Sua intuição talvez esti­vesse avisando que eu seria alguém de confiança, alguém em quem poderia con­fiar suas angústias e temores.

— Tenho os partos muito rápidos, doutor — prosseguiu ela. — Não acho que seja culpa minha. Eu realmente não recebo avisos, não tenho sensações premonitó­rias. Não creio que serei capaz de ir para um hospital; não terei tempo. Procuro na verdade alguém que possa me atender em casa, para que não seja necessário passar novamente por tudo aquilo que eu passei.

— O que aconteceu? — perguntei.

Pela primeira vez, Madalena desfazia o sorriso que trazia no rosto. Colocou as mãos sobre a mesa do consultório e liberou outro suspiro, desta vez mais longo e pesado. Seus olhos baixaram e sua voz tornou-se mais grave.

— Isso aconteceu no meu segundo parto. Quando meu marido me viu com meu filho André nos braços, ficou preocupado e fomos direto procurar o auxílio de um médico. Nos dirigimos ao posto de saúde, mas a médica que nos atendeu achou por bem ir até um hospital. O táxi ficara nos aguardando e acabamos indo para lá, mas meu marido teve que voltar para casa para cuidar de nossa filha Raquel. Em lá chegando, o médico de plantão me disse que, por ter nascido em casa, era ne­cessário que o menino ficasse em “observação”. Olhei para o meu filho e não con­segui entender porque era necessário que uma criança absolutamente normal ficasse internada. Voltei para casa para falar com meu marido sobre a indicação surpreendente de internar nosso filho e, como já estava tarde, resolvi ficar com meus filhos em casa. Para minha surpresa, no outro dia uma representante do Conselho Tutelar apareceu na minha porta, dizendo que eu deveria levar imedia­tamente meu filho recém-nascido ao hospital. Assustada com a visita inesperada e ameaçadora, resolvi concordar e voltar com o pequeno André ao hospital.

Fui recebida e tratada como uma criminosa. As pessoas de lá me acusavam de não ser responsável, de não me preocupar com meu filho. Diziam que eu tive muita sorte, porque ambos poderíamos ter morrido por falta de assistência. Eu não tive nenhuma laceração, portanto não precisei levar pontos, mas meu filho teve que ficar internado por sete dias apenas porque disseram que ele nasceu em um “lugar contaminado”. Minha casa, um lugar contaminado? Por quê, doutor? Fiquei sete dias tendo que pedir licença para ver meu menino e poder pegá-lo nos bra­ços. Fomos afastados ao nascer; não pudemos ficar juntos porque não nos permi­tiram. Não pude amamentá-lo do jeito que eu queria. Isso me magoou demais, e me deixou muito triste e deprimida; humilhada e envergonhada. No parto da minha filha Raquel, consegui, com muito esforço, convencer os médicos a me liberarem junto com ela do hospital depois de 24 horas. Por que no meu segundo parto, com uma criança absolutamente normal, eu deveria passar por tanto sofrimento? Não gostaria de sofrer tudo isso de novo. Não quero novamente essa vergonha.

Estava chorando. Um choro triste, antigo, de uma ferida que não havia cicatrizado. Lembrei-me do meu atendimento na sala de emergência do hospital, há alguns anos, quando me dei conta de como inconscientemente tratamos mulheres como se fossem seres incompetentes e incapazes, e pude entender a dor da qual Ma­dalena se recordava com tanto pesar. Ela havia sentido o gosto amargo de uma medicina mitológica, arrogante, preconceituosa e dissociada das evidências cien­tíficas. Com o tempo, aprendi a perceber o quanto esses momentos são marcantes na vida de uma mulher. Como a medicina e a obstetrícia contemporâneas são deter­minadas por pressupostos filosóficos essencialmente masculinos, esses fenôme­nos afetivos, emocionais, espirituais e claramente femininos facilmente fogem à percepção daqueles que controlam o nascimento humano. Madalena tinha uma dor que ainda não havia parado de doer. Tinha sofrido o preconceito do sistema médico em entender os diferentes e as opções individuais. Foi tratada como uma “delinquente”, como uma ameaça a um sistema que se sustenta sobre a ideia da supremacia da instituição sobre a natureza, que se ergue sobre o conceito da de­fectividade feminina e sobre a visão mecanicista do mundo, e que transforma or­ganismos em máquinas ilusoriamente controláveis. Olhei para minha paciente de forma compreensiva, tentando imaginar verdadeiramente o que ela passou para ter seus filhos.

— Madalena, eu não tenho experiência com partos domiciliares, mas entendo o seu problema. Nós, médicos, não fomos treinados para entender e assistir o nas­cimento humano de forma livre e natural. Há muito que perdemos o contato com esse fenômeno da forma como ele se mostra naturalmente. Conhecemos apenas o nascimento humano controlado, cerceado, medicalizado. O parto, artificializado pela cultura, não é mais entendido como algo ligado à natureza. Hoje em dia, é praticamente impossível entrar em um centro obstétrico de um grande hospital e encontrar um parto que não seja medicamentosamente assistido. Mesmo assim vou ajudar. Estarei contigo quando seu filho nascer. Pode contar comigo.

Conversamos sobre algumas trivialidades do pré-natal, que seria reduzido a algu­mas poucas consultas pelo adiantado da gravidez, e nos despedimos. Madalena agradeceu minhas palavras, e quando saiu da sala ainda secava as últimas lágri­mas. Percebi que ela havia sofrido uma discriminação violenta por não se portar em consonância com os padrões que esta sociedade determina. Sua natural faci­lidade para ter filhos era vista como uma anomalia e uma ameaça e, portanto, não podia ser bem vista pelo sistema. Estranhamente aquilo que seria visto como uma benção pela grande maioria das mulheres, Madalena vivenciava como um fardo. Mulheres foram ao longo dos últimos séculos reduzidas a contêineres fetais, ma­nipuladas pela medicina e sem que fosse respeitada a sua capacidade de realizar aquilo para o que a natureza lhe proveu de recursos. Nós, médicos, apenas repro­duzimos um paradigma, um modelo que ritualiza as condutas hospitalares para perpetuar os valores centrais do nosso código de crenças.

A conduta de manter André, o filho de Madalena, internado por sete dias apenas por ter nascido em casa é típica dessa visão preconceituosa. A criança, na ver­dade, ao ser internada após um parto domiciliar absolutamente normal e eutócico, passou por um “ritual de purificação” para ser aceita como um membro da socie­dade tecnocrática. Quando eu assistia a partos humanizados — sem drogas, de cócoras, com o companheiro na sala, com doula e em um ambiente mais tranquilo — em um tradicional hospital da cidade, alguns pediatras internavam rotineira­mente os bebês nascidos dessa forma, para que ficassem em “observação”, pois tinham nascido de parto “não convencional” e, portanto, tinham que ser avaliados de forma intensiva. Evidentemente que muitas dessas crianças desenvolviam “Síndrome de Angústia de Separação” — por ficarem longe de suas mães —, mas alguns pediatras afirmavam para a família que se tratava de “dispneia transitória”. O propósito do ritual de colocar a criança em observação era de que apenas se­riam aceitos como membros da “comunidade de crianças normais” aquelas que tivessem passado pelo ritual iniciático da internação, e o seu bem-estar só poderia ser determinado por aqueles que detêm o saber autoritativo sobre a saúde de ne­onatos. Nosso modelo tecnocrático e biomédico nos condiciona a entender uma mulher como essencialmente incapaz de saber se seu filho está bem, e isso é o que se percebe por detrás das inúmeras rotinas/rituais hospitalares.

Madalena sequer tinha escolha. A natureza havia lhe fornecido um mecanismo de parto tão suave que ocorria despercebido. O que levava em média 12 horas para uma mulher comum, para ela ocorria em segundos. Depois de tomar conheci­mento do seu caso, aprofundei meus estudos sobre a importância do tempo de espera para o nascimento entre os humanos, e percebi que o massageamento produzido pelas contrações uterinas e pela passagem no canal de parto é impor­tante para o amadurecimento do sistema respiratório e digestivo do recém-nas­cido. Esta é uma das razões pelas quais entre os seres humanos não existe o costume de “lamber as crias”, a exemplo do que fazem outros mamíferos superio­res, como cães, cabras, cavalos e gatos. A explicação para isso seria a de que esse procedimento instintivo não seria necessário, porque o trabalho de parto mais prolongado teria essa função de preparar esses sistemas para a vida ex­trauterina. Então, o que seria dos filhos de Madalena, que praticamente não apre­sentam esse período preparatório? Talvez a alternativa fosse “lamber” manual­mente o bebê, assim que se desprendesse do ventre materno, para auxiliá-lo na adaptação. Guardei essa reflexão comigo, para quando fosse chamado.

Madalena compareceu acompanhada de seu sorriso e sua doçura em mais algu­mas consultas. Percebi que sempre se mostrava confiante em si mesma, mas guardava medo em relação ao que poderia acontecer. Temia que se repetissem os fatos do seu segundo parto. Não suportava a ideia de separar-se de seu filho recém-nascido. Notei, entretanto, que parecia confiar em mim. Senti-me respon­sável por essa confiança, e tentei de todas as formas passar para ela esse com­promisso de ajudar no que fosse possível, respeitando a sua singularidade como pessoa e mãe. Solicitei os exames necessários para uma avaliação laboratorial básica, que se mostraram todos normais. Por outro lado, a ideia de assistir um parto em casa ainda me deixava confuso. E se desse algo errado? E se alguma coisa ocorresse fora do esperado? E se hou­vesse um descolamento placentário, um prolapso de cordão, um bebê com distúr­bios respiratórios graves? Que fazer? Aceitar essa incumbência seria arriscar-se, colocar-se como responsável pelos acontecimentos. Valeria a pena correr esse risco em nome do respeito à minha paciente e aos seus desejos?

Auxiliar uma paciente a ter um parto de acordo com seus desejos e aspirações é algo extremamente complicado na sociedade paranoica e oportunista em que vi­vemos. Muitos anos mais tarde, acabei entendendo isso da pior maneira possível, quando atendi mulheres que clamavam por respeito e dignidade no parto. As acu­sações mais leves que escutei de profissionais da medicina foram as de que uma mulher, por ser “leiga”, não poderia tomar decisões sobre o seu parto; caberia apenas aos médicos a tomada de decisões sobre o destino do nascimento hu­mano. Mulheres continuam sendo objeto de troca entre os homens, sem autono­mia, dignidade ou autodeterminação. Parto, para esses colegas, é um ato médico, e não um evento humano.

Nessa época, os textos de Robbie, que desvendavam o sentido oculto nos discur­sos médicos a respeito da “segurança no parto”, recém estavam vindo à tona nos Estados Unidos, através da publicação de sua tese de doutorado. Levaria mais de um lustro para que chegassem às minhas mãos. Compreensíveis, então, as mi­nhas indagações e temores sobre as eventualidades negativas em um parto.

Minha única experiência anterior com o parto domiciliar havia sido com Rosa, em 1993. Casada com Ronald, meu amigo de infância, era uma mulher que já havia tido seu primeiro filho em casa, sozinha com o marido. Dessa vez, me procuraram para conversar a respeito dos seus anseios e seu projeto de ter um filho nova­mente da forma mais natural possível. A ideia de irem para uma maternidade, se­rem submetidos às rotinas hospitalares e serem desrespeitados nos seus valores lhes era insuportável. Por outro lado, a idade de Rosa, 39 anos, era um entrave que até eles consideravam digno de preocupação. Conversamos algumas vezes no meu consultório e percebi que a decisão para eles seria difícil. Se, por um lado, reconheciam que Rosa mereceria uma atenção um pouco maior por causa da sua idade, por outro rejeitavam a ideia de “comer comida de hospital”, que represen­tava toda a recusa que tinham em relação às rotinas despersonalizantes das ma­ternidades. O tempo passou e nenhuma decisão foi por eles tomada, até que em uma certa tarde recebo um chamado pelo bip (naquele tempo, início dos anos 90, não havia telefones celulares) com o seguinte aviso. “Rosa está ganhando nenê”. Ponto. Só isso, nada mais.

E agora? Onde ela está? Foi ao hospital? Ficou em casa? Eles não tinham tele­fone, mas eu sabia onde moravam. Cancelei minhas últimas consultas, botei al­gumas luvas esterilizadas no bolso e me dirigi imediatamente à casa de Ronald e Rosa. Era uma tarde quente de maio. Cheguei à casa deles, cuja porta de entrada era mantida aberta para permitir a entrada de uma aragem fresca. A casa simples, praticamente sem móveis, guardava um silêncio misterioso. Não podem estar aqui, pensei eu. Nada se ouve. Entrei sala adentro e resolvi me anunciar batendo palmas. “Ó de casa. Tem alguém aí?” Ouvi passos se aproximando e avistei meu amigo se achegando à porta.

— Olha só quem apareceu! — disse Ronald sorridente e apressando-se em me cumprimentar. — Você veio!

— Bem, imaginei que Rosa estava precisando de auxílio. Recebi sua mensagem no bip. Ela ainda está aqui?

— Claro que está. Venha até o quarto comigo.

Segui meu amigo até o quarto simples e despojado, onde Rosa estava ajoelhada sobre um colchão colocado diretamente sobre o chão e forrado com um plástico escuro. Olhou para mim com o sorriso sereno e dócil das parturientes. Estava em pleno trabalho de parto, mas isso apenas se podia dizer pela leve contração de seu rosto durante as contrações e pela alteração do seu padrão respiratório. Nem um som, nem um gemido. Ao me ver, sorriu um sorriso de quem acorda, e depois me perguntou:

— Não queres tomar um chá? Ronald acabou de preparar um chá de flor de lótus que é uma delícia.

Rosa parecia absolutamente tranquila. Ajeitou-se em uma posição que os iogues usam e manteve-se assim.

— Rosa, antes de tomar chá, eu acho que seria interessante que a gente reali­zasse um exame de toque para saber quanto de dilatação você tem. Que acha?

Ela aquiesceu, e eu tirei minhas luvas esterilizadas do bolso. Pedi que ficasse de joelhos e realizei o exame. Colo apagado, bolsa íntegra, apresentação cefálica e com oito centímetros de dilatação. Puxa, falta pouco mesmo!, pensei eu. Aviso os dois da provável proximidade do nascimento. Rosa esboça um sorriso, interrom­pido pelo início de uma nova contração. Ronald faz um gesto com a cabeça e pede que eu o acompanhe até a cozinha para tomar um chá. No meio do caminho, eu penso que seria importante escutar os batimentos do bebê, mas lembro que na pressa de sair do hospital nem lembrei de pegar um fetoscópio de Pinard. Que fazer?

Ronald serve o chá e tomamos conversando sobre banalidades. Escuto com aten­ção as explicações que Ronald me dá sobre os efeitos terapêuticos do chá de ló­tus. Falamos de velhos conhecidos que nunca mais encontramos e demos algu­mas boas risadas. A cozinha era simples como o resto da casa, mas em um canto havia um rolo de alumínio que Ronald usa para enrolar o pão caseiro que vende na feira de sábados no Parque da Redenção. Olhei para o objeto e sorri.

— Ronald, achei o nosso Pinard!

Tirei todo o resto de alumínio e fiquei com um tubo grosso de papelão nas mãos. Voltamos ao quarto onde Rosa estava e pedi-lhe que ficasse novamente de joe­lhos para que eu pudesse escutar seu bebê. Toc, toc, toc. O coraçãozinho dele pulsava maravilhosamente sereno. Havia uma cumplicidade entre as serenidades; uma sintonia entre mútuas confianças. Rosa novamente sorriu, um momento antes apenas de franzir novamente a testa e apertar os olhos. Mas dessa vez foi um pouco diferente. Um som grave se ouviu. Algo mais profundo. Um som que conecta o colo uterino com a traqueia, fazendo um ruído intenso e longo. Era um puxo. Somente muitos anos depois, eu escutei a explicação, entre fisiológica e poética, da conexão entre a tonalidade da voz e a abertura do colo uterino.

— Ronald. Vai nascer em alguns minutos — disse eu. — Precisamos de mais al­gumas coisas. Água fervendo, uma tesoura esterilizada e algo para amarrar o cor­dão.

Ronald levantou-se e foi ferver a água em uma panela de alumínio, deixando a tesoura repousando aberta no fundo. Para clampear o cordão, me trouxe o bar­bante que usa para embrulhar o pão. Pronto. Tínhamos tudo que precisávamos. Restava apenas esperar. Enquanto aguardávamos as contrações, continuávamos nossa “busca pelo tempo perdido”, contando histórias da nossa infância. Velhos amigos, antigas namora­das, ninguém foi perdoado. Ronald, além de músico e poeta, era dotado de um senso de humor fino. Rosa apenas sorria de nossas besteiras. Mais alguns minu­tos apenas foram necessários para que os primeiros fios de cabelo aparecessem no introito vaginal. Pude perceber claramente a profunda inutilidade dos “coman­dos verbais” que nós, obstetras, produzimos nos hospitais, iludindo-nos de que orientamos os esforços expulsivos das grávidas. Rosa era pura instintualidade, e seus movimentos estavam coordenados por uma ordem muito aquém da raciona­lidade. Mantive-me atento e estático, mas para mim ainda era complicada a “lenti­dão que tende à imobilidade” apregoada por Leboyer.

Rosa gritou. Ergueu o rosto para o alto e abriu sua voz. De sua voz surgiu seu fi­lho. Ele veio direto da úmida e cálida obscuridade do ventre para os braços do pai, e desse espetáculo de vida eu fui um espectador privilegiado. Guardei um silêncio respeitoso e uma postura de reverência. A penumbra do quarto contrastava com a luminosidade que emanava do rosto de Rosa. Ela continuava olhando vivamente para o rosto do seu bebê, e mantinha um sorriso doce nos lábios. Sua atitude era de ternura e calma.

A imagem de suavidade no nascimento do filho de Rosa até hoje me impressiona. Nada foi rápido. Praticamente nenhuma pressa. Nenhuma laceração vaginal se fez, e o sangramento foi absolutamente normal. Essa suavidade do nascimento não intervencionista me deixou marcas importantes na memória, mas naquele momento eu tinha muito mais perguntas do que respostas. A mais importante de­las era: O parto de Rosa foi calmo e sereno porque ocorreu na tranquilidade e na paz da sua casa ou as características específicas de Rosa e do seu bebê é que permitiram esse resultado? Provavelmente as duas afirmações estavam corretas, mas a noção clara dessa verdade eu ainda estava por receber.

Ronald era só orgulho. Suas mãos de artista vaidosamente acarinhavam seu filho, com a mesma delicadeza com que desenham no papel a fina harmonia de uma poesia. Sorria para Rosa um sorriso silente, pleno de significados escondidos, histórias antigas, segredos compartilhados. Cortamos o cordão umbilical com a tesoura que tiramos da água fervente. O barbante que Ronald usa para embrulhar o pão foi usado logo após, para manter a hemostasia do coto umbilical. Enquanto Ronald estava com o filho nos braços, tracionei gentilmente o cordão que pendia para fora da vagina, para avaliar se a placenta ainda se encontrava aderida ao fundo uterino. Ronald me encarou com um olhar de censura, e com um sorriso me repreendeu:

— Não vai puxar a placenta, vai?

— Não, doutor — respondi eu, devolvendo-lhe o sorriso. — Não se preocupe. Va­mos esperar que ela saia no momento adequado.

Foi o que ocorreu. Alguns minutos apenas e o disco carnoso e vermelho despren­deu-se suavemente do útero, que por tanto tempo o abrigara. Foi analisado por mim e constatei que estava perfeito. A última cena de que me recordo é ver Ro­nald e Rosa no chão do quarto, enquanto eu sorrateiramente me retirava, para não atrapalhar a alegria e invadir a intimidade do casal em um momento tão belo.

Apesar de ter sido um parto bonito e tranquilo, com pessoas suaves e conscien­tes, o parto de Rosa não havia sido suficiente para me despertar da minha letargia tecnocrática. Mesmo com um tamanho exemplo de normalidade e brandura, eu ainda continuei preso aos sedutores conceitos de segurança do manejo hospitalar do nascimento. Ainda não havia lido Robbie Davis-Floyd, nem tinha a clara noção, despertada por ela, de que, em obstetrícia, a “segurança é o disfarce que oculta o verdadeiro valor subjacente, qual seja, o poder”.

O parto de Madalena colocava para mim outro tipo de desafio. Não se trata mais de convencer uma paciente (ou um médico) das conveniências ou não de um parto fora do ambiente de um hospital. Ela teria seu parto em casa, quer eu qui­sesse ou não. Cabia a mim aceitar a imposição da natureza e auxiliar minha cli­ente da melhor forma possível, ou recusar-me a ajudá-la, alegando que um mé­dico não pode prestar ajuda contra seus princípios ou colocando em risco a segu­rança de seus pacientes. A segunda opção pareceu-me covardia, essencialmente porque não havia para mim nenhuma prova de que ter um filho em casa signifi­cava aumentar risco, mesmo que a ideia me causasse medo e apreensão. Assim foi. Algumas poucas semanas apenas haviam se passado após nosso pri­meiro encontro e recebo o telefonema do seu marido. Passava da meia-noite, e estava sozinho em casa com meus filhos. Zeza estava de plantão.

— Doutor, a Madalena acabou de ter o bebê.

— Já? — gritei eu. — Não deu tempo de me ligar antes?

— Não deu tempo para nada, doutor — continuou ele.

— Ok. Estou indo aí.

Antes de chegar à casa de Madalena, passei no hospital onde Zeza estava de plantão e pedi que me acompanhasse até lá. Achei que alguns pontos poderiam ser necessários, e queria que ela me auxiliasse com o atendimento ao bebê. Ela solicitou uma troca de horários com sua colega e me acompanhou até a casa da minha cliente.

Madalena morava na parte sul da cidade, próximo ao rio. Lá chegando encontra­mos um ambiente de completo silêncio. As peças simples do apartamento térreo eram rabiscadas de cima a baixo, com desenhos feitos pelas crianças com lápis de cera. Uma música celta tocava em um aparelho de CD colocado no canto da sala de estar. Uma gata grávida vagava pela escuridão do ambiente, encostando o pelo sedoso contra a parede, e nos cumprimentou com um preguiçoso ronronar. As luzes estavam apagadas, com exceção da luz que vinha da cozinha, onde o marido de Madalena preparava um chá. Os dois filhos de Madalena dormiam no quarto, cuidados pela amiga Janaína, alheios ao que ocorria na casa. Entramos mais um pouco no pequeno apartamento, e quando estava me preparando para entrar no quarto escutei um “psiu” vindo do banheiro.

Lá estava ela, embaixo do chuveiro. A luz do pequeno aposento também estava apagada, mas pude perceber na penumbra que ela estava abraçada ao seu filho, formando com ele uma unidade indivisível. Era impossível saber onde terminava Madalena e onde começava seu bebê. Uma união que apenas se iniciava a rom­per, mas que ainda mantinha uma coesão perceptível, simbolizada pelo cordão umbilical que pendia até o joelho.

Aproximamo-nos de ambos e logo pudemos perceber que, em razão da escassa luz do ambiente, o bebê estava com os olhos arregalados, como querendo absor­ver toda a informação que lhe fosse possível. O cordão umbilical já não pulsava, e os batimentos cardíacos do menino estavam absolutamente normais. Havia nas­cido há menos de 20 minutos, mas estava em estado de plena tranquilidade. Cor­tei o cordão com o material esterilizado que trouxera e pedi a Zeza que segurasse o pequenino, para permitir que Madalena terminasse seu banho. Enquanto isso acontecia, fomos examinar o recém-nascido, que se mostrou perfeito em todos os aspectos. Nesse momento, lembrei-me da ativação neurossensorial produzida pelo massageamento do trabalho de parto e resolvi oferecer àquele bebê o que ele não recebera pela rapidez de seu nascimento. Recordei de meus estudos an­teriores e de uma observação do famoso antropólogo britânico Ashley Montagu:

“As contrações do útero proporcionam uma intensa estimulação na pele do feto. Estes estímulos são imensamente intensificados durante o trabalho de parto, para que os sistemas de sustentação sejam pre­parados para um funcionamento pós-natal, que é diferente daquele utilizado no ambiente aquático. (…) Ainda não entendemos que o to­que de uma mão pode fazer toda a diferença para outro ser humano; algumas vezes literalmente a diferença entre a vida e a morte. Médi­cos não tocam seus paciente o quanto deviam, e a ideia de afastar re­cém-nascidos de suas mães é absurda por mais uma centena de pontos de vista.”

No seu livro pioneiro Touching, Ashley Montagu nos deixa claro que a pele é, em verdade, o “sistema nervoso externo”, e que inicia seu funcionamento cedo ainda na gravidez. Por essa razão, o toque é nossa primeira linguagem e um importan­tíssimo meio de comunicação para os bebês, dentro e fora do útero. Negligenciar essas evidências poderia colocar todo o amadurecimento dessa criança em risco. Realizei uma massagem instintiva, baseada apenas na minha sensibilidade. Nunca havia aprendido nada sobre técnicas específicas, e do assunto apenas co­nhecia Shantala, a mulher indiana que, massageando seu filho, impressionou Fre­derick Leboyer. Não cumpri nenhuma técnica especial, mas tive a nítida sensação que o pequenino gostou de ser acarinhado. Quando Madalena retornou do banho avaliei seu períneo, que também não mostrou nenhuma anormalidade ou lacera­ção. Tudo perfeito, tranquilo, normal.

No dia seguinte, voltamos à casa de Madalena. Com o bebê no colo e os filhos pequenos embaixo da asa, recebeu-nos com seu sorriso angelical de costume. O bebê, batizado de Rafael, estava tão tranquilo quanto ao nascer. O peso, as medi­das, a análise do bem-estar — tudo estava adequado. Madalena irradiava alegria e confiança. Zeza ficou encantada com o parto. Mesmo que não estivéssemos lá no momento exato do nascimento, pudemos perceber a paz e o clima positivo que reinava na casa. Mesmo assim, a impressão positiva criada não conseguiu ainda me fazer acreditar na possibilidade de um modelo alternativo de parto e nasci­mento. Eu ainda não havia cursado minha trilha completa. Entretanto, minha mais importante lição acabou vindo alguns anos depois, através da mesma mulher.

Quando minha secretária a anunciou, eu não imaginava que ela estivesse com uma gravidez tão adiantada. Sua barriga denunciava a quarta gravidez. Veio ao consultório já com oito meses de gestação. Madalena continuava com o mesmo sorriso, apesar de terem passados três anos daquele nosso último encontro.

— Madalena, como vai? Tem alguma novidade para me contar? — disse-lhe eu de forma zombeteira.

Ela sorriu carinhosamente do meu gracejo e respondeu:

— Como pode ver, doutor, estou aqui novamente a precisar de sua ajuda. Gosta­ria que tudo ocorresse como da última vez. Seria possível?

— E por que não? — respondi. — Creio que temos todas as condições para que esse parto seja tão fácil e tranquilo como os demais. Como estão as crianças?

Madalena então falou de seus filhos como quem fala de seu maior tesouro. Disse como eles ficaram felizes da última vez, pois, quando acordaram, foram apresen­tados ao irmãozinho menor que havia nascido na madrugada. Combinamos os detalhes de praxe e nos despedimos. Houve apenas mais uma ou duas consultas de pré-natal, onde foram realizadas avaliações de praxe e solicitados exames de rotina. Feito isso, ficamos à espera do momento do parto.

O telefone tocou enquanto eu dirigia meu carro. Estava indo para o ambulatório de ginecologia de um hospital da cidade em que eu trabalhava. A voz, a entonação e a própria frase eram familiares.

— Doutor, o nenê da Madalena acabou de nascer.

Eram por volta das 15 horas e lá fui eu mais uma vez para o apartamento de Ma­dalena. Girei os pneus do meu caro para a direita e troquei meu itinerário. Minhas pacientes teriam que aguardar um pouco mais a minha chegada. O ambiente na casa estava praticamente intocado. Os mesmos móveis, as mes­mas músicas, os mesmos rabiscos nas paredes, o mesmo clima. Apenas a escu­ridão da noite não estava presente, mas para compensar as persianas da sala estavam completamente fechadas, deixando apenas uma réstia de luz passar por entre as tiras de madeira. Não esperei que me chamassem, e instintivamente es­piei para dentro do pequeno banheiro à procura de Madalena.

Lá estava ela, na mesma posição que a minha memória mostrava, e com a mesma amálgama de corpos da vez anterior. Seu filho nos braços igualmente não chorava, e a penumbra do local o deixava a vontade para abrir despudoradamente suas pálpebras. Repeti o ritual da vez anterior, desta vez sem o auxílio de Zeza. A placenta saiu sem dificuldades enquanto ainda se mantinha em pé debaixo do chuveiro. Logo após cortar o cordão, pedi que Madalena me alcançasse o bebê, que eu trataria de secar e vestir enquanto ela terminava de se arrumar. Enrolei o pequenino em uma toalha e cruzei o corredor para entrar no seu quarto logo em frente.

Foi aí que tive a minha primeira grande surpresa.

Ao entrar no quarto de Madalena, deparei-me com uma das mais belas cenas que já havia presenciado. Até então não havia me apercebido da ausência dos seus filhos no cenário, até porque da vez anterior eu não os encontrei por ser muito tarde e estarem dormindo. Mas desta vez eles estavam presentes.

Quando transpus o marco da porta e olhei para o lado direito, vi os três pequenos perfilados, por ordem de idade, ao lado da cama. O menor, de três anos, foi o que nasceu naquela madrugada em que vim pela primeira vez à casa de Madalena. Estavam absolutamente excitados com o nascimento do caçula. A maior, Raquel, era muito parecida com a mãe. Quando me viram carregando o bebê enrolado em uma toalha, começaram a pular e gritar de emoção. A mais velha falou primeiro: “Eu é que vou vestir o bebê!”. Ao que o do meio, André, emendou: “Mas quem vai escolher o nome sou eu!”. O menorzinho, Rafael, para não ficar atrás nas reivindi­cações, completou: “Mas eu também quero segurar no meu colo, porque eu sou forte!”.

— Calma! Vamos combinar o que a gente vai fazer. Eu proponho que todos nós juntos arrumemos o bebê enquanto a mamãe não vem, ok? Alguém aí já separou a roupinha dele?

A mais velha rapidamente abriu uma porta de armário e trouxe uma roupa de bebê dobradinha, que provavelmente já tinha sido vestida por todas as crianças da casa. Agora seria a vez do recém-chegado.

— Ok — disse eu. — Façamos o seguinte. Eu coloco o casaco e vocês colocam o tip-top, certo? E você, meu amiguinho, vai me ajudar a botar as meias, está bem?

Rafael, o menor dos três, sorriu um sorriso de juntar orelhas e aproximou-se de mim. Assim acertados, terminamos rapidamente de vestir o bebê, e ainda deu tempo pra cada um deles segurar o bebê no colo por alguns segundos. Tão logo o bebê estava arrumado, Madalena entrou no quarto. Estava usando um robe branco e surrado, mas parecia um anjo. Não parecia caminhar; volitava sobre o chão do quarto. Sem dizer palavra, abriu os braços e eu lhe passei seu filho, quase com vergonha de ter ficado com ele por alguns momentos. Na sala, o marido de Madalena terminava de colocar as xícaras sobre a mesa. As crianças, ainda eufóricas, correram para tomar o café da tarde, enquanto eu dava as últimas orientações para Madalena. Quando saímos do quarto, Madalena sen­tou-se ao lado dos filhos na mesa e me perguntou:

— Doutor, íamos tomar café agora, mas nos atrasamos um pouco porque o bebê nasceu. Gostaria de nos acompanhar?

Os olhares todos se concentraram em mim. A cena acabaria se tornando inesque­cível.

— Infelizmente, meus amigos, não tenho como ficar. Estava indo para o hospital para atender minhas clientes, e não posso deixar de ir. Talvez elas ainda estejam me aguardando por lá. De qualquer forma, amanhã virei aqui com a Zeza e vamos pesar o bebê e completar a avaliação. Vocês têm meu telefone, qualquer coisa me avisem, ok?

Pedi que todos continuassem sentados, pois eu sabia como fechar a porta ao sair. As crianças me lançaram acenos efusivos, e Madalena apenas me sorriu com do­çura.

Aconteceu quando escutei o barulho da tranca da porta estalar. Voltei-me para a porta do edifício que dava para a rua, mas notei que, ao meu lado, os azulejos mostravam mais uma vez um semblante distorcido. Olhei para a minha figura grotescamente reproduzida na parede e minha memória deu um salto para o pas­sado. Cada pequeno quadrilátero ao meu lado mostrava uma cena em que a mi­nha atitude como médico estivera desafiada. O olhar da paciente na sala de emergência, o grito da bela Glamour Girl, o sorriso de Rosa amparada por Ronald, meu escárnio quando Zeza pela primeira vez me falou nos “partos de cócoras”. Todas as imagens se reuniram na parede, tentando me mostrar que meu caminho poderia ser outro. Viro o rosto para o lado e vejo a porta envidraçada do edifico que me leva à rua, ao mundo. Pelo vidro posso ver a tarde se esvair.

Vidro. Um cristal…

A música de Vitor Ramil atravessava meus ouvidos. A porta do edifício permitia que a luz passasse, mesmo estando fechada, porque era feita de… vidro. A me­táfora me atropelou e me deixou estatelado, caído. Indefeso.

O homem de vidro encontrava a sua essência, finalmente.

A transparência presente; a ausência em carne e sílica. A possibilidade de afastar o medo, mas permitir a passagem da luz. A ideia de que aquele que cuida do nas­cimento deve ser o que reflete, e não o que brilha. Estar, sem estar. Ir-se, mas manter-se ao lado. Diáfano e translúcido, mas atento e presente como Faramir, para lançar a flecha certeira quando o Názgul doentio e ameaçador se aproximar.

Novamente me vi transportado para a sala de emergência do hospital, dando or­dens, gritando, esbravejando. Revivo as distorções e os vícios de uma atitude pro­fissional distante dos pacientes. A mesma sensação de vergonha me invadiu, mas dessa vez não havia tantas dúvidas. Eu já sabia a razão.

A farpa na mente, corrosiva e dolorida. A velha cicatriz que voltava a doer, pul­sando insistentemente, não deixando que eu ultrapassasse o portal do velho edifí­cio. Agora eu sabia que havia ido longe demais, e que minha caminhada não per­mitia retorno. Eu estava só, e a passagem atrás de mim havia se fechado. À mi­nha frente uma realidade difícil e dura, porque poucos me entenderiam. Final­mente o destino havia brindado o pequenino peixe com a visão do mundo fora do oceano da tecnocracia. Deslumbrado com o ar, a visão das nuvens e a imensidão azul dos céus, ele experimenta desconforto por voltar à água. Percebe que nunca havia se apercebido do mundo que o rodeava porque jamais fora exposto a outra realidade. Agora era impossível negar o que os seus sentidos denunciavam.

Olhei mais uma última vez para trás e encarei a porta do apartamento de Mada­lena. Pude então me aperceber da dura realidade do que ocorrera ali. Tantos anos estudando e atendendo grávidas e nascimentos e só agora havia me apercebido do que era um parto de verdade. Finalmente eu havia entendido como poderia ser um nascimento inserido na natureza e na cultura, respeitando a famí­lia, o convívio, a alegria e a esperança. Tamanha foi a intoxicação que eu rece­bera na minha formação obstétrica através da medicalização do nascimento que ficara cego ao que um nascimento realmente poderia ser quando conduzido em outro modelo.

“Chegando em casa ele chorou, e pro inferno ele foi pela segunda vez”.

Os versos de Renato Russo me vieram à mente quando pensava nos significados profundos da experiência. O parto de Madalena havia me conduzido novamente ao inferno da minha arrogância, assim como o parto na sala de emergência havia me levado pela primeira vez, havia muitos anos. Já não era mais possível ignorar o impacto que um nascimento desmedicalizado é capaz de produzir na família e nas pessoas que dele tomam parte. O nascimento hospitalar medicalizado, a que eu me acostumara nos tantos anos de prática obstétrica, a partir daquele dia pas­sou a ser motivo de uma crítica cada vez mais intensa. A lição que Madalena me ofereceu foi inestimável. A sensação de ter participado da festa do nascimento de seus filhos é uma emoção que jamais poderei esque­cer. A epifania trazida à tona pela participação nesse nascimento ficou marcada no mural das minhas lembranças de uma forma por demais intensa.

Seu bebê chamou-se Miguel, aquele que é como Deus. Como seus irmãos, tinha um nome bíblico, uma tradição que Madalena e seu marido utilizavam para em­prestar um simbolismo religioso aos seus filhos.

Alguns anos mais tarde, Madalena novamente engravidou, talvez pela última vez. Novamente eu e Zeza fomos auxiliá-la, agora no seu quinto filho. O cenário e os personagens mudaram muito pouco. As crianças, um pouquinho maiores, volta­ram a se divertir com a chegada da irmãzinha. O chamado no meio da noite, a cena no pequeno e cálido banheiro, a amálgama de corpos entrelaçados, tudo se repetia com a mesma intensidade e a mesma energia. Enquanto Zeza cuidava da menina recém-nascida, batizada de Sara, sentei-me com Madalena na acanhada sala de seu apartamento e lhe perguntei:

— Esse é o último Madalena?

Ela sorriu e disse:

— Não sei. Gosto tanto de ter filhos que não seria justo dizer que não mais os te­rei.

— Madalena — disse-lhe eu fitando doces olhos castanhos —, você é uma mulher abençoada. Tem o dom da maternidade e a dádiva de ser mãe de tantos filhos e todos saudáveis. Seus partos são rápidos, indolores e belos. Você devia doar seu corpo para a ciência, para que no futuro descubram qual o gene responsável por ter filhos com tamanha facilidade e tanta paz.

Madalena me encarou com aquele olhar maravilhosamente doce e me respondeu com um sorriso:

— Doutor, não vai adiantar procurarem no meu corpo. Aqui não vão encontrar nada. Melhor procurarem na minha alma.

Abençoada seja para sempre, Madalena.

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Memórias do Homem de Vidro – 08

Beatriz e a Origem do Sintoma

Achei que até eu já havia bebido demais. Levantei-me da cadeira de lata e me espreguicei, menos pelo alongamento e mais para testar meu equilíbrio. Nadine me encarava tentando achar alguma vermelhidão em minha esclerótica, sinal ine­quívoco do meu exagero. Não estava bêbado, sequer “alto”. Quando isso me acontece, escuto o mundo de dentro de uma concha. E perco a noção de distân­cia. Não fico como aqueles ébrios que falam perto demais, misturando o hálito car­regado com a falta de compostura, mas enxergo tudo de uma forma distorcida, com a profundidade prejudicada. Nada disso estava acontecendo, porque eu via Nadine e Maximilian nos exatos lugares em que estivéramos sentados nas últimas duas horas, conversando no bar do hospital onde Nadine é plantonista do centro obstétrico, nutrindo nossas filosofias com cerveja e batatas fritas.

— Não entendo essas atitudes de exagerada impaciência com que às vezes você me trata, Nadine. — Disse isso olhando diretamente para minha colega, com um ar de dissimulada severidade. Continuei: — A última é esta: “não considera a questão discutível, já que não respondeste”. Meu silêncio a ofende tanto assim?

Dei alguns passos em direção à porta do bar e confirmei minha sobriedade. Per­miti que a brisa da tarde desarrumasse meus poucos cabelos. O frescor me ani­mou a continuar.

— Quando eu fico em silêncio para, entre outras coisas, não “alugar” os ouvidos dos amigos ou me tornar o foco das atenções, sou acusado de “não considerar a questão discutível”. É justo isso? Putz… Já não basta sofrer de “Peremptória Lo­quacidade Paroxística”, ainda sou acusado quando guardo um silêncio respeitoso em relação à opinião alheia? O verdadeiro democrata luta para que seus pontos de vista possam receber o merecido contraditório, sob pena de transformar suas ideias em dogmas!

Terminei a frase com os braços abertos e o olhar para o teto, mas não consegui conter uma risada diante de tamanha canastrice. Maximilian debochadamente bateu palmas e me abraçou. Fazia essa encenação comigo, sempre que eu con­cordava com ideias suas. Nadine olhou para o relógio. Uma indireta?

— Então responda minha pergunta sobre a relação entre psiquismo e sintoma, especificamente da náusea na gravidez — disse ela.

Sua simpatia e beleza eram absolutamente sedutoras. Nadine tinha um charme inquestionável, mesmo quando estava impaciente. Respondi com a brandura que seu meio-sorriso demandava.

— Apenas tenha paciência comigo. Não respondi porque não achei que poderia acrescentar nada de novo ao que já havia dito. Tente lembrar o que conversamos anteriormente sobre os vômitos durante a gravidez. Minha posição é clara. Falei a minha opinião sobre a sintomatologia como emergência de transtornos mais pro­fundos do psiquismo, e você falou da importância, com o que concordo, do estado hormonal alterado da gestação. Não considero sequer que sejam pontos de vista francamente conflitantes, apenas uma questão de ênfase. Eu prefiro olhar o sin­toma dessa forma, porque essa maneira me parece ser mais criativa e construtiva. Você vê como algo passageiro e contornável, o que também é correto. Nada mais.

Nadine continuava a me encarar. Continuava a mesma mulher de uma beleza só­bria, mas triste. Parecia faltar à Nadine o brilho de uma grande paixão. Ou seria preconceito meu? A completude do feminino só é encontrada no amor? Ou estaria errada a canção de João Bosco, “Quem pode querer ser feliz se não for por um grande amor?”? Continuei meu discurso sem me importar com as caretas que Max me fazia.

— Você acredita que os sintomas do início da gestação seriam basicamente oca­sionados pelas alterações bioquímicas características do período gravídico, certo? Quanto à sua comparação entre náusea gravídica e a intoxicação etílica, lembre-se de que uma bebedeira faz parte de uma intoxicação. Não é fisiológica, nem está programada pelo organismo. A náusea gravídica, por seu turno, está inserida em um projeto fisiológico — a gestação — e está dentro da normalidade orgânica. Não é intoxicante, nem requer doses altas e não naturais de substâncias exóge­nas. De cada dez indivíduos que tomam meio litro de vodka dez ficam bêbados, o mesmo não ocorrendo com os sintomas da gravidez.

Maximilian, que estava acompanhando algumas ancas com o rabo do olho, sorriu com o canto da boca quando citei esse exemplo: “Meia garrafa só, companheiro?” Sem me deixar atrapalhar pela gozação de Max, continuei com minha explanação.

— Quanto às grávidas, apenas uma parcela variável sente efeitos nauseantes, o que reforça a subjetividade e a característica de suscetibilidade específica do transtorno. Não é o hormônio que solitariamente produz o quadro, ao contrário do álcool da bebedeira. É a pessoa que é, ou está, suscetível. Acrescentem-se a isso as pressões culturais que fazem com que sintomas apareçam em decorrência das latitudes e de padrões específicos de comportamento social. A sintomatologia pós-menopausa é um excelente exemplo, por ser tão comum em países industrializa­dos e praticamente ausente em algumas populações da América Central, mesmo com igualdade na atividade hormonal. Existe mais do que patologia no sintoma; existe simbolismo. O sintoma é uma forma alterada do organismo de buscar equi­líbrio. Ele é uma maneira de mudar o padrão energético para alcançar a harmonia perdida pelo choque entre a suscetibilidade e um agente externo. Em homeopatia, chamamos de diátese. Por isso, o conflito emocional, que é o caso frequente em uma gravidez, pode gerar alterações de tal monta que o organismo tende a se adaptar à necessidade de homeostase através da modificação física. Além disso, acho que a escolha do sintoma específico utilizado pelo sujeito tem um aspecto metafórico. Daí a necessidade de “botar para fora”.

Nadine me interrompe com um gesto. Parecia ter esperado um determinado mo­mento para falar algo que a estava incomodando. Seu movimento foi brusco, cor­tando com um só golpe minha frase que se iniciava.

— Tudo bem, Ric. Posso até concordar com algumas das suas ideias, mas você também disse que nem toda grávida desenvolve essa sintomatologia, apesar de sofrer as mesmas alterações hormonais. Com isso eu concordo, mas, se eu en­tendi, você deixou claro que pode existir uma relação inversa, que me daria a en­tender que, se uma grávida não vomita, é porque não tem nada a “colocar para fora”. Dessa forma, poderíamos construir um modelo simplista e reducionista, no qual a emergência de uma sintomatologia criaria uma linha reta com a presença de distúrbios psicológicos. Isso me parece um exagero.

Aprumei-me na cadeira. Sempre respeitei as opiniões de Nadine, mesmo quando não concordava com elas. Sua postura, além de ponderada e honesta, é de uma dignidade imbatível. Ela funcionava como um freio às minhas ilações demasiado etéreas e filosóficas, trazendo-me para o mundo real e cru, mas o fazia com a candura que só uma verdadeira amiga é capaz de oferecer. Sendo tão doce e maternal, porque ainda estaria sozinha? Essa resposta nem Max possuía. Conti­nuei minha explicação.

— Concluiu mal, minha flor. Eu não disse que ela não tinha nada para botar fora, nem pensei isso. É possível inclusive que elas não consigam botar para fora, o que é muito ruim. Ou é possível que elas não precisem desse sintoma, por exem­plo, se puderem falar das suas angústias com a vizinha, com o queixo apoiado no muro. Ou pode ser que ela tenha urticária, que também é uma forma de “botar para fora”, através da pele. Ou pode ser que elas chorem no meio da noite ou te­nham enxaquecas. Ou pode ser que gritem, mordam ou façam terapia, etc. Vomi­tar é apenas uma das maneiras de reagir, na miríade de alternativas que a vida nos apresenta, e é apenas uma das mais facilmente utilizadas pelas grávidas, em função do estado hormonal alterado.

Maximilian ergue a taça e brinda.

— Bebo — diz ele — mas faço isso por amor à humanidade. Poderia estar sóbrio e atrapalhar a conversa de vocês, o que seria uma lástima.

Momentaneamente perdoo seus exageros etílicos. Lembrei-o de uma frase sua, quando juntos estávamos na residência: “O sintoma, muitas vezes, é o espelho do desejo embotado”, me disse, enquanto tomávamos cerveja preta em uma viela escura e soturna próxima ao hospital universitário.

— Além disso — retomou Nadine — o mal-estar provocado pela náusea não de­termina reflexões positivas, apenas desconforto. Que benefício psicológico poderia surgir disso? Que acréscimo de valor eu poderia trazer à minha vida por ter vomi­tado até virar o estômago do avesso?

Seu rosto se contorceu. Nadine sempre sofrera de transtornos pré-menstruais in­tensos, que incluíam cólicas uterinas, náuseas e vômitos insuportáveis. Nesse aspecto, ela carregava uma vantagem irretorquível. Sua careta era uma memória mímica de momentos de mal-estar.

— Nadine — disse eu — concordo com você, porém acredito que o sintoma pro­duz, sim, uma possibilidade de reflexão e reavaliação. Pouca coisa na vida produz mais resultados no sentido criativo do que o mal-estar, a dor, a perda e o sofri­mento. Nossa angústia surgiu quando diabolicamente nos separamos da unidade primitiva, e iniciamos nossa jornada em busca da recuperação do idílio perdido. Isso se deu através de uma dor, que criou o mundo como o conhecemos. Essa angústia de separação é a mãe de toda a ciência e todo o conhecimento. E de todo o horror.

Uma risada e um franzir de sobrancelhas de Maximilian. Ele repete mais uma de suas indefectíveis frases de efeito: “O gozo se goza, mas o sofrimento é que constrói”. O garçom se aproxima, e eu faço um gesto negativo com o indicador, dando a entender que Max já havia ultrapassado sua cota.

— Sigmund Freud — continuei eu — escreveu um texto chamado “O Mal-Estar na Civilização”, em que analisa a força repressiva do projeto civilizatório e as suas repercussões no proceder social. Ali ele tece sua análise da construção de uma cultura baseada na repressão e o que significa essa obliteração do desejo para cada um de nós. Uma de nossas ferramentas para lidar com a energia acumulada pela negação à livre manifestação do Id é o sintoma, que nos auxilia a desafogar essa pressão interna.

— O mal-estar é o gérmen da criatividade — disse Max, depois de sorver o último gole de cerveja.

Estaria “alto”, ou apenas fingindo uma bebedeira, para assim fugir à responsabili­dade dos seus atos? A primeira opção me pareceu mais verdadeira, principal­mente depois que ele se ergueu da cadeira do bar, caminhou alguns passos, olhou para trás apontando o indicador para os céus e finalmente disse:

— Ric, você não terá feito nada de importante na vida enquanto não tiver o direito de se comportar como um menino de nove anos.

— Posso contar uma história? — perguntei para Nadine, que ainda sorria da cri­ancice de Max. — Talvez ela possa explicar o que quero dizer.

Nadine balançou a cabeça afirmativamente. Cruzei as pernas e repousei as mãos entrelaçadas sobre os joelhos.

*   *   *

Groddeck, psicanalista contemporâneo de Freud, dizia que toda a sintomatologia carrega consigo uma simbologia recôndita. Algo “escrito por detrás do véu que encobre o que é meramente manifesto”, como nos diz Maximilian. Aquilo que liga o sintoma ao seu sentido último, que quase sempre é invisível ao olho desavisado.

Pois uma vez eu estava de plantão na maternidade e me pediram para atender uma paciente que estava na internação obstétrica do hospital onde eu trabalhava. Era uma paciente com 20 semanas de gravidez e que aparentava ser muito jo­vem. Estava com vômitos incoercíveis. Sempre tive uma dúvida e uma questão pessoal com esse sintoma. Como eu já disse, Nadine, a gente aprende na facul­dade que elas vomitam porque estão cheias de hormônios ditos “eméticos”, tipo estrogênio, progesterona, HPL, etc. Mas isso não me parecia suficiente. “Por que umas têm e outras não, já que todas estão cheias de hormônio?”, perguntava eu, o aluno chato. Diziam-me que cada uma tem a sua sensibilidade e etc. Isso eu já sabia. Mas será que o vômito não era um sintoma de algo mais profundo, emocio­nal, psicológico? Lembrei-me de uma amiga minha que odiava o marido, e algum tempo antes de se separar este lhe implorou que fizessem amor. Ela aquiesceu por medo da reação do marido, mas tamanha era a repulsa que sentia por ele que logo após terminar o ato, ela… vomitou. Imaginei que o vômito dessa grávida po­deria conter o mesmo tipo de mensagem. Quem sabe? Mas deixem que eu lhes conte a história…

Entrei no pequeno quarto do hospital militar. Era uma manhã fria na cidade. Lá estava ela, envolta num cobertor. Emagrecida, com olheiras e com o indefectível soro fisiológico, que era a sua ligação simbólica com o hospital, com o sistema, como bem pontuou Robbie Davis-Floyd em Birth as na American Rite of Passage. Olhou-me sem pressa. Seu olhar era de medo, de cansaço. Seu nome era, diga­mos, Beatriz.

— Oi — disse eu. — Sou o médico que vai atendê-la.

— Oi, doutor — respondeu ela.

Sua voz era sussurrada. Parecia fraquinha, débil. Não comia quase nada, e o pouco que conseguia era devolvido. Havia emagrecido muito desde o início da gravidez. Pedi licença e levantei o cobertor. Lá estava a barriguinha, saltando para fora do abdome encovado. “Engoliu um caroço de abacate”, diria a minha avó. Que será que faz essa mulher vomitar? Por que ela rejeita comida?

— Por que isso, Beatriz? Por que você está vomitando? — indaguei de supetão.

Às vezes entro “de sola”, para produzir um reboliço. Fazer uma pergunta dessas é um risco, porque a paciente pode não entender, pode achar que eu a estou cul­pando de algo. Tentei contornar isso com um olhar benevolente. Talvez eu pu­desse mobilizá-la o suficiente para entender o que estava ocorrendo, e melhor, fazê-la entender. Poderia ser, imaginei eu, que, se ela pudesse entender onde estava encravado esse sintoma, o que ele representava e que lugar ocupava, não precisasse mais dele.

— Como assim, doutor? “Por quê?” Se eu soubesse não estaria aqui.

Sua postura foi, como previa, de defesa. Ok, plano dois: fazê-la entender que o que ela tem é mais do que aparece.

— Bem, eu acho que você sabe. Você está vomitando muito. Não está se nutrindo adequadamente. Ficamos preocupados e a internamos.

A mim parecia existir alguma coisa que a estava atrapalhando e ela tentava colo­car para fora. Fazia o melhor que podia: vomitava sem parar. Mas será que essa seria a única saída?

— Doutor… Não consigo parar de vomitar. Não é culpa minha. Gostaria de parar, mas não consigo. Nada para lá dentro. Até água.

— Mas… o que você quer dizer com isso? — indaguei, depois de um silêncio pro­posital.

Ela ficou em silêncio. Parecia não entender o que eu queria.

Ok… sequência do plano dois. O que vem a seguir mesmo? Ah, lembrei. Resolvi fazer-lhe perguntas banais. Nome, idade, endereço, estado civil. Profissão, tele­fone, blá, blá, blá. Perguntei então da história obstétrica. Início menstrual, início das relações sexuais. Anticoncepcionais prévios à gestação.

— Este é o primeiro filho?

— Sim — aquiesceu ela.

— Primeira gravidez? — emendei.

Silêncio. Uns instantes mais me olhando. Parecia querer saber o que estava co­lado na minha retina. Olhou no fundo do meu olho procurando algo. Uma confi­ança? Um gancho para pendurar um segredo?

— Sim — respondeu em um quase sussurro. Seu olhar para baixo mostrava que eu estava próximo de um ponto importante.

— Primeira gravidez? — repeti. — Você teve algum aborto anterior a esta gesta­ção?

Seus olhos marejaram. Tremeram-lhe os lábios. A boca lentamente se contorceu e as lágrimas correram pela face emagrecida. Uma dor surda a tomava. As mãos uniram-se ao peito. Mostravam que ali residia encravada uma mácula, um machu­cado, uma ferida espinhosa.

— Quer falar sobre isso, Beatriz?

Ela continuava chorando baixinho. Aprendi com Robbie que a maior ajuda que podemos dar a quem sofre é permitir que ela conte a sua história, sem interromper ou julgar. Essa história muitas vezes inicia-se com a transposição da pessoa para um momento no passado de muita dor, e essa dor vem à tona através das lágri­mas, tristeza e melancolia. Não se deve interromper; tem que fluir. Chorou mais um pouquinho, e depois de se acalmar falou o que ocorria.

— Não é a minha primeira gravidez, doutor. Ninguém sabe disso. Eu fiz um aborto no passado. Tinha um namorado e era muito jovem. Não podia ter essa criança. Eu me culpo muito por isso, meu marido não sabe de nada. Ele é um homem reli­gioso, jamais entenderia. Ele acha isso um crime. Desculpe…

Mais lágrimas. Dava pra se ver o que ela guardava dentro de si, e que doía tanto. Ela tentava se livrar da dor, da vergonha. Queria jogar longe um passado que a maltratava.

— Ok, minha flor. Posso claramente entender a sua dor. Mas tente entender as alternativas que você mesma cria para se harmonizar. Você pode continuar vomi­tando, e eu posso continuar dando soro e antieméticos. Mas não seria mais inte­ressante tirar esse peso do seu peito? Não seria possível tirar essa mágoa, esse espinho que você carrega?

— Mas como tirar isso, doutor?

— Talvez se você contar a ele, não precise mais vomitar. Não sei se você conse­gue, pois posso imaginar como isso é difícil e dolorido. Mas me sentiria um pés­simo médico se não lhe oferecesse essa alternativa. Você saberá o que fazer.

Ela baixou os olhos e ficou em silêncio. Não insisti. Sabia o peso daquela decisão. Saí do quarto e prescrevi a drogalhada de rotina. Antes lhe dei algumas orienta­ções gerais, bati um papinho e terminei com um sorriso.

Muitas vezes, a função de um médico é apenas permitir que nosso olhar seja um regato no qual possam desaguar dores profundamente escondidas. Somos, em muitas ocasiões, aqueles que podem diminuir a pressão que um segredo, uma mágoa ou uma saudade produzem no peito de quem sofre. Talvez essa seja mesmo a essência da arte médica, mas que acabou perdida nos labirintos lucrati­vos da tecnocracia. Poucas vezes, escutei durante a minha formação médica a respeito das possibilidades terapêuticas incríveis produzidas pelo silêncio respei­toso. Apenas Max me falou sobre isso, mas quando eu já estava fora dos bancos universitários.

Lembrei-me de uma cena acontecida em um hospital da cidade alguns meses antes. Uma enfermeira que trabalhava no centro obstétrico de um hospital privado me disse que estava vomitando sem parar desde o início da gravidez. Estava igualmente sem saber o que fazer. Essa enfermeira era extremamente suave e carinhosa, mas o hospital em que trabalhava era um dos piores exemplos de tec­nocracia, frieza e insensibilidade no trato com as gestantes. Ela me comentava isso com frequência, e sei o quanto isso a fazia sofrer. Diante das suas queixas, resolvi lhe perguntar:

— Lu, o que você está vomitando?

— Vomito qualquer coisa que coma — respondeu ela.

Olhei para ela com um olhar firme e decidido e repeti:

— Lu, o que você está realmente vomitando?

Ela paralisou seus belos olhos verdes no meu rosto e ficou em silêncio. Voltou seus olhos para baixo, e lançou-me um tímido sorriso. Deu meia volta e foi termi­nar suas atividades. Alguns meses depois, soube que ela havia tido seu filho de parto normal, e depois abandonou o hospital para se dedicar ao ensino de novas enfermeiras. Beatriz também possuía uma dor que a fazia vomitar, tentando com isso expulsar o que tanto a angustiava.

Na maioria das vezes, nos deixamos seduzir pelo brilho falso das modificações fugazes que as intervenções drogais ou autoritárias costumam produzir nos do­entes. Entretanto, algumas raras vezes, o médico pode se tornar o catalisador de transformações profundas e curativas se souber — e puder — tangenciar o núcleo afetivo que desequilibra a saúde de um paciente. Esse momento é sempre um grande acontecimento, porque muitas vezes o médico quer escutar, mas o paci­ente não está preparado para falar. Outras vezes, que eu penso serem a imensa maioria, os pacientes entregam ao médico uma “pérola”, em forma de sintomas ou histórias, mas este está despreparado para a escuta esclarecedora. A psicanálise nos afirma que “o que o paciente traz como sintoma é, em verdade, seu maior te­souro”, e esse adágio podemos comprovar na prática, nos relatos diários das infi­nitas histórias contadas. Quantas vezes a chave que desvenda o grande mistério de uma dor não estava ali, o tempo todo, escondida nas fissuras de um discurso dissimulador, mas pedindo para ser revelada?

No outro dia, voltei pela manhã ao hospital. Fui fazer a ronda dos pacientes inter­nados. Peguei a pasta de Beatriz e vi as letrinhas rabiscadas “C-A-J”. Cada uma delas com um risquinho vermelho. CAJ… Café, Almoço e Janta… Rabiscados! Então ela comeu!

Entrei no quarto de Beatriz e a encontrei vestida, sentada na cama. Estava com outro olhar. Sorriu timidamente quando entrei. Ao seu lado, o marido. Tinha um olhar duro, sóbrio, mas benevolente. Cumprimentou-me com um sorriso seco. A malinha pequena e simples estava ao lado da cama. Beatriz estava com um dis­creto batom vermelho, os cabelos molhados e um brilho no olhar. Olhou-me com um sorriso tímido, e disse:

— Acho que não preciso mais ficar no hospital, doutor.

Seu sorriso denunciava. Não precisei perguntar nada, apenas sorri para ela em cumplicidade velada. Nossos olhares se cruzaram mais uma vez e selaram aquele segredo.

— Podem me tirar esse soro? — disse ela, ainda sorrindo

— Claro, claro, Beatriz.

Saí da sala feliz, radiante. Ela disse! Ela teve coragem! Que mulher! A vida de um obstetra também tem esses dias legais.

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