Chorei lendo.
É longo; só leia se a injustiça e a violência dos poderosos machuca sua alma. Marx tinha razão e a história se repete como farsa. Também tem razão o articulista ao dizer que o objetivo dos fascistas não é destruir apenas a esquerda, mas as próprias conquistas civilizatórias da Revolução Francesa. A treva que se abate sobre o mundo é densa, mas seremos semente.
Calas hoje se chama Lula ou Luís Inácio. Melhor, os dois. Está preso nas masmorras de Curitiba sem nenhuma prova, apenas delações de torturados e a convicção de julgadores fanáticos. Tem a alma inocente como Jean Calas, e seus ossos quebrados pela injustiça. Moro é o inquisidor estúpido preconceituoso e cruel que receberá da história o repúdio, o nojo e o desprezo.
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Lula está preso, Voltaire está morto. Babacas!
Por Rogério de Campos, publicado em Le Monde Diplomatique Brasil
O caso Calas é uma das pedras fundamentais daquilo que tem sido chamado
sistema democrático ocidental. Quando o Brasil se coloca como parte da
vanguarda do processo regressivo que pretende destruir tal sistema e as
ambições do Iluminismo (Estado Laico, educação pública, liberdade de
expressão…), podemos dizer ser inevitável ter seu caso Calas, que, qual em
rituais esotéricos, deve ser conjurado e revertido simbolicamente.
O magistrado David Beaudrigue estava convicto: o jovem Marc-Antoine Calas fora
assassinado pela própria família. O pai, a mãe e um dos irmãos, e também a
empregada Jeanne Viguière e um jovem amigo da família, Gaubert Lavaysse: todos
que estavam na casa naquela noite do dia 13 de outubro de 1761 diziam que ao
descer da sala de jantar, que ficava no primeiro andar, para o térreo,
encontraram o corpo de Marc-Antoine no chão. Falou-se de um desconhecido
misterioso que fugira, sem ser identificado. Falou-se de uma punhalada. Mas o
médico retirou a gravata de Marc-Antoine e ali estava a marca no pescoço: o
rapaz fora enforcado ou estrangulado.
Na cidade de Toulouse, no sudoeste da França, Beaudrigue era mais que um
magistrado comum: era um capitoul, ao mesmo tempo investigador, promotor e
juiz. Usando sua autoridade, naquela mesma noite mandou para a prisão todos que
estavam na casa, inclusive o cadáver.
No dia 15, a verdade veio à tona: Marc-Antoine se suicidara. Seu irmão,
Pierre Calas, e Gaubert Lavaysse o encontraram enforcado. Desesperados,
chamaram o pai, Jean Calas. Os três desceram o corpo para o chão. A mãe,
Anne-Rose, ficou assustada com os gritos e pediu a Jeanne que fosse ver o que
acontecera. Só depois Anne-Rose foi até lá. Em meio ao desespero, Jean Calas
ordenou a todos que não contassem a ninguém que Marc-Antoine se suicidara.
Temia o castigo que era tradicionalmente imposto aos suicidas: seu corpo era
amarrado nu a uma grade (a claie d’infamie), arrastado pelas ruas da cidade,
apedrejado, até ser jogado no depósito de lixo da cidade.
Mas, apesar dessa confissão, o capitoul Beaudrigue continuava convicto:
a família, com a ajuda de Jeanne e de Lavaysse, assassinara Marc-Antoine.
Ordenou que todos continuassem presos. Outro capitoul, Lisle Bribes, aconselhou
ao colega um pouco de calma e questionou a regularidade daquela detenção.
Impaciente, Beaudrigue respondeu:
– Isso é comigo, o que está em causa é a religião (“Je prends tout sur
moi. C’est ici la cause de la religion”).
Beaudrigue era católico. A família Calas era protestante.
O capitoul aparentemente acreditava nos boatos que começaram a correr
pela cidade segundo os quais Marc-Antoine fora assassinado pela família porque
desejava se converter ao catolicismo.
O quanto havia de fanatismo religioso em Beaudrigue é difícil de
determinar. Durante alguns séculos, ele foi visto por historiadores como um
magistrado rígido, cruel e intolerante. Voltaire o considerava tudo isso e também
um patife, mas não tinha provas para esta última acusação. Em 1927, Anatole
Feugère, professor da Faculdade de Letras de Toulouse, pesquisando nos arquivos
da Corte de Justiça da cidade, descobriu documentos de um antigo processo que
revelaram o quanto a intuição do filósofo estava correta: os velhos papéis
demonstraram que Beaudrigue pouca coisa fazia que não motivada por subornos ou
interesses pessoais. Recebia dinheiro de donos de salões de jogos e prostíbulos
para fazer vista grossa. Tomava para si cargas de vinho apreendidas de
contrabandistas e, santarrão, até promovia orgias em sua casa de campo. Em uma
ocasião, usou sua autoridade para punir duramente o ex-amante de sua amante.
Mas, mesmo sem as descobertas do professor Feugère, seria fácil suspeitar
das motivações de Beaudrigue para ser tão cruel com os Calas. O poderoso cargo
de capitoul era uma conquista que se fazia no campo das relações políticas. O
mais poderoso ministro da França naquele momento era o conde de
Saint-Florentin, hostil aos protestantes. Beaudrigue trocava correspondência
com Saint-Florentin. Além disso, a elite de Toulouse era totalmente católica e
o poder judiciário em boa parte dominado pelos Penitentes Brancos (uma
irmandade católica). Matadores de protestantes costumavam ser celebrados como
heróis. Ser intolerante com hereges era ótimo para a carreira de um capitoul.
Em Toulouse, que fora uma das capitais da heresia cátara no século XII e
depois um centro importante do protestantismo na França, o catolicismo teve que
se impor a ferro e fogo. Contra os cátaros foram necessárias três cruzadas. Foi
em Toulouse que são Domingos criou a Inquisição. E em 1562 aconteceu um grande
massacre de protestantes, no qual foram mortas entre 3.000 a 5.000 mil pessoas.
Na época, todos os protestantes sobreviventes foram expulsos da cidade. O
aniversário do massacre, comemorado no dia 17 de maio, foi uma das principais
festividades da cidade até o século XIX. Nesse dia, como retribuição à luta da
cidade contra o protestantismo, o papa concedia indulgências a quem fosse rezar
na catedral ou na igreja de Saint-Sernin, na qual se encontra uma peça de
madeira entalhada que mostra um porco no púlpito com a legenda: “Calvino, o
porco, pregando” (“Calvin le porc, prêchant”).
A Inquisição de Goya
Em 1761, a população de Toulouse era formada por 50 mil católicos e 200 protestantes. Que conviviam mais ou menos pacificamente. O comerciante Jean Calas tinha negócios com católicos, os Calas tinham amigos católicos e a própria Jeanne, empregada da família há mais de 20 anos, era uma católica fervorosa. Mas haviam aqueles católicos mais que fervorosos, febris. Corria pela região a história de que os protestantes haviam se reunido em um sínodo, na cidade de Nimes, no qual decidiu-se que os pais e mães eram obrigados a matar seus filhos se esses tentassem mudar de religião. E os boatos diziam que Lavaysse fora enviado à casa dos Calas para ajuda-los a executar o filho.
Por mais absurdo que isso pareça, foi justamente essa história delirante
de uma conspiração protestante para matar Marc-Antoine a base da argumentação
da acusação:
“Calvino diz que todos os filhos que
violem a autoridade paterna, quer através do desprezo, quer da rebelião, são
monstros e não homens. E que, portanto, Nosso Senhor ordena que sejam condenados
à morte todos os que desobedeçam a pai e mãe. Calvino é de opinião que o filho
rebelde e desobediente seja morto”.
Calvino, segundo a acusação contra os Calas, teria se baseado em
Deuterônimo 21:18: “Se alguém tiver um filho rebelde e indócil, que não obedece
à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e não os ouve mesmo quando o corrigem,
então, seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos anciãos da sua cidade e
à porta do seu lugar, e dirão aos anciãos da cidade: ‘este nosso filho é
rebelde e indócil, não dá ouvidos à nossa voz, é um devasso e beberrão’. Então,
todos os homens da sua cidade o apedrejarão com pedras, até que morra”.
Os outros protestantes, de Toulouse e da região, ficaram escandalizados
com tal acusação. Denunciaram que o suposto sínodo em Nimes nunca acontecera e
que o documento em que Calvino exortara o assassinato de filhos rebeldes era
falso. Mas Beaudrigue não lhes deu atenção. Ele tinha outra preocupação: se não
havia qualquer prova de que os Calais haviam matado o filho era preciso ao
menos provar que havia um motivo para que eles o tivessem feito, provar que
Marc-Antoine de fato pretendia se converter ao catolicismo. E o capitoul não
tinha nem essas provas. Tinha boatos e tinha sua convicção.
Beaudrigue decidiu então lançar uma “monitória”, uma espécie de
chamamento para que pessoas que soubessem de algo sobre o caso aparecessem para
depor. Pela monitória, se alguém soubesse algo e não se manifestasse estaria
automaticamente excomungado. Em geral, as monitórias funcionavam: com medo de
serem condenadas ao inferno, as pessoas que tinham alguma informação corriam
para depor. Também em geral, as monitórias não costumavam especificar se
queriam depoimentos a favor ou contra os réus. Não era o caso dessa emitida por
Beaudrigue, claramente direcionada: queria ouvir quem soubesse algo da
conversão de Marc-Antoine, das ameaças que os pais faziam a ele, de uma reunião
em que se deliberou sua morte, daquela noite do dia 13 na qual “esta execrável
deliberação foi executada, fazendo ajoelhar Marc-Antoine, o qual, pela surpresa
ou pela força foi estrangulado ou enforcado” e, por fim, “todos os que saibam
quem são os autores, cúmplices, implicados, aderentes deste crime, que é dos
mais detestáveis”.
E aí apareceu de tudo, gente que viu Marc-Antoine em igrejas, rezando, e
até uma moça que se dizia ex-protestante e que garantiu que o rapaz não só se
convertera ao catolicismo, mas também a convertera (depois ficou claro que a
história era fantasia da garota, que sempre havia sido católica).
Um exemplo de depoimento:
“Massaleng, viúva, declarou que sua filha lhe contou que o senhor Pagès havia contado à ela que M. Soulié havia contado a ele que a senhorita Guichardet contara a ele que a senhorita Journu havia dito algo a ela que a fez concluir que o padre Lerraut, um jesuíta, tinha sido o confessor de Marc-Antoine Calas”. O padre Lerraut foi convocado para depor e demonstrou que a história não era verdadeira.
Portanto, não havia provas e os testemunhos eram bem frágeis. Mas
Beaudrigue tinha convicção e isso ele podia provar: ordenou que Marc-Antoine
tivesse um pomposo enterro como mártir católico. Juntou-se uma multidão, vieram
delegações de todas as ordens religiosas e todas as confrarias de penitentes.
Ou seja, a hipótese de que Marc-Antoine tivesse se suicidado havia sido
completamente descartada.
Condenados à morte na primeira instância, os Calas recorreram à segunda
instância, que era a Corte de Justiça de Toulouse. Mas ali também não havia
esperança: até porque diversos dos juízes eram da irmandade dos Penitentes
Brancos. Um dos juízes chegou a dizer às duas filhas de Calais (que não estavam
na casa no dia 13 de outubro, portanto não foram implicadas no caso): “Não
tendes outro pai agora, senão Deus”.
Ainda assim, os juízes vacilavam: também tinham a convicção da culpa,
mas viam que ela não estava demonstrada. Não havia provas. Então alguém teve a
ideia de julgar e condenar Jean Calas separadamente. Acreditavam que ele, um
pacato comerciante de 64 anos, não aguentaria as torturas que precediam a execução,
muito menos encarar o cadafalso: iria confessar e entregar seus cúmplices.
Às quatro horas da manhã do dia 10 de março de 1762, depois de passar a
noite na infernet (masmorra reservada aos condenados à morte) foi levado à
câmara de torturas. Dois padres ainda tentaram convencê-lo a converter-se ao
catolicismo, para assim salvar sua alma já que a vida estava perdida. Mas ele
se recusou.
Beaudrigue o esperava na câmara e anunciou que aquele seria o último
interrogatório. Calas foi torturado por horas, mas resistiu a todas as
tentativas do capitoul de arrancar dele uma confissão. Por fim, foi levado para
a praça de Saint-Georges, que já estava lotada pela multidão. O cadafalso
estava montado. Jean Calas foi condenado a ser morto na roda, uma das mais cruéis
formas de execução: a vítima é colocada sobre uma roda, seus ossos são
quebrados e ela fica ali, às vezes sendo comida viva pelos corvos e aves de
rapina, até que morra de dor ou que a autoridade tenha a misericórdia de dar o
golpe final. Beaudrigue fez mais uma tentativa, pareceu vacilar em sua
convicção e admitir que talvez outra pessoa tivesse assassinado Marc-Antoine:
– Calas, embora inocente, sabe talvez quais foram os autores do crime
cometido contra a pessoa de Marc-Antoine?
– Não sei.
Calas ficou duas horas na agonizando naquela roda, até que o carrasco o
estrangulou. Seu corpo então foi lançado a uma fogueira.
Conta-se que enquanto ele agonizava um padre chamado Bourges fez uma
última tentativa de arrancar sua confissão. E o Calas respondeu irritado:
– Padre?! O quê?! Também acredita que se possa matar um filho?!
Talvez um tanto desnorteados com a inesperada firmeza de Jean Calas, os
juízes liberaram os outros acusados dias depois. Pierre foi condenado a um
simulacro de exílio perpétuo: foi levado para fora de um dos portões da cidade
e então conduzido novamente para dentro da cidade, para o convento dos
dominicanos onde ficou sob vigilância até o dia 4 de julho, quando fugiu.
Voltaire vivia do outro lado da França, em Ferney, na fronteira com a
Suíça. Quando ouviu a história do protestante que matou o filho, chegou a fazer
piada a respeito. O filósofo aceitava como fato que Jean Calas era um fanático
que matou o filho porque este queria se tornar católico. Voltaire tinha tanto
desprezo pela intolerância católica quanto pela protestante.
Mas um comerciante de Marseille, que vinha de Toulouse e estava de
passagem por Ferney, contou a Voltaire a outra versão da história. O filósofo
ainda assim, resistiu a acreditar que os juízes pudessem ter errado. Escreveu a
um amigo que o crime de Calas lhe parecia pouco verossímil, “mas é menos
verossímil ainda que os juízes, sem qualquer interesse, tenham feito perecer um
inocente no suplício da roda”.
Voltaire começou uma espécie de investigação para chegar à verdade.
Mandou cartas para amigos que podiam saber mais do caso. “Quero saber de que
lado nesse caso está o horror do fanatismo”, diz em uma das cartas. Por fim, se
convenceu da inocência de Calas. E iniciou a épica campanha para que a verdade
viesse a público. Seu célebre Tratado sobre a Tolerância (Traité sur la
tolérance à l’occasion de la mort de Jean Calas – 1763) é parte dessa campanha
que alcançou a vitória no dia 9 de março de 1765, quando o Conselho Real, em
Paris, reabilitou Jean Calas e sua família, que foi indenizada pelo rei.
Exatamente três anos depois da sentença que condenou Calas à morte.
O ministro Saint-Florentin tratou de se desvincular discretamente do
caso. Usou outra falha de Beaudrigue, em outro caso, como desculpa para destituí-lo.
Beaudrigue enlouqueceu. Tentou suicídio duas vezes. Na segunda tentativa foi
bem-sucedido.
Voltaire tinha 70 anos quando ouviu falar de Calas pela primeira vez. Já
havia feito sua fama como filósofo. Mas o caso daquele comerciante de Toulouse
revolucionou sua biografia: ele se tornou um herói, um campeão na defesa dos
injustiçados. E se tantos bustos dele enfeitam bibliotecas até hoje é menos por
causa de Cândido que por Calas. Nove de março de 1765 passou a ser o jour de
gloire do iluminismo francês.
Para diversos historiadores, o caso Calas marca o início da campanha
contra a pena de morte e contra a tortura. O caso virou o grande monumento ao
princípio jurídico da Presunção da Inocência. Tal princípio já estava presente
no Corpo do Direito Civil, de Justiniano: “Ei incumbit probatio qui dicit, non
qui negat” (“Àquele que disse e não ao que nega incumbe à prova”), mas foi mais
ou menos esquecido durante a Idade Média, que talvez tenha começado a acabar
quando o cardeal e jurista francês Jean Lemoine escreveu “item quilbet
presumitur innocens nisi probetur nocens” (“uma pessoa é considerada inocente
até ser provada culpada”).
É também em 1765, ano da reabilitação de Calas, que William Blackstone
publica Commentaries on the Laws of England com seu famoso ratio: “é melhor que
dez culpados escapem à condenação que um inocente sofra”. Podemos pensar que
isso foi coincidência, resultado da Inglaterra estar mais adiantada em seu
caminho rumo à democracia. Mas é certo que é Calas quem está na memória dos autores
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) quando eles escrevem o
artigo 9: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se
julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua
pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”.
É claro que os Judiciários do mundo inteiro seguiram cometendo as
injustiças que lhes são próprias. Mas a passou a existir aquela monumental
referência do que é certo.
O caso Calas é, portanto, uma das pedras fundamentais daquilo que tem
sido chamado sistema democrático ocidental. Assim, quando o Brasil se coloca
como parte da vanguarda desse processo regressivo que pretende destruir tal
sistema e as ambições do Iluminismo (Estado Laico, educação pública, liberdade
de expressão…), poderia se dizer que era quase inevitável ter seu caso Calas,
que, qual em rituais esotéricos, deve ser conjurado e revertido simbolicamente.
Como se o caso precisasse ser refeito para que todas as consequências que teve
possam ser revertidas. Então a tragédia de Toulouse volta a acontecer em
Curitiba, na forma de farsa.
Como em Toulouse, o capitoul Sergio Moro não tem provas que sustentem a
condenação de Lula. Moro, como Beaudrigue no passado, sequer consegue provar
que há um crime. Existem os depoimentos, alguns delirantes, alguns maliciosos e
interessados, alguns depoimentos, em Toulouse, arrancados à custa de ameaças de
excomunhão, vários em Curitiba arrancados às custas de torturas (e não é
tortura manter um cidadão preso por meses até que ele confesse a suposta culpa
de outro cidadão?).
Mas há a diferença fundamental para o primeiro caso Calas: agora ninguém
perde de vista de que se trata de uma farsa. Sabem disso tantos os juízes do
Supremo que se colocam como reféns dos ritos quanto o colunista de jornal para
quem a condenação faz justiça ainda que o Lula não seja culpado dos crimes que
a motivaram. Sabe disso até mesmo o nerd boçal que repete eufórico “Lula tá
preso, babaca!” e comemora a prisão como o fanático torcedor comemora um gol de
mão.
Chega a ser injusta a acusação de hipocrisia feita aos protagonistas
dessa farsa. Porque eles não prestam tal respeito à virtude. Tudo está à vista,
porque precisa ser à vista: só assim serve como aviso. O que demorou, talvez, a
ficar claro é que o objetivo, como já se viu, não foi apenas impedir o que
aparentemente era inevitável: a reeleição do ex-metalúrgico. Mas impedir a
possibilidade de eleição de um metalúrgico. Não apenas destruir o legado do PT,
ou da Esquerda, ou do Getulismo, mas destruir também o legado da Revolução
Francesa.
E nós, da periferia do capitalismo, que tínhamos várias razões para
duvidar da pertinência do termo Civilização Ocidental, vemos a Democracia, que
mal tinha posto os pés aqui, voltar para o navio e partir.
* Rogério de Campos é editor,
tradutor e autor dos livros Revanchismo, Dicionário do Vinho (Prêmio Jabuti) e
Imageria (Prêmio HQ Mix). Seu livro mais recente, Super-Homem e o Romantismo de
Aço (Ugra Press, 2018) fala da relação do gênero super-heróis com o fascismo