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Road Story

Nos anos 90 eu estava em Camboriú – antes de se tornar a cidade cafona e cheia de novos ricos de agora – com a minha família. Na época meus filhos tinham 8 e 5 anos. Resolvemos voltar para casa depois do almoço, no final das férias de 1 semana no litoral catarinense. Aproveitamos a manhã para tomar o último banho de mar, depois almoçamos e tomei um banho para começar a viagem.

Bem, este foi o problema. Como na época eu tinha um cabelo farto e rebelde, percebi que se saísse para dirigir com o cabelo molhado ele se tornaria um emaranhado obsceno de cabelos, com cada fio apontando para uma localidade distinta do universo. Para evitar isso, resolvi colocar uma touca cirúrgica que guardava comigo para secar o cabelo. Dito e feito: coloquei as malas no carro, ajeitei as crianças e saímos para a estrada, usando minha touca cirúrgia para secar o cabelo.

Alguns quilômetros adiante, já próximo de Florianópolis, percebi ao longe um acidente na estrada. Era possível ver uma fumaça saindo dos veículos envolvidos no acidente enquanto uma fila de carros se formava, diminuindo a velocidade para assistir a cena. Quando me aproximei, percebi que só havia policiais no local e nenhuma ambulância. Fiquei preocupado que houvesse feridos que estariam aguardando a chegada de auxílio e resolvi me apresentar para ajudar. Imediatamente parei ao lado do policial que coordenava o trânsito e gritei:

– Hei, policial!! Eu sou médico. Vocês precisam de alguma ajuda?

O patrulheiro se aproximou do vidro do carro e ficou me olhando por alguns instantes. Depois de um tempo respondeu laconicamente:

– Não precisamos de ajuda. Não houve feridos, apenas danos materiais. Obrigado.

Só me dei conta quando Zeza começou a rir. Ela disse: “O guarda deve ter pensado que tu és um maluco que pensa ser uma mistura de médico com Batman”. Foi então que me dei conta que estava usando aquele bizarro gorro cirúrgico e que o policial teria todo o direito de imaginar que eu era um psicótico que sai de carro pelas ruas procurando avidamente casos para atender.

Talvez minha calvície tenha sido uma forma que Deus criou para eu não pagar mais estes micos

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Destino

Durante muitos anos pedi ajuda ao ecografista que trabalhava no mesmo prédio do meu consultório para casos complicados e urgentes. Ele era muito bom e tinha um especial talento para adivinhar o peso dos bebês. Tínhamos diferenças políticas absolutamente antagônicas, o que não me impedia de admirar a paixão que tinha por sua arte.

Diante da necessidade da minha nora fazer uma ecografia pedi que o procurasse, por confiar em seu talento. Ela ligou para lá, mas não conseguiu marcar a ultrassonografia com este colega pois me informou que ele faleceu há 3 anos.

Liguei para sua clínica e falei com sua esposa, atual coordenadora. Ela disse que foi traumatismo craniano, num acidente tolo de motocicleta, sua paixão.

Tinha a minha idade. Um bom colega e um excelente profissional.

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Careca

Eu já falei muitas vezes que nasci sem o chip do “amor aos animais”, e é verdade. Não tenho este tipo de sentimento de proximidade com os bichos e não consigo suportar em minha retina imagens antropomorfizadas de cães e gatos. Não os vejo como “crianças”, anjinhos, amigos ou parceiros. São bichos, e tenho certeza que eles gostam do que são. Não gosto de promiscuidade, gente dormindo com cachorro ou bicho de banho tomado com perfume.

Há muitos anos escutei uma frase de um veterinário homeopata que me marcou muito: “Consigo perceber com facilidade as vantagens emocionais de manter os animais domésticos próximos de nós, em especial para os velhos e as crianças, mas tenho dificuldade em encontrar vantagens que eles possam ter com a nossa presença”.

Isso dito, e reconhecendo minhas limitações, eu por vezes me questiono o que seria uma boa vida para um desses animais. Será que um gato castrado que faz companhia para uma senhora viúva em um apartamento é… “feliz”? E quanto a um cachorro que mora no pátio de uma casa, será ele mais feliz que um primo seu que mora na rua? O Vagabundo era mais infeliz que a Lady? Deveria invejá-la ou ter pena de sua prisão maravilhosa?

Penso nisso quando lembro da cadela da Comuna, a matriarca de nossa pequena matilha. Seu nome foi dado pelo meu neto Oliver em homenagem aos seus dois avós homens: “Careca”. Foi encontrada há muitos anos vagando pela nossa rua, que é um tradicional ponto de “desova de cães”. O esquema é conhecido: Chega o carro, diminui a marcha até parar, abre-se a porta do carona e ali o bichinho é deixado.

Para o azar da Careca não apenas foi deixada por sua antiga família, mas ao ser largada na rua foi atropelada, quebrando o quadril. Quando foi encontrada (horas? dias?) depois pelo nosso caseiro Márcio ela carregava apenas uma fina camada de pelo sobre uma montoado de ossos. Magra, feia e manca. Estava nas últimas.

Que fazer? Bem, o que fizemos foi acolhê-la e tratar seus machucados. Posteriormente, Luiz Augusto a levou para ser castrada. Acabou ficando na Comuna como guardiã, parceira de brincadeiras das crianças e caçadora de quero-queros. Hoje é uma senhora feliz, bem alimentada – apesar de continuar manca pelo acidente.

Olho para a Careca como um símbolo de resiliência e de fé. Depois do abandono e do acidente que lhe causou sequelas ela tinha apenas um destino sombrio à frente. Todavia, acabou recebendo como prêmio o “Éden Canino”, vivendo no melhor lugar onde um cão jamais sonharia viver. Livre, solta, independente, sem coleiras, sem espaços exíguos, sem opressão e sem regras. Careca tem a felicidade que eu gostaria de ter. Carrega no corpo a marca de sua vida de desventuras, mas conseguiu vencer a despeito de suas tragédias.

Está pronta para reencarnar como uma menina na próxima vida. Espero apenas que ninguém tenha a ideia de lhe colocar este apelido.

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Sorte e Azar

Há mais de quatro décadas eu estava de plantão como interno (estudante) no Pronto Socorro Cruz Azul em Porto Alegre quando, ao voltar de um atendimento domiciliar na madrugada da virada do ano, nos deparamos com uma cena insólita quando nossa ambulância fez a curva e entrou na Rua Duque de Caxias. Sobre o viaduto Loureiro da Silva jazia, ainda balançando, um Fusca de cabeça para baixo.

Quando o avistamos, as rodas ainda giravam lentamente, enquanto o capô do carro se apoiava no chão, parecendo uma tartaruga derrubada por uma onda mais forte

Paramos nossa viatura a uma certa distância olhando aquela imagem bizarra que contrastava com a rua totalmente deserta nos minutos que antecediam o nascimento do primeiro sol da década de 80. Não havia outro som senão o girar das rodas que desaceleravam aos poucos

Subitamente, duas mãos aparecem na janela do carro tateando o solo e tentando sair. Descemos da ambulância para ajudar, mas antes de chegarmos o sujeito já havia saído totalmente. Colocou-se de pé de forma cambaleante e ficou claro que estava embriagado. Tipo, muito. Vestia uma roupa toda branca combinando com o Fusca da mesma cor.

Há mais alguém no carro? perguntei.

Só eu, disse ele enrolando a língua

E você está bem? indagou meu colega.

Claro, exclamou sorrindo. Estou muito bem, só um pouco tonto.

Tonto, sei. Bebeu todas e saiu dirigindo. Podia ter morrido. Só então pude ver que sua calça branca estava rasgada na altura da coxa. Pedi licença e me aproximei para ver se não havia se cortado.

Sente alguma dor? Aqui na perna?

Nada, está tudo bem. Pode seguir seu caminho, vou pegar um táxi e depois volto pra buscar o carro.

Ele não fazia ideia do que estava falando. Imagine deixar um carro virado de “ponta cabeça” na rua e voltar para buscar mais tarde.

Posso ver sua perna?

Ele aquiesceu e eu olhei pela abertura deixada pelo rasgo na calça. Nos meus poucos anos de escola médica nunca tinha visto aquilo. Havia um corte de uns 15 cm de comprimento e muito profundo, mas com pouquíssimo sangue. Uma boca aberta com bordas precisas que pareciam ter sido feitas por bisturi.

Você não está sentindo nada mesmo na perna?

Eu me olhou com assombro e respondeu:

Já disse que não. Acaso encontrou alguma coisa aí?

A cena me trouxe imediatamente à memória outra, esta descrita em um livro muito especial: “O Século dos Cirurgiões“, de Jurgen Thornwald. No livro ele descreve a noite em que Horace Wells participava de uma festa em Hartford, no ano de 1844, onde a atração principal da noite era aspirar óxido nitroso até se espatifar no chão de tanto rir. As festas com “gás hilariante” eram comuns naquela época. Nesta em especial, Horace estava ao lado de Sam Cooley quando este caiu do tablado e bateu com a canela na quina de uma cadeira. Quando ele, que era dentista prático, examinou a perna de Sam, encontrou um rasgão que pela descrição parecia ser do mesmo tamanho deste eu testemunhava no motorista do Fusca. Tanto o ferimento do rapaz saindo da festa de Réveillon quanto aquele de meados do século XIX – que estimulou o surgimento da anestesia inalatória – não produziram dor alguma em suas vítimas, tamanha a impregnação de substâncias estupefacientes.

O mesmo tipo de corte e a mesma anestesia. Mais do que uma ação direta sobre as terminações nervosas atingidas, era a alteração mental química quem produzira a insensibilidade dolorosa. Mas, se o cérebro é capaz dessa proeza, que mais seria capaz de fazer para suprimir a dor? Alguns anos depois eu veria tais “milagres” ocorrendo no parto. Pedi que o jovem ébrio entrasse na ambulância para que o levássemos até o Pronto Socorro Municipal, mas não sem uma notável resistência da parte dele. “Não sinto nada; estou bem!!!

E assim começou a década de 80, com um ensinamento muito claro: “Caso capote seu carro, certifique-se antes que haja uma ambulância bem atrás de você“.

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