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Celebridades

Para Roma com Amor

Creio ser curiosa, mas não surpreendente, a exaltação de uma moça que, por obra do destino, foi levada à ribalta das redes sociais por não ceder seu lugar no avião a uma criança que chorava pedindo acesso à janela. Diante da celeuma criada, ela foi o foco dos debates na Internet por alguns dias. Fotos suas de biquíni circularam pelos portais, foi comparada com a “fogueteira” do Maracanã (quem lembra?), deu entrevistas, debateu com a mãe da criança, fez declarações ao estilo “quem me conhece sabe” e viu multiplicar a grande moeda dos tempos atuais: o número de seguidores. Em outros tempos já teria em mãos um contrato da Playboy, as fotos seriam feitas num simulacro de avião e a manchete seria algo como “Viaje com ela na janelinha e veja o que ninguém viu”.

E tudo isso por quê? Ora, porque ela esteve em evidência, foi comentada, seu rosto foi visto, suas atitudes reverteram em visualizações – inobstante não haver boas razões para isso. Numa sociedade voltada ao espetáculo, é claro que aqueles que se destacam têm vantagem. As razões do destaque são desimportantes, e funcionam apenas como alavanca para o que é realmente significante: sobressair-se em meio à multidão de iguais.

O mesmo fenômeno ocorre na música. Quando um nome chega a ganhar notoriedade, muito se fala da trajetória da menina pobre até o estrelato, da sua fama, da fortuna, das novas rotinas e do número inacreditável de seguidores adquiridos nas redes sociais. Pouco ou quase nada se fala de sua arte, restrita à análise de poucos especialistas que procuram situar sua música em alguma corrente e dar a ela algum sentido e valor. Para a maioria, a identificação vai ocorrer por sua história, o caminho que precisou percorrer, a vida que tinha, os luxos da vida atual, seu coração simples, os amigos de outrora e a família.

Nossos heróis atuais não são aqueles que fazem algo, nem os que perseguem objetivos claros na ciência, na arte, na política, no esporte ou na literatura, mas pessoas tocadas pela graça de uma oportunidade fortuita. Um foguete no estádio, uma briga pela janelinha, uma roupa ousada na faculdade, uma participação no BBB já seriam suficientes para alçar o sujeito ao Olimpo da nossa atenção e admiração.

Woody Allen brinca com essa ideia no filme de 2012 “Para Roma com Amor” em que Roberto Benigni é agraciado com uma fama súbita por ser confundido com um ator famoso. Com isso é alçado à condição de celebridade por um tempo e passa a desfrutar de suas benesses, mesmo sem tem noção das razões que levaram a isso. No entanto, sua trajetória pela fama foi fugaz, pois logo depois outro cidadão desconhecido foi eleito para esta posição. Seu personagem encarna os milhões de celebridades instantâneas e fugazes da pós-modernidade, cuja fama sequer pode ser explicada.

Esta característica dos tempos atuais – a exaltação das individualidades – é uma marca dessa era de valores escorregadios, caracterizada pelo hiper individualismo que coloca o êxito pessoal – e a fama decorrente – como o ápice das aspirações humanas. O sucesso é algo que está no destaque recebido pelo sujeito, e não em suas obras e feitos. Entretanto, como tudo nesse mundo cíclico, esse modelo deverá um dia atingir seu desgaste e seu fim. Com o tempo veremos valor nos sujeitos cujas obras sejam em benefício de todos, em qualquer campo do conhecimento, e não na valorização de personagens vazios, meros produtos da indústria do entretenimento.

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Trabalho

A mensagem que fica, a partir da ingênua resposta da menina é: você não precisa ser uma mera empregada (comissária de bordo); pode ser uma empresária e dona de um avião. Essa é a moral que subjaz, o subtexto que brota das palavras da menina, travestida de empoderamento feminino. Troque “avião” por qualquer setor do capitalismo, como loja, fábrica, empresa, escritório, etc… e verá que existe um nível de valoração que vai do mais baixo (o trabalhador, a comissária, o empregado) até o capitalista (o dono do avião, o proprietário da empresa, o dono da loja), como se trabalhar e ter uma função (como o simples proletário e a comissária) fosse menos nobre, menos válido ou menos importante do que ser um capitalista dono das coisas, cuja virtude fundamental é possuir grandes volumes de dinheiro, cuja origem é sempre desconsiderada nesta equação.

Pior: as palavras da garota escondem a verdade, vendendo a imagem ilusória de que uma menina pode vir a ser dona de um avião “se ela se esforçar muito“, quando a realidade material mostra que os donos de avião – e de fábricas, de terras, de grandes lojas, etc – pouco se esforçaram na vida em comparação ao trabalhador comum – como qualquer um de nós. Apesar de exceções notáveis e pontuais, são pessoas cuja riqueza vem de suas famílias, de sua classe, de seus contatos e do acúmulo de capital que as gerações anteriores produziram. Portanto, a frase contém uma glamorização do capitalismo e dos bilionários, enquanto insiste na desvalorização do trabalho de todos nós, o qual é tratado como algo menor, menos valoroso e menos interessante quando comparado com o charme de ser bilionário…

Para que fique mais fácil entender, se esse avião for da Virgin Airlines a dona dele se chama Joan Templeman, esposa de Richard Branson, e ela se esforçou durante a sua vida muito menos do que qualquer comissária de bordo. Essa é a questão de querer ser “dono” ao invés de ser “trabalhador”. Para trabalhar é preciso esforço; para ser “dono” nem sempre.

Para descontrair:

A enfermeira sorridente apresenta o bebê recém nascido à sua irmãzinha pelo vidro da maternidade. Ao lado da menina o pai sorri para a moça com o bebê nos braços e diz para sua filha:

– Sabia que se você estudar bastante também poderá ser uma parteira?
A menina põe as mãos na cintura, empina o queixo e então responde:
– Se eu quiser posso ser a dona do hospital!!

Os demais pais, que aguardavam ansiosos para ver seus bebês na sala de espera, abraçam e consolam o pobre pai que cai em prantos enquanto diz entre soluços: “onde foi que dei errei? O que fiz de tão errado?”.

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A nave Brasil

Depois de 25 anos como “caixeiro viajante” da humanização do nascimento um fato novo ocorreu esta semana: pela primeira vez (provavelmente última) eu viajei de primeira classe.

Claro que foi uma feliz coincidência. Meu voo de volta ao Brasil foi cancelado por causa do furacão Dorian e a minha companhia original foi obrigada a me realocar para que conseguisse chegar ao Brasil a tempo de comemorar os 90 anos do meu pai. A única solução encontrada foi evitar o foco das tempestades e fazer uma viagem para o norte, até Washington DC, e de lá seguir para São Paulo. Diante da inexistência de alternativas, aquiesci.

Para minha estupefação, ao entrar no site para marcar os assentos no novo percurso descobri que havíamos sido colocados na primeira classe.

Achei melhor não acreditar para evitar falsas expectativas mas a realidade acabou me vencendo. Os cartões de embarque não mentiam. Entramos com toda a pompa e circunstância na frente de todo mundo e quando vi o cubículo a mim reservado lembrei quando, há uns 10 anos, vi Gisele Bündchen – que viajava no mesmo voo que eu – na acomodação que agora eu ocuparia. Que emoção!!!

Claro que a atitude da companhia se deu porque o voo estava lotado e só estes assentos ainda estavam livres. Era a única forma de chegarmos ao Brasil no dia determinado. Eu não me furtei de agradecer ao Sr. Dorian pelo presente, mesmo com a inevitável culpa de saber que a dor de tantas pessoas atingidas pelo furacão nas Bahamas havia se transformado numa sorte inusitada para mim.

Ao olhar para o fundo do setor da primeira classe eu percebi uma senhora vestida de forma muito simples, como eu. Pensei “deve ser outra sortuda“. Claro que fui vítima do preconceito estrutural que nos contamina, mas não pude evitar. Quando ela se levantou para ir ao banheiro durante a decolagem – e foi contida pelos comissários – a minha certeza se acentuou. Talvez fosse sua segunda viagem de avião, mas certamente a primeira nesta classe. Assim como eu, estava em um mundo que não lhe pertencia.

Foi só depois de algumas horas que eu passei a me dar conta de que a situação, apesar de insólita, era muito familiar. Inobstante o fato de que tal regalia nunca tivesse ocorrido a mim, a situação tinha inúmeras correlações com o mundo em que vivo.

Era muito claro que eu não merecia estar ali; minha presença foi causada por um mero acidente. Fui colocado naquela situação sem esforço pessoal; não havia mérito algum em estar num lugar melhor que o das outras pessoas daquele avião. As regalias, a comida, o licor Bailey’s (não pude evitar), a cama reclinável, a “nécessaire” chique, o sorvete, o tratamento diferenciado da tripulação… nada daquilo era merecido. Não havia justiça em ser tratado de forma tão…. diferenciada.

Por outro lado, um pensamento absurdo me assaltava. Por várias vezes eu imaginava que… afinal… se isto chegou até a mim… muito provavelmente… de alguma forma tortuosa e indecifrável… eu merecia.

(Não pude conter um sorriso lembrando da menina gritando histericamente: “SE EU ESTOU AQUI É PORQUE EU… ME – RE – CI !!!)

Criava na minha cabeça mil fantasias sobre um valor pessoal que só eu enxergava. Pensava que a “justiça divina” era sábia e premiava com justeza. Entretanto, por mais que minha imaginação flutuasse sem controle, eu sabia que era tudo mentira, tudo falso, tudo engano.

Foi o Dorian, somente ele. Nenhuma justiça atrasada, nenhum mérito, nenhum pagamento por valor, nenhuma vantagem merecida. Apenas a coincidência fortuita de uma viagem e um fenômeno meteorológico.

Outra sensação curiosa – que eu procurava afastar com humor caipira – era imaginar ser realmente diferente dos passageiros que estavam na classe “popular”. Olhava lá para trás do avião e brincava com Zeza dizendo “coitados desses pobretões“. Fazia troça dizendo que nunca mais viajaria naquele “poleiro” lá do fundo e que o meu lugar de direito era onde estava agora. “Finalmente estou entre os meus iguais“, sorria em pensamento .

Nesta viagem fui transportado magicamente para a nave Brasil. Como na nossa realidade cotidiana, todos estavam no mesmo avião, haviam embarcado no mesmo lugar e desceriam no destino final, inexoravelmente. Alguns, como eu e Zeza, recebemos por pura sorte um presente que, por sua vez, causou desgraça a centenas ou milhares de pessoas atingidas por uma pequena tragédia, mas isso não nos fez deixar de brindar com o Champagne oferecido. “Não é minha culpa“, pensei eu…

Por outro lado, mesmo o caráter absolutamente fortuito de minha “posição social” não me impediu de fantasiar a respeito de uma suposta diferença que tinha com os outros passageiros. A sensação de ser alguém, superior e “especial” é muito mais inebriante do que qualquer Scotch que se possa beber.

Bastou colocar o pé para fora da aeronave e o encanto da Cinderela se desfez. Imediatamente depois de sair já estávamos na fila do passaporte como todo mundo e meu sonho encantado de primeira classe se tornou apenas lembrança, de onde restou uma boa história. Todavia, esta situação me fez pensar nas injustiças existentes por trás de muitas das nossas hierarquias sociais, onde os méritos são, com frequência, obra do acaso e dos desígnios misteriosos da deusa Álea, a divindade dos fatos aleatórios, na mitologia particular do meu irmão Roger.

Saí do avião com a ideia de que, no fundo, as diferenças que observamos em nossas vidas são artificialismos e muito mais simbólicas do que práticas e reais. O que se vende na classe alta é a ilusão de ser diferente e a fantasia de ser especial. Em verdade, saímos do mesmo lugar e chegamos no mesmo destino, em uma viagem curta, onde o que mais importa é o que carregamos em nossa bagagem de amores.

Como a vida.

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