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Dilemas

Ex-estrela adolescente da Disney, Hilary Duff, acaba de ganhar o quarto filho em um parto domiciliar

Escrevi um texto há muitos anos chamado “Dilema Médico” que abordava a questão das difíceis escolhas pelas vias de parto. O texto, depois de vários anos, se mantém atual, pois o corpo das mulheres ainda é um território sob disputa. O que lá escrevi contém as mesmas perspectivas que até hoje são relevantes. Entretanto, mesmo que o debate entre os ativistas tenha avançado, o olhar jurídico continua infectado pelo mito da transcendência tecnológica, conforme descrito por Robbie Davis-Floyd há mais de 30 anos. Ou seja: se há um dilema que paira sobre o momento maiOu seja: se há um dilema que paira sobre o momento mais adequado e seguro de intervir na fisiologia do nascimento, objetivando salvaguardar o bem-estar de ambos – mãe e bebê, também é evidente que para os médicos (e também os complexos médico-hospitalares) a intervenção ostensiva se tornou a forma prioritária de atenção por ser a forma mais segura… para quem o assiste.

Há 40 anos eu dizia que a cesariana se tornava a rota de fuga com mais segurança para os obstetras, e as perseguições a quem se opunha à tendência de artificialização do parto ameaçavam a prática do parto normal. A frase que eu escutava à época, por parte dos professores, era: “Uma cesariana permite ao obstetra sair da sala de parto com a cabeça erguida; um parto, nem sempre”. Uma intervenção sobre o corpo das mulheres, necessária ou não, garantiria a honra e a consideração sobre o profissional; uma ação mais moderada ou conservadora acrescentaria riscos inequívocos para os cuidadores. Assim, o lema dos profissionais, de forma consciente ou inconsciente, se tornou: “na dúvida, passe o bisturi e salve a sua pele”. Todavia, quem poderia julgar profissionais que, diante dos dilemas de um nascimento, pensam na sua carreira, fé pública, profissão e filhos?

Desta análise surgiu a convicção que o debate sobre parto nas sociedades ocidentais não pode se esgotar nas questões científicas. “Parto faz parte da vida sexual de toda a mulher”, como dizia Michel Odent, e se a sexualidade é uma questão política, o nascimento também o será. Enquanto a sociedade não pressionar o judiciário para uma visão mais racional e científica – abordando os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres de forma abrangente – as decisões serão mediadas por esse imperativo intervencionista, até porque esta perspectiva interessa à corporação médica. Uma cesariana é sempre a vitória da técnica sobre a natureza e, por conseguinte, terão supremacia e importância social garantidas aqueles que controlam essa técnica.

De uma certa forma a cesariana se mantém alta como tendência porque ela está em consonância com os interesses dos profissionais da medicina e sob o controle do judiciário, inobstante o fato de não existirem estudos que justifiquem sua alta incidência e se avolumam as pesquisas que apontam seus múltiplos problemas, dos riscos cirúrgicos, anestésicos e hemorrágicos até as questões relacionadas ao microbioma dos bebês e seu desenvolvimento intelectivo. Entretanto, tudo isso ocorre porque ainda não há massa crítica sobre o tema em nossas sociedades ocidentais; não existe a suficiente consciência entre as mulheres sobre a expropriação de seus partos, a retirada do nascimento do seu âmbito de decisão e a diminuição da importância da família sobre os valores que cercam um nascimento. Para que não haja revolta, elas são mantidas na ignorância por interesse de quem controla o nascimento e seus significados.

* a partir de uma conversa com Braulio Zorzella

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O abuso – das calcinhas aos bisturis

Gerald Thomas Corte

Nos últimos dias fomos assaltados por uma imagem que até poderia ser chocante e agressiva não fosse a televisão a nos escandalizar todos os dias e banalizar os abusos. Entretanto, tivesse acontecido há alguns anos e isso seria intolerável para a moral e os bons costumes. Na foto que circulou pela Internet, um conhecido dramaturgo brasileiro (apesar do nome estrangeiro) coloca as mãos por debaixo do vestido exíguo de uma – aparentemente – constrangida apresentadora que participava de um programa de televisão. A cena é tão grosseira que até parece uma montagem previamente combinada, tamanha a liberalidade com que o artista se desvencilha das mãos da modelo e tenta alcançar as peças mais íntimas do seu vestuário.

Tudo é permitido na cena contemporânea. Para alcançar o sucesso e a fama parece que o limite tornou-se obscuro e esfumaçado. Numa sociedade de “ninguéns” um alguém que retira despudoradamente a calcinha de uma modelo parece alcançar uma merecida notoriedade. A fotografia bizarra chamou a atenção da mídia e de inúmeros articulistas, das feministas aos cronistas de cotidiano, todos condenando a ação violenta e grosseira levada a efeito durante a sessão de autógrafos do citado artista.

Por outro lado, muito se falou sobre o descaramento e a permissividade do tal ato, e pouco se falou do terreno fértil que a cultura contemporânea cria para esta ação. Se a atitude do cabeludo artista é deplorável, e tem sido por todos condenada, resta a pergunta que não quer calar: porque é tão fácil acessar o corpo de uma mulher?

Difícil responder, mas eu temo que esta questão fique restrita à discussão da exposição excessiva do corpo e das formas de uma mulher desejável, e das consequências que este oferecimento parece produzir nos homens. É certo que a provocação erótica de uma mulher que vende seus atributos físicos para o uso da fantasia alheia não significa, em hipótese alguma, a liberação de acesso à sua intimidade. Se a atitude agressivamente erótica dela pode receber alguma crítica de setores mais moralistas da sociedade, não vejo possibilidade de aceitar qualquer invasão do sagrado território de seu corpo com a justificativa de que “ao vestir-se assim estava autorizando o abuso”. Chega desse tipo de discurso, pois que ele está velho demais para continuar sendo usado.

Entretanto, eu gostaria de falar de outros abusos contra o corpo das mulheres. Há mais neste abuso do que simplesmente uma mão boba explorando uma calcinha, e acho que é oportuno que abordemos esta questão de frente. Para mim, que milito na área da humanização do nascimento, o “levantar de saias” deste senhor é uma agressão menor se comparada aos abusos diários e repetidos contra as mulheres perpetrados por uma atenção ao parto que viola a segurança de seus corpos.

O índice de cesarianas no Brasil chegou a números inaceitáveis. Mais da metade das mulheres deste país é submetida a uma grande cirurgia para a extração de bebês, muitos deles antes de estarem minimamente adaptados à vida extrauterina. As taxas de prematuridade explodiram no país, com consequências que podem se alastrar por toda a vida deste ser que está nascendo. Nossa invasão irrefletida ocorre à despeito de milhões de anos de processo adaptativo que capacitaram as mulheres para um nascimento fisiológico. Centenas de estudos e pesquisas abrangentes já foram realizados sobre esta questão e todos confirmam que a cesariana é muito mais perigosa e danosa para a segurança de ambos, mãe e bebê. Mesmo assim, e apesar das comprovações do risco aumentado, a incidência continua aumentando. Por quê? Qual a razão para continuarmos aceitando tanto abuso?

Se nos escandalizamos com a atitude obscena, despudorada e invasiva realizada contra a modelo de pernas saradas, por que não ocorre o mesmo com as intervenções abusivas nos corpos roliços e lustrosos de grávidas, submetidas diariamente – e aos milhares – a procedimentos invasivos e perigosos? Mais ainda: Se consideramos inaceitável que o ato deste artista seja esquecido, e considerado apenas um “arroubo de liberalidade em uma sociedade histérica”, ou quem sabe “uma brincadeira inconsequente de uma mídia para idiotas”, porque continuamos a fechar os olhos para a violência de corpos retalhados sem necessidade para satisfazer os desejos de controle e poder sobre as gestantes e seus corpos? Porque não produzimos em nós a mesma sensação de enojamento que o abuso na moça bonita produziu?

Minha resposta não é que os homens e as mulheres ainda se calam, ainda se fecham. Não há vozes suficientes para fazer a indignação das redes sociais virar um clamor por respeito, verdadeiro e eficiente. Os mesmos corpos que são vendidos ao lado de cervejas não conseguem se mobilizar para exigir que a inviolabilidade do corpo de uma mulher seja um fato social.

Por enquanto só escutamos ruídos baixos, ranger de dentes, lágrimas contidas e indignações sussurradas. O respeito à mulher precisa ir para a rua, para os parlamentos, para os centros obstétricos e para o ouvido das meninas, para que elas cresçam com a consciência de que o corpo que carregam por toda uma vida é um patrimônio de valor, e que deve ser respeitado.

Enquanto as mulheres permanecerem em silêncio todos os tipos de abusos serão cometidos. Levantar o vestido de uma mulher em público, abrir seu ventre sem justificativa ou impedir que seu marido esteja presente no parto são abusos que tem a mesma origem: o silêncio, a mortificação muda, a apatia vitimista e a condescendência com uma ordem cultural que avilta o feminino e expropria a mulher de seu próprio corpo. Lutar pela liberdade das mulheres é um dever dos cidadãos, homens e mulheres, que desejam uma sociedade baseada na fraternidade, na justiça e na liberdade.

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