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As Ilusões do Reformismo

Foi nos umbrais do século XXI, no Congresso Internacional de Humanização do Nascimento em Fortaleza-CE no ano 2000, que eu tive a minha primeira lição a respeito do significado último das lutas pela emancipação das mulheres. Por certo que a minha característica lentidão no que se refere aos processos de sedimentação de novas ideias não permitiu que esse fato fosse entendido em sua abrangência total à época em que ocorreu, e só muitos anos depois tomou corpo e forma. Na ocasião, num intervalo entre palestras, estava conversando sobre o tema dos princípios básicos do “modelo de parteria” com um querido colega, obstetra de um grande hospital no centro do país. Fomos interrompidos educadamente por um médico que se apresentou como professor de obstetrícia de uma universidade local. Ele queria nos perguntar sobre o tema, pois os alunos que ele estava acompanhando estavam inquietos com algumas informações recolhidas. Disse ele:

– Colegas, escutei a última palestrante e creio que sua explanação me deixou confuso, e aos meus alunos inconformados. Ela deixou nas entrelinhas que as enfermeiras obstétricas poderiam ter plena autonomia para o atendimento dos partos eutócicos, ou seja, partos de risco habitual. Expliquei aos meu alunos que isso não poderia ser verdade e que todo o parto é de responsabilidade do médico da unidade, e creio que os senhores hão de concordar comigo. Não?

Imediatamente olhei para o meu colega e, em quase uníssono, respondemos:

– Pelo contrário!! Concordamos plenamente e está claro que a afirmação dela é correta. O trabalho das parteiras profissionais (enfermeiras obstetras e obstetrizes) é autônomo para os atendimentos que estão dentro do seu escopo de ação. Essas profissionais não são subordinadas aos médicos.

Seu olhar foi de assombro. Em sua mente o desconforto com nossas palavras tomava voz: “Como poderiam dois médicos, colegas de profissão, entender que a ação médica nos partos poderia ser dispensável? Como permitir o “atraso” de aceitar partos atendidos por “meras” enfermeiras? Não há como aceitar esse retrocesso; meus alunos não deveriam estar aqui”.

E isso tudo acontecendo no estado que pariu Galba de Araújo.

Alguns anos depois mais uma vez eu estava em um congresso de Humanização do Nascimento, desta vez no Rio de Janeiro. O mesmo colega foi à tribuna para fazer uma manifestação. Citou, entre vários assuntos, o fato de que não existem trabalhos comprovando que a presença de um neonatologista na atenção imediata ao parto melhora os resultados perinatais, quando os partos são de risco habitual. Dizia com isso que as parteiras com treinamento básico de atenção ao recém nascido (ALSO) são absolutamente competentes para esta atenção, e as evidências deixavam isso bem claro. Bastou terminar de falar para que um pediatra furioso pedisse a palavra e subisse à tribuna. Suas palavras, conforme pude reter na memória, foram estas:

– Cruzei o Brasil para participar de um congresso de um tema que acho importante, como a humanização, mas não imaginava que a minha especialidade fosse tratada com tanto desprezo. Chamar os neonatologistas de “inúteis” (a palavra não havia sido usada, mas foi como ele se sentiu) é um desaforo. Eu acreditava que este congresso seria um congraçamento de ideais, lutas conjuntas, troca de experiências, fraternidade, laços afetivos etc. mas o que vejo é desunião e agressões despropositadas.

Sentou-se novamente em sua cadeira, abalado e inconformado. Meu colega calmamente voltou ao microfone e falou:

– Se as evidências científicas tanto lhe agridem deveria frequentar lugares onde elas não são aceitas ou respeitadas. O que eu disse pode ser lido em qualquer revisão das grandes instituições. Não atire nos mensageiros quando a mensagem lhe desagrada. Se houver algum documento provando o contrário, ficarei feliz em me retratar. Enquanto isso, respeitarei as provas que chegam a mim.

Ali deveria ter ficado bem claro para mim quais os limites do “reformismo obstétrico”. Entretanto, ainda acalentei durante décadas a ideia ingênua de que que existem estratégias de “boa convivência” entre sistemas de poder capazes de imprimir mudanças paradigmáticas. Entretanto, o acúmulo de evidências em contrário fez com que essa ilusão viesse ao chão, e os ecos dessa queda estrondosa consigo ouvi-los até hoje. Era muito claro que a humanização do nascimento para o colega de Fortaleza seria um modelo de suavização de práticas, o reconhecimento da autonomia parcial das pacientes para várias questões, uma proximidade maior com a enfermagem e o respeito às evidências….. desde que estas ações não interferissem na pirâmide de poderes que sustenta a atenção ao parto e nascimento. No momento em que se aventou a possibilidade de um parto ocorrer sem o “carimbo” do médico, retirando deste a autoridade final e suprema sobre o processo, o alerta vermelho foi acionado. “Sim, podemos debater as doulas, as parteiras, a pintura da sala, as Casas de Parto, a presença do marido…. mas não ousem retirar aquilo pelo que lutamos bravamente: o poder conquistado sobre os corpos das mulheres e de seus filhos”.

Para o pediatra (lembro apenas que era da Paraíba) que se indignou com os dados oferecidos pelo meu colega, ficou claro que as evidências oferecidas pela Biblioteca Cochrane, ou as provas publicadas em periódicos do mundo todo só seriam aceitas caso tivessem a preocupação em manter intocada a autoridade dos médicos sobre mães e bebês, sendo inaceitável que outros atores no cenário do nascimento tivessem esta prerrogativa – mesmo diante de qualquer prova científica que lhes garantisse esse lugar.

Por isso, hoje em dia a maturidade (velhice) não me permite mais aceitar estas ilusões: o debate idealista sobre o parto, a perspectiva reformista e o “bom mocismo” do ativismo devem ser jogados fora. Não existe possibilidade de mudança na atenção ao parto que ofereça autonomia às mulheres, garantindo a escolha do local e dos profissionais responsáveis sem revolucionar o “modelo obstétrico” etiocêntrico (centrado na doença), iatrocêntrico (centrado no médico) e hospitalocêntrico (centrado no hospital, um local criado para atender doentes tão depauperados a ponto de não conseguirem caminhar, incapazes, assim, de frequentar “ambulatórios”).

O “Reformismo Obstétrico”, assim como o reformismo na política, parte de uma perspectiva idealista que imagina que o debate franco, a demonstração das evidências, o conflito de perspectivas e a lenta demonstração da verdade por fim produzirá mudanças significativas. Essa vertente de pensamento acredita que as ideias serão motores da transformação, solapando as mentiras através da confrontação. Ora, nada poderia estar mais longe da verdade. Não há contestação científica alguma sobre a superioridade do parto normal em relação à cesariana, e não é de hoje essa evidência. Não há dúvida quando à falta de utilidade e os danos causados pelas episiotomias, isso há 40 anos. Não há nenhum debate razoável sobre Kristeller, enemas, presença de doulas e mesmo local de parto, mas estes continuam sendo tabus na assistência cotidiana. O Brasil atingiu um platô de 57% de cesarianas, e não existe melhora destes números no horizonte. Por quê? Por qual razão estas ideias comprovadas há décadas não se transformam em rotinas? Qual a justificativa para a distância entre o que sabemos e o que fazemos?

A resposta inconveniente é que não se trata de um embate de ideias mas de poderes. Não existe luta de evidências; a luta é de poderes políticos na arena da saúde pública. Enquanto continuarmos acreditando que as evidências são capazes de mudar qualquer realidade vamos continuar chorando a opressão causada pelas categorias profissionais que detém o poder sobre os corpos grávidos pelo mundo afora. A luta nunca foi por evidências científicas e elas são absolutamente desprezíveis para se estabelecer protocolos no mundo todo; basta olhar como eles são feitos em hospitais, cidades e países. Para criar estas normas basta força e autoridade. Por isso que a única forma de transformar a realidade obstétrica é através da luta das mulheres ao lado das enfermeiras e obstetrizes para ocupar espaços de poder. Continuar investindo em pesquisa é importante, mas acreditar que elas podem transformar a realidade é uma ingenuidade idealista que já não tem mais cabimento. De nada adiantam os congressos, os seminários, os periódicos ou as publicações internacionais se não houver uma luta contra os poderes instituídos e pela plena autonomia dos corpos. É fácil constatar que aqueles que detém o poder – seja de uma nação ou sobre pessoas – jamais o entregarão sem luta, mesmo que existam provas de que estes poderes são usados de forma abusiva, inadequada ou até criminosa. Portanto, é necessário inaugurar uma nova fase, de lutas concretas pela ocupação de espaços, sem pedir licença, sem aceitar concessões menores, mas para que seja garantido às mulheres a plenitude de seus direitos em nome das escolhas que ela fizer no nascimento dos seus filhos.

O tempo da ilusão e da “pax obstétrica” deve chegar ao fim. É preciso exigir que o nascimento humano seja regido pela ciência, de forma multidisciplinar e através das evidências científicas, mas isso só vai ser possível através do combate pela boa causa, a causa da liberdade.

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Parto: passado, presente e futuro

O movimento de humanização do nascimento não se produz num vácuo conceitual mas, pelo contrário, surge no bojo das profundas transformações do pós guerra no que diz respeito à topografia dos gêneros no mercado de trabalho, nos costumes, nos direitos sobre o corpo e nas questões relativas à sexualidade – incluindo aí a contracepção e o ciclo gravídico-puerperal. Nos anos 70-80 pela primeira vez se tornou possível mensurar de uma forma metódica e abrangente o resultado da invasão tecnológica sobre o parto ao confrontarmos os resultados obtidos pela institucionalização do parto com sua versão artesanal e domiciliar que foi o modelo hegemônico por toda a história da humanidade. Por esta razão nesta época apareceram no nosso horizonte os primeiros contrapontos ao modelo vigente.

No que diz respeito ao terreno das ideias, a partir desse período podemos beber nas fontes de Grantly Dick-Read, que tratou da ambiência do parto e suas repercussões (em especial o ciclo medo-tensão-dor) e o parto como fato social, Fernand Lamaze e os domínios do consciente sobre o parto, Frederick Leboyer com a perspectiva do recém-nascido e o conceito de “imprint”, Michel Odent com seus estudos da etologia e os efeitos da ocitocina para o psiquismo materno e Robbie Davis-Floyd com sua perspectiva ritualística (mesmo quando inconsciente) aplicada à atenção do parto. Estes foram personagens e ideias que produziram o arcabouço ideológico que fomentou nossa perspectiva teleológica do processo de nascimento. O modelo humanista, surgido do caldo de ideias desses pensadores, ocorre em contraposição à crescente alienação das mulheres no ato de parir e o domínio da tecnologia sobre seus corpos.

Certamente que a tarefa de desconstrução sobre o modelo tecnocrático de atenção ao parto só poderia ocorrer de forma conflituosa, porque sobre o corpo das mulheres existem claras demarcações, zonas de domínio, que são a própria estruturação do modelo patriarcal. Desta forma, o movimento de humanização passou por etapas cujo reconhecimento é extremamente essencial para sua continuidade. Também é importante entender que, como todo fenômeno social, estas etapas não são estanques e são intercambiáveis no tempo e no espaço.

A primeira etapa é o que eu chamo de “Acolhimento“. O acolhimento vai ocorrer quando um sujeito, vítima real de uma situação ou contexto, procura a ajuda de pessoas que possam lhe escutar e entender suas feridas e traumas. Os primórdios da humanização do nascimento, desde o início das “list servers” sobre parto humanizado, eram recheados de histórias e relatos de partos onde a dignidade e a autonomia das mulheres e bebês foi claramente ofendida. Era tarefa dessa comunidade acolher as vítimas de um modelo de atenção que lhes parecia violento e insensível. O problema é que o ser humano tem mecanismos de satisfação que lhe permitem obter vantagens pela sua condição de vítima, seja por benefícios ou privilégios. Essa atitude é muito primitiva em nós, bastando para isso ver uma criança que chora copiosamente ao cair, sabendo que isso significará um ação acolhedora da mãe. Com o tempo esta atitude pode se tornar padrão de comportamento, criando uma criança manhosa, que percebe na sua condição real (ou fantasiosa) de vítima uma chance de receber o prêmio do carinho que deseja. Na atenção ao parto muitas mulheres se recolhem na condição de vítimas do sistema e o movimento de humanização às acolhe, gerando um circuito que oferece a elas um gozo pela sua condição.

É evidente que esta ação não pode perdurar porque uma regra básica das relações humanas é que a pessoa que se encontra na condição de vítima não pode ser protagonista, uma condição antagônica a esta posição. Desta forma o padrão maternal acolherá a criança ou o adulto vítima e lhe dará o cuidado necessário para sua proteção e recuperação, mas manterá o sujeito preso a um vínculo de dependência. Somente a posição paternal subsequente poderá livrar o sujeito dessa condição, obrigando-o a uma posição proativa. É importante notar que posições maternais e paternais se referem às funções e não aos personagens mãe e pai e muito menos às identidades de mulher e homem.

Essa condição de vítima é geradora de ressentimentos e o ressentimento vai produzir o segundo passo neste processo que é o “Punitivismo“. Esta foi uma tendência marcada nos primeiros anos do movimento de humanização. Se conhecíamos as vítimas de uma atenção inadequada por certo que haveria aqueles a quem culpar, em especial os que detém mais poder e conhecimento autoritativo. Nessa etapa muito se discutia sobre as punições devidas aos médicos e hospitais que utilizavam de forma exagerada e insensata os recursos tecnológicos. Da mesma forma como o enxergamos nos problemas sociais, o punitivismo na obstetrícia se baseia na crença que o aumento ou alargamento das punições sobre médicos e hospitais poderia garantir uma maior qualidade da atenção, pela simples eliminação da impunidade. Décadas de observação e inúmeras experiências nos mostram que esta é uma estratégia equivocada e de resultados pífios. Se punir quem vendia álcool na lei seca não diminuiu seu consumo, porque a punição aos médicos poderia trazer qualquer benefício, em especial quando sabemos que eles são igualmente reféns do “imperativo tecnológico” que os mantém prisioneiros de um modelo tecnocrático e intervencionista, mesmo quando têm pleno conhecimento de que não é o mais adequado.

A etapa seguinte eu chamo de “Idealismo”. Esta etapa ocorre quando vemos o florescimento de uma enorme quantidade de ideias e propostas relacionadas à atenção ao parto. Começamos a nortear nossas ações centrados nos trabalhos, pesquisas e estudos de ideólogos e pesquisadores que produziram um olhar desafiador sobre o parto. Assim, o “parto Leboyer” surgiu como uma prática – repleta de variantes – a partir das ideias do obstetra francês Frederick Leboyer. Alguns anos após, outro francês, Michel Odent, nos convidava a refletir sobre nossa ancestralidade e as reais necessidades de uma gestante em seu momento de parir. A partir deles, muitos outros vieram, entretanto, como pode ser facilmente observado, “nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam”. O livro de Robbie “Birth as an American Rite of Passage” foi publicado há mais de 30 anos, e nessas três décadas o cenário do nascimento humano no mundo ocidental apenas piorou no que diz respeito à autonomia das mulheres, mesmo com grande acúmulo de perspectivas inovadoras e estudos que as embasam. As taxas de cesariana no Brasil chegaram a um platô que se situa entre 55 e 57% e não conseguem descer abaixo disso, inobstante algumas boas iniciativas de algumas instituições e poucos profissionais. Intervenções continuam em alta, apesar de inúmeras publicações demonstrando sua inutilidade e mesmo seu efeito deletério para o binômio mãe-bebê

Fica evidente que as ideias são incapazes – por si só – de promover mudanças. Por mais que os médicos saibam da inutilidade da episiotomia, da alta taxa de cesarianas, dos enemas e da posição de litotomia, o simples reconhecimento desses erros não os leva a mudanças significativas em suas atitudes. Esse tipo de pensamento idealista nos levou a fazer “caravanas” pela humanização do nascimento no início do século, baseados na ilusão de que a simples confrontação com a verdade das pesquisas seria capaz de imprimir novas condutas médicas. Ledo engano; não houve nenhuma mudança significativa; nenhum índice de intervenção se tornou melhor pela demonstração prática de sua inadequação. Mesmo o programa “Parto Adequado” que foi utilizado em hospitais privados – o ponto nevrálgico das intervenções desmedidas – teve um “sucesso” inicial de diminuir em 1% as intervenções de nascimentos cirúrgicos, mas os valores voltaram a crescer algum tempo depois. A “educação médica” não parece surtir efeito, pois partem de uma perspectiva que não reconhece a dinâmica de poder que permeia a atenção à saúde.

A próxima etapa é derivada do idealismo e se refere a um movimento que ainda é hegemônico entre os obstetras “liberais”, aqueles simpatizantes do parto normal (também conhecidos como “vaginalistas”) e entre muitos profissionais das correntes da humanização do nascimento. Ela se chama “Reformismo“, que consiste na ideia de que é possível transformar a atenção ao parto se houver uma educação ampla, reforma no ensino da medicina, contratação de médicos alinhados com os projetos de humanização e estímulo à contratação de enfermeiras obstetras pelos centros de atenção ao parto. Essa proposta acredita que é possível “moralizar” a atenção apostando no sujeito, nos “bons profissionais” (os “good guys”) na suavização de suas práticas, na eliminação de intervenções desnecessárias, na educação e na informação científica atualizada – mas não na mudança do sistema no qual estes profissionais estão inseridos.

Existem inúmeros hospitais de caráter reformista na atualidade, alguns por acreditarem nessa proposta, enquanto outros por entenderem que se trata de um modelo intermediário para uma verdadeira mudança que só ocorrerá num futuro distante. No último congresso internacional da ReHuNa houve um momento profundamente revelador dessa proposta: o convite para que o presidente da Febrasgo (Federação das Associações de Ginecologia e Obstetrícia do Brasil) tivesse uma fala. Nesta ocasião ele se mostrou educado, afável e compreensivo com as reivindicações dos seus entrevistadores. Para muitos um ato de reconhecimento de nossa relevância. Todavia, deveria ter ficado evidente para todos os presentes em sua palestra que a sua concordância – ou não – com as nossas propostas é absolutamente irrelevante para uma real transformação. O mesmo acontece com uma mesa em que representantes israelenses se encontram com a população palestina para discutir o futuro da região. As posições jamais serão alcançadas através da simples concordância com as visões dispares de mundo, e qualquer solução só poderá brotar do atrito e do choque de poderes – mais ou menos violento. Para isso é preciso uma abordagem “materialista e dialética”.

O Materialismo dialético é uma concepção filosófica e uma metodologia científica que propões a visão de que o ambiente, o sujeito e os fenômenos materiais e físicos tanto modelam a sociedade e a cultura quanto são modelados por eles; ou seja, que a matéria está em uma relação dialética com o psicológico e o social. Por mais que seja evidente a correção da luta por autonomia das mulheres em relação ao parto e nascimento, estas ideias somente terão avanços quando o ambiente social se modificar e as próprias mulheres se colocarem à frente do processo de mudança. Precisamos tanto de melhores profissionais quanto melhores clientes para o parto. Médicos e gestantes estão sujeitos ao mesmo modelo, atuam dentro dele e ao mesmo tempo são afetados por ele, e precisam agir em consonância para que este seja transformado. No atual estado da arte, a Medicina e sua lógica da intervenção está em antagonismo com as reivindicações das gestantes que desejam um parto humanizado. Jamais conseguiremos uma modificação profunda no sistema através de reformas que não mudam em profundidade o sistema de poderes que governa o corpo das mulheres, sua sexualidade e reprodução.

Enquanto o parto for considerado “ato médico” e se mantiver nas mãos de cirurgiões nenhum avanço significativo será alcançado, pois que a perspectiva médica e a visão da parteria são antípodas no espectro da atenção. A lógica médica aplicada ao nascimento objetualiza as pacientes, transformando-as em objetos dóceis e inermes para a sua atuação e intervenção. Essa lógica é essencial para o tratamento de muitas doenças e em especial para a realização de cirurgias, mas não se aplica ao atendimento de um evento fisiológico como o parto sem excluir as mulheres e seus bebês da equação. A aventura da Medicina no percurso do nascimento humano levou inexoravelmente ao apagamento das mães de qualquer decisão, colocando nas mãos dos médicos toda a responsabilidade do que vai acontecer a elas. Não por outra razão em nossa cultura os médicos “fazem partos”.

O que resta como solução é deixar para trás as ilusões, entendendo a arena do nascimento como uma “luta de classes” que não vai chegar a qualquer consenso enquanto os médicos mantiverem o controle político e econômico sobre o processo de parir. Somente com a queda deste poder, e a ascensão das especialistas no parto – parteiras profissionais e tradicionais – haverá possibilidade de uma verdadeira “Revolução do Parto”, mas que só vai acontecer quando as massas, nutridas pela inescapável indignação, reivindicarem que a assistência volte ao controle das próprias mulheres e através do auxílio dos profissionais mais capacitados para este ofício. Cabe também resguardar aos médicos a nobre tarefa de agir nas circunstâncias em que a trilha da fisiologia se perdeu no emaranhado único de cada nascimento e adentrou na rota perigosa da patologia, para que eles sejam os heróis que tanto necessitamos.

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Medicina e Medo

”The Doctor”, 1891; Samuel Luke Fields (1844-1927), Óleo sobre tela, Galeria Tate – Londres. (*)

Qual a razão da crescente insatisfação de tantos pacientes com os abusos cometidos por uma medicina cada vez mais alienante, técnica, fria e desumana, onde a intervenção e o uso de drogas assumem a característica mais marcante dessa atuação? Hoje em dia a cena ancestral do médico compassivo, atencioso, dedicado e atento que, ao lado do leito, anota em silêncio as queixas e sinais dos enfermos, dá lugar aos exames, as cirurgias e as drogas, alienando progressivamente o paciente de sua própria cura.

Quando os médicos atuam de forma abusiva – em especial no parto, onde a intervenção se tornou a regra e a fisiologia ocorrência rara – assim o fazem para garantir a sua proteção, e não por serem pérfidos, interesseiros ou ignorantes. Se um médico resolve esperar diante de um impasse clínico e algo inadequado ocorre a culpa será invariavelmente considerada sua e, a partir de então, sua vida se tornará um inferno com os ataques que surgirão da própria corporação. Por outro lado, se ele intervém e o paciente – como resultado da intervenção – tem algum problema grave (ou mesmo vem a óbito) a responsabilidade se dilui, e a perspectiva que sobressai é de que o resultado funesto foi devido ao risco natural e inexorável de qualquer procedimento, o qual ocorreu apesar do tratamento médico adequado. Isso porque a tecnologia é um mito, e por isso não pode ser jamais questionada.

A isto costuma-se chamar de “imperativo tecnocrático”, que determina que a existência de tecnologia para tratar um determinado caso obriga a sua utilização, mesmo que os resultados desta intervenção não sejam comprovadamente melhores, e aqui a cesarianas ocupam um lugar de destaque como grande exemplo deste tipo de tendência. Muito mais do que evidências científicas, a profissão é levada a agir por defesa, aumentando gravemente os riscos para os pacientes – mesmo que os diminua para os médicos.

Ou seja, o uso de tecnologia vai sempre blindar o médico, dar-lhe segurança e oferecer a ele proteção profissional. Na obstetrícia, as cesarianas são “salvo condutos” para garantir segurança aos profissionais. Raríssimos médicos são processados por cesarianas abusivas mas qualquer um que ouse atender partos, mesmo quando dentro de parâmetros reconhecidos no mundo inteiro, incorre em sério risco profissional. A escolha pelo tratamento mais seguro para si é compreensível em qualquer profissão – médicos não são kamikazes – apesar de não ser justificável sob qualquer parâmetro ético; médicos atuam sob o signo do medo e sabem o quanto um mau resultado pode destruir uma carreira tão arduamente construída.

Desta forma, não são os médicos que precisam mudar; é a própria sociedade, seus valores, seu sistema jurídico, sua mídia, seu sistema de saúde e os próprios pacientes, que invariavelmente não vão titubear em deslocar a dor e a frustração de uma perda para a pessoa do médico, em especial quando a postura deste é contra-hegemônica e agride o modelo tecnocrático e intervencionista da medicina capitalista. Imaginar que a mudança na atenção é uma responsabilidade dos médicos é injusto e inútil; eles apenas fazem a Medicina que a sociedade lhes solicita e autoriza. Para mudar a atenção à saúde é necessário suplantar o capitalismo e transformar a Medicina, para que ela deixe de ser mercantilista e baseada no lucro das grandes corporações, e passe a ser um sistema de cuidados centrado na pessoa, e não nos ganhos obtidos com a doença.

Só então poderemos constatar que, quando a sociedade se transforma, os médicos (juízes, advogados, políticos, policiais, bombeiros, militares, etc) se transmutam como consequência. Porém, essa mudança é dialética, pois que o exemplo de alguns profissionais também vai moldar a forma como a sociedade enxerga os evento da atenção à saúde, gerando assim mais consciência, que por sua vez será agente de transformação. Não existe, portanto, justificativa para que os médicos não se mobilizem para que a sua ação médica seja impulsionadora da mudança.

A prática médica é a síntese dos valores da sociedade onde atua, não sua causa precípua. Sociedades violentas produzem uma medicina truculenta e intervencionista; nas sociedades baseadas na paz e na democracia a Medicina vai fomentar uma saúde centrada na pessoa e na responsabilidade compartilhada entre cuidador e paciente. Entretanto, sempre devemos cobrar dos médicos que compreendam a verdadeira amplitude de sua ação social, e não se permitam sucumbir às pressões desumanizantes a que são submetidos.

(*) O quadro nos remete a um momento dramático na vida do pintor Samuel Fields. Nele está retratada a morte de seu filho na noite de Natal do ano de 1877, mas também está expressa a homenagem ao médico, atento, circunspecto e prestativo, que assistiu seu filho até o derradeiro momento quando, por fim, a vida do menino evadiu-se do corpo. Na imagem podemos ver seu estúdio, os móveis, o ambiente lúgubre que aguardava o desfecho mórbido, o desespero da mãe e o olhar apático do pai – o próprio Samuel. Apesar de ser uma imagem que nos remete ao dramático e trágico da existência ela igualmente nos mostra que a função do médico não é “curar os doentes”, mas estar ao seu lado, aliviando as dores e sofrimentos, curando quando for possível, mas sendo sempre a mão fraterna a oferecer o cuidado – o elemento ancestral que nos transformou em humanos.

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Dores e sons

Essa imagem é de um debate ocorrido em um grupo de Whatsapp – de esquerda!! – a respeito de um artigo que escrevi sobre a necessidade dos partidos marxistas se engajarem na luta pela humanização do nascimento e pelo fim da violência obstétrica, mas se afastando dos discursos identitários de viés individualista.

O primeiro comentário diz respeito ao aborto, mas fala que assim como ele a cesariana também não é crime. Bem, do ponto de vista da humanização do nascimento a cesariana é uma cirurgia maravilhosa e capaz de salvar vidas. Todavia, isso apenas ocorre quando esta cirurgia de grande porte é bem indicada, sem os abusos que presenciamos cotidianamente quando seu uso ocorre para satisfazer as necessidades dos profissionais e das instituições – e não das mães e dos seus bebês. Criticar o abuso de cesarianas não significa desmerecer sua importância e validade. Parece incrível ainda ser necessária oferecer este tipo de explicação.

O segundo comentário – que elogia a anestesia – é uma visão largamente disseminada na cultura ocidental. Desde o dia 16 de outubro de 1886, quando John Collins Warren – o velho e empertigado cirurgião – retirou um tumor da boca de Gilbert Abbot sob anestesia por éter sulfúrico, conduzida por um tal Thomas Green Morton, que a humanidade exalta a possibilidade do uso das drogas para exterminar o sofrimento e as dores. Nada mais justo este entusiasmo, visto que desde a aurora da humanidade a dor nos acompanha como sombra mórbida a nos fustigar e torturar.

Todavia, do entusiasmo inicial e o nascimento da moderna cirurgia, vieram também como consequência muitos questionamentos: até quanto é possível isolar os sujeitos da experiência da dor, e quais as consequências de uma vida sem ela? E se para as dores físicas temos os múltiplos analgésicos (e os anestésicos para as cirurgias), como lidar com as dores da alma? Serão elas igualmente passíveis de extermínio? Ou serão estas dores um alvo para aqueles ávidos por descobrir novos mercados?

É minha visão que as dores são constitutivas dos sujeitos e que é impossível viver sem elas. Também creio que as dores de parir produzem seus efeitos não apenas na mulher que as suporta, mas também no sujeito que nasce. É claro que para isso as dores precisam de sentido, significado e função, e não ser apenas o sinal corporal de uma disfunção onde a tecnologia pode ajudar e produzir alívio. Há que discernir para não abusar e tornar ruim algo que é, em essência, bom.

A terceira manifestação, foi feita por um médico, que acredita no mito do “culto ao parto normal”, que seria produzido por uma “seita de identitários avessos à tecnologia e aos recursos cirúrgicos”. Sua aversão à humanização do nascimento se sustenta no “recurso do espantalho”: a criação de um adversário fictício que facilitaria nossas críticas ao direcioná-las a uma mera caricatura das opiniões e posições que se opõem às nossas.

Não restam dúvidas de que existem identitários na humanização do nascimento. Por certo que muitas ativistas abusam de recursos espúrios como cancelamentos, silenciamentos, ataques sexistas, essencialismos e preconceito. Entretanto, apesar de serem por vezes vocais, são uma minoria nesse movimento. Este se estrutura na garantia do protagonismo à mulher, na visão interdisciplinar do parto e na atenção baseada em evidências, e não em misticismos ou revanchismos sectários. Tratar um coletivo pela imagem de uma parcela diminuta é desonestidade.

Em verdade, a ideia de que o objetivo dos humanistas seria tornar a cesariana ilegal é tola e apartada da dura realidade do parto, porque é exatamente o oposto que acontece: é o parto normal que lentamente desaparece do horizonte das mulheres, expropriado pela tecnocracia médica que possui nas mãos o mapa único, a versão de uma realidade que insidiosamente evapora. Se existe nobreza neste movimento é a tarefa de lutar para que um processo fisiológico como o parto não seja exterminado pela arrogância cientificista.

Hoje em dia, nos países colonizados pela medicina drogal e intervencionista, é o parto normal que em breve precisará “habeas corpus”. Sim, “que tenhas o teu corpo” é a melhor definição para o desejo de uma mulher que pretende ter seu filho em paz, sem ser interrompida ou incomodada. É o fluxo normal e fisiológico da vida que está em perigo de extinção; é o parto que corre o risco sério de desaparecimento.

Repito a pergunta que fiz há 20 anos: o que será da humanidade quando os gritos lancinantes primais que constituem nossa estrutura psíquica mais primordial forem substituídos pelo som duro e metálico dos instrumentos cirúrgicos de uma sala gelada e repleta de luzes? Se a música é realmente feita da reverberação infinita desse som, que se repete indefinidamente em nossa memória mais precoce, que humanidade será essa onde não haverá mais nenhuma canção a nos aliviar as inevitáveis dores de viver?

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Elogio à alienação

Eu não tenho problema com o uso de vacinas. Se houver ciência de qualidade com fontes seguras e isentas e com resultados positivos, por que não? Entretanto, acho terrível – e inaceitável – a lógica frequentemente usada para defendê-las. Agora mesmo vi uma:

“Seu filho tomou 24 vacinas logo depois de nascer e só agora você resolveu perguntar do que esta última é feita? Confie na ciência!! Vacinas salvam vidas!!”

Quer dizer que agora – depois de anos ensinando as pessoas a pensarem por si mesmas e a tomarem decisões informadas sobre sua saúde e a dos seus filhos – estamos estimulando que não se façam mais perguntas e que nenhum questionamento incômodo seja feito? Querem nos convencer que é preciso acreditar cegamente nas drogas que nos indicam? Mais ainda, confundem prescrição de drogas com “ciência”, quando muitas vezes a ciência se expressa exatamente pelo combate ao mau uso das drogas!! Se Isso não é um retrocesso, não sei como chamar.

Pensem apenas o que se conquistou até agora na humanização do nascimento. Achariam justo dizer às mulheres para interromperem os questionamentos e passarem a ter fé nas decisões dos médicos?

“Nessa cidade milhares de pessoas vem ao mundo por cesariana e usamos cirurgias e internações para os bebês nascerem. Por que só agora você resolveu perguntar por qual razão queremos lhe operar?? Confie na ciência!! Confie nos médicos!! Cesarianas salvam vidas!!”

Se os médicos tem responsabilidade pelo descalabro das cesarianas no Brasil, por que deveríamos ter fé cega na decisão de um grupo de cientistas, em detrimento de outros? Qual o problema em perguntar os efeitos que as drogas potencialmente têm sobre as pessoas e, em especial, as crianças?

É para esse mundo que penaliza a autonomia e as perguntas indiscretas que estamos rumando?

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Kits e cesarianas

Como o meu filho bem observou, a diretriz da prescrição dos “kit covid” é a proteção …. DO MÉDICO, e não necessariamente do paciente. Ele me alertou também para o fato de que a lógica utilizada pelo CFM é igual àquela que leva ao abuso das cesariana: na dúvida OPERE, para se proteger enquanto profissional.

Mesmo sem o saber, o representante da corporação médica defende o “imperativo tecnológico” do qual Robbie Davis-Floyd se ocupa, que diz que “se há tecnologia disponível ela deve ser usada, inobstante o fato de causar dano”. Muito mais do que evidências científicas, a profissão é levada a agir por defesa, aumentando gravemente os riscos para os pacientes – mesmo que os diminua para os médicos.

Assim, se algo ocorrer de grave pelo uso do kit covid – e o mesmo se pode dizer das cesarianas – sempre haverá a desculpa de que “fizemos tudo que estava ao nosso alcance”, e isso servirá como salvo conduto diante dos seus pares, pois quem julga os médicos nos conselhos de classe se beneficia do (ab)uso tecnológico em que a Medicina se sustenta e está envolta. Mas, é claro que falta também um judiciário que aprenda a julgar casos médicos desviando dos atalhos fáceis do “senso comum”.

Médicos acovardados e judiciário pusilânime levam ao abuso de intervenções, medicalização da vida cotidiana, custos aumentados e morbimortalidade crescente. Prevenir iatrogenia é função medica.

Veja aqui a matéria do Intercept sobre a posição do vice-presidente do CFM no que diz respeito à proteção dos médicos diante da Covid 19.

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Cyborg

Imagine-se chegando em uma cidade e perceber, já no aeroporto, que a maioria das pessoas anda em cadeiras de rodas. Faz uma rápida conta mental e contabiliza mais da metade como incapazes de caminhar com as próprias pernas. Mais ainda: quando chega ao banheiro nota uma fila de homens aguardando para colocar uma sonda urinária, já que não conseguem urinar por si mesmos. Quando sai à rua, se dá conta que uma quantidade enorme de pessoas usa bolsa de colostomia anexada aos seus ventres, porque seus intestinos já não funcionam adequadamente. Não seria este um choque brutal? Não caberia perguntar o que houve nessa localidade capaz de produzir uma epidemia de incapacidades? Não seria justo e necessário investigar as origens de tamanha tragédia?

Mas, não será essa ficção apenas uma caricatura do que já estamos vivendo hoje, como vaticinou Donna Haraway em seu “Cyborg Manifesto”?

Dentaduras de sorrisos perfeitos, olhos com cristalinos artificiais, quadris de titânio, rostos com botox e fios de ouro fazem do humano uma pálida lembrança do que outrora fomos. Como o “Homem de 6 milhões de dólares” almejamos a transcendência dos limites tímidos do nosso corpo, exigindo da tecnologia que suplante nossas imperfeições através dos recursos técnicos artificiais.

Quanto mais “avançamos” enquanto sociedade mais nos percebemos trocando funções fisiológicas orgânicas – e seus milhões de anos de aperfeiçoamento – por versões artificiais “top de linha”, como novos-ricos ciborgues exibindo nossas ereções quimicamente estimuladas, nossas perucas rejuvenescedoras, pontes de safena e válvulas cardíacas como preciosos objetos de consumo.

Diante de tamanho esplendor tecnocrático, por que deveríamos nos assombrar com o fato de que 57.5% das mulheres brasileiras são levadas a uma cesariana, alijadas da vivência fisiológica e natural dos seus partos – fato que acompanhou a humanidade desde seu alvorecer? Por que deveria nos causar espanto que quase 60% das mulheres são incapazes de dar conta de algo que suas bisavós entendiam como tarefa natural da feminilidade?

Se há um corpo que se presta ao (ab)uso da tecnologia, este será o das mulheres. Afinal, sua incompetência, fragilidade e defectividade são exaltadas pela cultura e pela própria estrutura do modelo patriarcal. A expropriação de sua inata capacidade de gestar e parir não é nada além de um capítulo a mais na sua larga história de intromissões e invasões.

Hoje a verdadeira revolução não está mais em descobrir o próximo “gadget” precioso que vais tornar nossa vida mais tranquila e segura, mas em questionar o quanto de humanidade restará em nós quando a nenhuma criança mais for dado o direito de nascer do ventre de uma mulher.

ENGLISH VERSION

Imagine yourself arriving in a city and realizing, already at the airport, that most people in that place are in wheelchairs. You do a quick mental count and notice that more than half is unable to walk on their own legs. Even more: When you go to the bathroom, you notice a line of men waiting to put in a urinary tube, as they cannot urinate by themselves. When you leave the premises, you realize that a huge number of people use a colostomy bag attached to their bellies, because their intestines are no longer functioning properly. Wouldn’t this be a brutal shock? It would not be appropriate to ask what happened in this locality so terrible as to produce an epidemic of disabilities? Would it not be fair and necessary to investigate the origins of such a tragedy?

However, isn’t this fiction just a caricature of what we are already experiencing today, as predicted by Donna Haraway in her “Cyborg Manifesto”?

Dentures with perfect smiles, eyes with artificial lenses, titanium hips, faces filled with botox and gold threads which make the human a pale reminder of what we once were. As the “Million Dollar Man” we aim to transcend the timid limits of our bodies, demanding from technology that it overcomes our imperfections through artificial technical resources.

The more we “advance” as a society, the more we find ourselves trading organic physiological functions – and their millions of years of improvement – ​​for “top-of-the-line” artificial versions, like cyborg nouveaux riches showing off our chemically stimulated erections, our rejuvenating wigs, heart bypass grafts and heart valves as precious consumer items.

Faced with such technocratic splendor, why should one we be amazed at the fact that 57.5% of Brazilian women are taken to a caesarean section, denied of the physiological and natural experience of their births – a fact that has accompanied humanity since its dawn? Why should it surprise us that nearly 60% of women are unable to cope with something their great-grandmothers saw as the natural task of femininity?

If there is a body that lends itself to the (ab)use of technology, it will be that of a woman. After all, its incompetence, fragility and defectiveness are exalted by the culture and by the very structure of the patriarchal model. The expropriation of her innate ability to gestate and give birth is just another chapter in her long history of intrusions and invasions.

Today the real revolution is no longer discovering the next precious “gadget” that will give our lives more pleasure and connection, but rather questioning how much humanity will be left in us when no more child will be given the right to be naturally born from a woman´s womb.

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Enfermeiras Padrão

Quando eu comecei a trabalhar em hospitais a Enfermeira Padrão era a enfermeira diplomada, com curso superior. Naquele tempo ainda existiam as auxiliares de enfermagem, que eram pessoas sem qualquer formação, apenas prática. No hospital da periferia de Porto Alegre onde trabalhei por 4 anos, no início dos anos 90, ainda havia auxiliares de enfermagem que atendiam os partos, quando o convênio pagava pouco ou para deixar o médico dormir. Eram mulheres que entraram no hospital como auxiliares de limpeza e foram “progredindo na carreira”. Tornaram-se, muitas delas, “parteiras” cujo aprendizado se deu no auxílio aos médicos e junto às outras parteiras mais experientes. Seriam “parteiras tradicionais urbanas”, por seguirem uma “tradição” de assistência e serem oriundas do povo, e não das escolas ou da Academia.

Algumas delas eram espertas e muito hábeis. Foi com uma dessas auxiliares que aprendi na prática a ação da água no trabalho de parto. Mal as pacientes começavam a esboçar algum tipo de desespero e ela as colocava debaixo do chuveiro quente. “Vamos secar a caixa d’água do hospital, doutor” dizia ela dando risadas.

Entretanto, apesar de uma certa sabedoria oriunda da experiência, seu conhecimento de partos era limitado às práticas violentas que testemunhavam cotidianamente. Assim, a assistência que davam mimetizava as más condutas que observavam no procedimento médico. Seus partos eram na posição de litotomia (pacientes deitadas de costas na maca), faziam episiotomias, kristeller, gritos, comandos, luzes fortes ligadas, corte prematuro do cordão, etc e tudo aquilo que há 30 anos já sabíamos ser inadequado. Elas eram, mesmo sem o saber, o espelho justo de uma assistência indigna às mulheres.

Quando cheguei no plantão resolvi (como sempre) botar o pé na porta. Decidi no primeiro dia que no meu plantão os partos seriam todos na posição de cócoras (como padrão), cesarianas seriam marcadas com indicação clara (o que produzia ódio nos anestesistas que eram obrigados a comparecer de madrugada ao hospital) e decidi abolir por completo as episiotomias. Também o bebê seria colocado no colo da mãe após o nascimento.

É evidente que minha passagem pelo hospital foi marcada por perseguições. Numa instituição com 45% de cesarianas, e que atendia quase exclusivamente SUS, ter um médico que tinha 10% de intervenções gerava inconformidade e resistência.

Entretanto, a raiva dos médicos era compreensível. Sabia que isso abalava seu conjunto de crenças e, em especial, questionava seu poder absoluto sobre o corpo das mulheres. Dizer para uma mulher “fique na posição que desejar” é um tapa na onipotência médica, e isso não poderia ficar impune.

Contudo, eu não esperava a contrariedade das “parteiras”, as auxiliares diretas do meu trabalho. Sim, elas também não gostavam de ver um médico agindo diferente da cartilha que elas mesmas haviam aprendido. O que eu trazia de novo as incomodava e suspeito que isso tem a ver com fidelidade e dívida amorosa.

Acreditar que eu estava certo seria dar as costas aos seus antigos professores e tudo que eles lhes ensinaram com sua prática e seu exemplo. Seria trair seus mestres com a “velha novidade” que eu trazia. Isso parecia grave demais para elas. Era preferível continuar com os mesmos procedimentos violentos contra as gestantes – mulheres como elas – e manterem-se fiéis aos seus orientadores e referenciais do que se arriscar e fugir com o jovem aventureiro de ideias renovadoras. Mudar suas condutas seria uma crítica contundente e indisfarçável aos seus superiores.

“Se isso que o senhor faz fosse o certo todos estariam fazendo, seu doutorzinho do passo certo”, disse-me uma delas. E como não entender o medo da novidade, que carregava o risco de colocar por terra tudo que haviam aprendido a duras penas nos últimos 30 anos?

Sobrou da experiência uma válida reflexão: quem ousa mudar um paradigma sempre carrega essa carga: a incompreensão e a resistência serão os únicos resultados certos e obrigatórios. Mas, como eu aprendi muito cedo, é preciso agir por um imperativo ético, jamais pela promessa de sucesso ou para ser, finalmente, aceito e compreendido.

Também restou o agradecimento àquelas mulheres simples de onde retirei muitos ensinamentos válidos para toda a vida.

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Vacinas, cesarianas e cadeias

Será o nosso pedido desesperado por “vacinas” mais um clamor pelas soluções mágicas, o qual esconde nosso temor de encarar os verdadeiros desafios?

Ainda hoje eu escutava pessoas sendo entrevistadas no rádio e pedindo às autoridades nacionais e mundiais que se encontre de imediato a solução para esta pandemia e um apelo pela criação e distribuição de vacinas. Não é difícil entender que, nesse momento de angústia disseminada, pedidos como este sejam voz corrente entre a população. Todavia, é necessário ir além dos pedidos desesperados para entender o significado dessa busca por soluções.

Da mesma forma, logo depois de um caso dramático de crime, os gritos são por mais segurança, mais polícia, mais repressão aos delitos e mais rapidez nas sentenças. Criar presídios, cadeias, justiça mais rápida e encarceramento parecem soluções adequadas e ágeis. Acreditamos que quanto maior a repressão melhores os resultados, na crença de que a impunidade é a grande estimuladora das contravenções. A experiência acumulada sobre o encarceramento, em especial em países com doutrinas positivistas hegemônicas, mostra o oposto: o encarceramento em massa jamais solucionou o drama da criminalidade.

Também com as cesarianas pensamos dessa forma imediatista; basta um caso isolado de problemas no parto normal para pedirmos mais cesarianas e mais tecnologia aplicada ao parto, com a fé de que as intervenções tecnológicas no nascimento produzem mais segurança, mesmo que as evidências apontem o contrário.

Vacinas, cesarianas e cadeias tem espaço nas sociedades contemporâneas, sem dúvida. Todas elas podem salvar vidas, ou evitar que outras vidas sejam perdidas. Entretanto, o uso dessas alternativas aponta para inequívocas falhas estruturais, erros na arquitetura básica da sociedade, e estas soluções podem servir apenas para nos oferecer um alívio temporário para doenças crônicas e insidiosas.

Não acredito que a solução para os dilemas do parto será pelo incremento de mais tecnologia, mas pela compreensão que grande parte dos transtornos do parto ocorre pela sua inserção numa cultura capitalista e que enxerga as mulheres e seus ciclos de forma diminutiva, olhando-as com lentes invertidas que as tornam defectivas, incapazes, insuficientes e indignas de confiança. A falta de protagonismo das mulheres aos seus ciclos é a falha essencial, e o incremento das intervenções aparece como o sintoma, mas não será jamais sua solução.

A repressão policial violenta vai ocorrer em sociedades desiguais e inerentemente injustas, e sempre será usada para conter a natural reação dos oprimidos às injustiças e à iniquidade. A força bruta será o meio de controle social enquanto a ferida aberta da desigualdade continuar sangrando, fazendo um enorme e crescente contingente de pobres e miseráveis ser contido através da violência. Sem que a real doença social do capitalismo seja curada, não haverá polícias e presídios suficientes para conter a revolta dos esquecidos.

Hoje gritamos por vacinas porque elas entram como a solução tecnológica para uma relação absolutamente disfuncional do homem com a natureza. Da mesma maneira, se não for modificada a nossa relação com ela, nenhuma vacina será suficiente, pois para cada anticorpo produzido dezenas de outros antígenos esperam na fila para atacar os corpos humanos. A raiz deste problema não se encontra na falta de tecnologia para encontrar os remédios, mas no excesso de intervenção na delicada tessitura da natureza, onde somos apenas um dos tantos prejudicados.

Vacinas, cesarianas e cadeias jamais serão soluções definitivas para o dilema humano. Nossa relação desequilibrada com a natureza, com a distribuição das riquezas e o desrespeito com o feminino e seus ciclos são expressões de violência que denunciam paradigmas disfuncionais subjacentes. Somente olhando de frente para estes dilemas teremos um mundo mais justo, igual e saudável.

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Bombas de Tempo

Esta é uma história dos meus tempos de estudante.

Uma paciente chegou ao hospital com intensas dores abdominais. Vinha do interior trazida pelo marido e tinha entre 60-65 anos. O abdome era muito volumoso e reagia ao toque. Todo ele era timpânico e o som lembrava os atabaques africanos. “Tum, tum, tum”. Os exames de sangue estavam normais, mas o raio x foi definitivo: bolhas gasosas enormes por todo o intestino. Fechado o diagnóstico: obstrução intestinal aguda, por volvo (intussuscepcão) ou torção. O famoso “nó nas tripas”.

Foi levada com rapidez ao bloco cirúrgico onde foi preparada a sala para a cirurgia. Quando fui pintar sua enorme “pança” com solução degermante pude ver a longa cicatriz longitudinal que nascia acima do púbis, desviava do umbigo e se aproximava do osso externo. Por certo não era a primeira vez que ela enfrentava um bisturi, e rezei para que desta vez tivesse sucesso como das outras vezes.

Tão logo o cirurgião passou a lâmina do escalpelo abrindo o abdômen as alças intestinais pularam para fora, como balões de hélio de uma festa surpresa liberados de uma caixa. A tarefa agora era percorrer sua longa extensão até encontrar o ponto obstruído.

Era uma torção. No emaranhado das “tripas” havia inúmeros filamentos brancos entre cada volta do intestino, que faziam as suas paredes externas aderirem umas às outras, tornando a limpeza difícil e a investigação demorada.

Breubas“, falou o cirurgião. “Muitas breubas. Foi por isso que ela torceu esta alça“, disse ele mostrando o ponto exato em que o intestino estava colapsado.

Breuba” era o apelido dado às aderências internas do abdômen, relacionadas aos processos inflamatórios prévios e criadas pelo organismo como elementos de reparação. São as “cicatrizes internas”, filamentos de fibrose que se grudam nas alças do intestino dificultando a cirurgia.

Depois de desfeita a torção terminamos a cirurgia com sucesso. No dia seguinte fui visitar a nossa paciente no quarto e lhe perguntei qual a razão da cicatriz antiga que ela tinha no abdômen. Estava na ficha, mas eu não tinha acesso a ela.

– Ahn doutor, aquela é a cicatriz das cesarianas. Tive quatro delas há muitos anos na minha cidade. Os bebês ou estavam enforcados no cordão ou então a placenta estava muito velha. Nunca consegui ter filho de parto normal.

Sorri das velhas desculpas furadas para as cesarianas mas me chamaram a atenção as circunstâncias do caso. Aquela senhora chegou em mau estado ao hospital, na iminência de uma ruptura das alças intestinais. A causa dessa emergência foi um abdome cheio de cicatrizes internas fibróticas que prejudicavam o trânsito intestinal e produziram, por fim, uma torção quase fatal das alças. Na origem do seu quadro estavam antigas cirurgias provavelmente mal indicadas (a se crer no relato da senhora), feitas apenas por conveniência do cirurgião e por um genuíno desprezo pelo processo fisiológico de parir. Intervenções feitas há mais de três décadas – e sem real necessidade – foram as causadoras dessa emergência, que poderia ter custado a vida da paciente.

Muitas de nossas ações médicas tem efeitos em longo prazo. O dietilbestrol causa câncer de células claras de fundo vaginal em adolescentes cujas mães o utilizaram na gravidez; mais de 10 anos de distância separavam a causa do efeito. A ingestão de algumas drogas e muitos procedimentos são “bombas de tempo”, cujas manifestações ocorrem até décadas mais tarde. O mesmo se pode dizer dos eventos psíquicos que, surgidos na idade pré-verbal, produzem manifestações para além da vida adulta. Portanto, para afirmar que uma intervenção é segura não basta apenas sobreviver a ela pois suas repercussões podem levar muitos anos para serem percebidas, e muitas vezes sequer conseguimos reconhecer seu fino laço de causalidade.

Mas é certo que, caso a nossa intervenção não tivesse sucesso, ninguém teria coragem para colocar a verdade no atestado de óbito de uma sexagenária:

“Causa da morte: cesarianas.”

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